Nos princípios desta última década do século, que vai correndo, era motivo geral de curiosidade nas Caldas do Moledo, já entre os banhistas adventícios, já entre os indígenas interessados a presença ali, em determinados dias, de um rapaz para muitos desconhecido, e que de ordinário se apresentava com uma regularidade severa de funcionário escrupuloso. Viam-no sempre chegar a horas certas, pelo começo da tarde, às vezes a cavalo, às vezes no comboio, inteiramente vestido de luto aliviado, muito cuidado no seu vestuário e profundamente comedido nos seus modos. Tão comedido mesmo, que ninguém lograva atinar com a causa das visitas, para muitos inteiramente misteriosas.
Era um elegante tipo de rapaz, alto e delgado, de cútis mate, olhos castanhos e um fino bigode louro-escuro sobre a boca séria, sensual e carnuda. Não tomava banhos, não visitava ninguém, não parara jamais em frente de qualquer janela: e como também não assistia a nenhum divertimento, - a nenhum baile ou soirée, a nenhuma reunião ou merenda, a nenhuma barricada ou regata – nem mesmo se podia dizer que o desejo de distracções o trouxesse à terra.
A verdade, porém é que se muitas eram as pessoas que ignoravam quem ele fosse, algumas havia, contudo, que o conheciam de pronto, com grande precisão de pormenores elucidativos. E dessas, o comendador Amaral Leitão era o mais instruído, e foi o que logrou desvendar o mistério.
O tal rapaz, que ele conhecia tão bem como os seus dedos – aqueles dedos grossos, cabeludos, com um anel de brilhantes no fura – bolos da mão direita – chamava-se Afonso Duarte da Cruz Silveira, era vacinado, tinha vinte e cinco anos de idade e 1,74 centímetros de altura, rigorosamente medidos no estalão administrativo quando fora à inspecção para soldado, de que, aliás, um número alto o livrara. Pelo que respeitava a bens de fortuna, ou meios de a adquirir, possuía uma casa de moradia nas ribas do Douro, uma légua para o este, em sítio ermo, com uma terreola anexa, onde cultivava com aproveitamento couves-galegas e abóboras-meninas, cebolinho e outras plantas hortenses e dois milheiros de cepas muito cuidadas, que davam o melhor de doze pipas de vinho, bom ano, mau ano; tinha ademais uma comissão para compra de vinhos da respeitável firma inglesa – Coley and Smith – Oporto – que negociava na especialidade; e como esperanças de futura prosperidade, possuía lá para as bandas de Murça um tio materno, septuagenário, doente e sem mais herdeiros. Sobre o luto, que ele trazia, não se sabia nada.
- Vieira da Costa*
*Nota - Escritor nascido no lugar do Salgueiral, freguesia de Godim, no Peso da Régua, em 14 de Março de 1864, onde sempre viveu e veio a falecer em 13 de Janeiro de 1935. Escreveu nos jornais regionais e nacionais e foi autor dos notáveis romances Entre Montanhas, A Família Maldonado e A Irmã Celeste, todos publicados no séc. XX.
Clique nas imagens para ampliar. Texto e imagens cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida e editados para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.