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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Um incêndio nas Caldas do Moledo


Por António Guedes Castelo Branco, Antigo Chefe dos Bombeiros da Régua

Certa vez - há mais de meio século - a nossa Corporação foi chamada para debelar um incêndio nas Caldas do Moledo, numa casa pertencente a Basílio Rodrigues Osório, trunfo político e regedor “vitalício”, o qual dava cartas em todas as redondezas. Nessa casa tinha instalada uma pequena loja de negócio, cuja clientela ele próprio atendia.

Era uma série de casas “gémeas” que ali havia, construídas até à altura da padieira com pedra miúda e barro e as paredes do primeiro andar constituídas por taipas, com as madeiras muito ressequidas pelas intempéries e pelo correr dos anos e que eram verdadeiros ramos de carqueja que o incêndio “lamberia” num momento, se não tivéssemos travado a tempo a vertiginosa e assustadora corrida.

Sob as ordens do 1º Comandante Camilo Guedes montou-se o serviço num prazo de tempo record, ficando nós com a certeza absoluta – adquirida logo após os primeiros jactos de três agulhetas – de que liquidaríamos rapidamente esse pequeno “biscate”.

Mas enganámo-nos redondamente.

Tendo-se esgotado a água que abastecia as bombas, proveniente de uma taça que existia – e creio que ainda existe – no jardinzinho situado em frente do edifício do Casino, tivemos de ir buscá-la para lá dos Quartéis Amarelos, a uma propriedade pertencente à Casa Ferreirinha.

Perdeu-se assim algum tempo, mas valeu a pena, pois daí em diante tivemos água em abundância, com a qual dominámos o incêndio que, devido a este contratempo, chegou a atingir proporções espectaculares e preocupantes.

Ora, quando chegamos ao Moledo já o incêndio se havia propagado à casa do tenente Francisco Nogueira, na qual funcionava uma pequena fábrica de doce, principalmente de pão- de-ló, que tinha uma vasta clientela e rendia largos lucros.

A certa altura, o nosso Comandante, sempre velando pela segurança dos seus homens, verificou que o taipal da frente se encontrava perigosamente desaprumado, dando inequívocos sinais de uma próxima derrocada e, por toques de apito - como se usava então -, deu ordem para se abandonar imediatamente o serviço. Todos nós o fizemos com ordem, com disciplina, sem atrapalhações, e procurámos lugares abrigados ou afastados.

Todos nós o fizemos. Mas houve um bombeiro, o corneteiro Agostinho “Rouxinol”, que, parado no meio da estrada, voltado de costas para o Comandante e com a corneta debaixo do braço, se moveu, não prestando atenção às ordens transmitidas pelo Comando. Estava completamente abstracto, absolutamente alheio.

Então Camilo Guedes enerva-se, dá uma breve corrida e prega um violento empurrão ao “Rouxinol”, obrigando-o a mudar de poleiro.

E dá-se a derrocada neste momento, indo o taipal, com as suas duas janelas, cair a prumo, e de cutelo, precisamente no lugar em que o “Rouxinol” tinha permanecido, tendo, ao tombar sobre o lado direito, sepultado, sob uma montanha de destroços incandescentes, o nosso velho e abnegado Comandante.

Angustiados, todos nós corremos, como loucos, para o local do desastre, tirando o Comandante da crítica situação em que se encontrava e levando-o em braços para a farmácia de Napoleão de Pinho Valente, republicano ferrenho que, por duas vezes, havia sido eleito vereador municipal.

Este tratou o ferido com todo o cuidado e desvelo, principalmente a brecha que apresentava na cabeça.

Sintetizado:
O Comandante salvou a vida ao “Rouxinol”, que não voltaria a dar, nas lindas madrugadas de Abril, os seus alegres e melodiosos trinados e gorjeios, e, por sua vez, o capacete salvou a vida ao Comandante.

E quando, chegados ao quartel, comentávamos o assunto, dizia-nos Camilo Guedes, com a cabeça empanada e a rabeta do charuto ao canto da boca: “Para se salvar uma criatura da morte certa, todos temos a obrigação de sacrificar seja o que for, mesmo que sejamos nós próprios”.

Ora, este critério está absolutamente de acordo com o exposto na poesia “O Bombeiro”, que o Comandante Camilo Guedes escreveu, há muitos anos, e que foi declamado por Gabriel Gouveia numa récita de gala em benefício da Corporação e que o Arrais publicará oportunamente.

Nessa récita, como não podia deixar de ser, também tomou parte o autor destas linhas.

Sou o remanescente desse denodado grupo de bairristas.

Belos tempos!
- Peso da Régua, Outubro de 2010. Colaboração de J A Almeida para Escritos do Douro 2010. Actualizado em 14 de Novembro de 2013.
 
Notas:
  1. - Este artigo encontra-se publicado no Jornal “ O Arrais”, na sua edição de 5 de Setembro de 1980.
  2. - Na fotografia cedida por uma sua neta, o seu autor aparece fardado de 2º Comandante dos Bombeiros da Régua, ao lado do 1º Comandante Lourenço de Almeida Medeiros, que cessou essas suas funções em 1959.
  3. - O Chefe António Guedes Castelo Branco, como gostava de ser conhecido, era filho de um bombeiro, o Comandante Camilo Guedes Castelo Branco e faleceu na Régua nos finais da década de 80, estando o seu corpo sepultado no cemitério municipal. 
Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 05 de Novembro de 2010
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
Um incêndio nas Caldas do Moledo
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Um incêndio nas Caldas do Moledo
Clique  nas imagens para ampliar. Imagem e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editados para este blogue. Edição e atualização de texto e imagem de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.