Por António Guedes*
Tinha eu 15 anos.
Mas evoco essa tragédia com a mesma exactidão, a mesma nitidez e veracidade como se ela tivesse ocorrido há dois ou três dias.
Decorria um inverno inclemente, chuvoso e frio.
A água caía a cântaros, noite e dia, sem interrupção, sem a mais pequena “aberta”, já desde meados de Outubro.
Rios e ribeiros transbordaram e lameiros transformaram-se em verdadeiros e perigosos lagos de água barrenta.
Os jornaleiros, que há já muitas semanas não podiam trabalhar, devido ao mau tempo, vieram para a rua, com as suas mulheres e filhos, estender a mão à caridade pública. Era um quadro negro e horrível, de miséria e fome, que nos comovia, confrangendo-nos a alma e humedecendo-nos os olhos.
Da Barca d'Alva chegavam continuamente notícias alarmantes, aterradoras, acerca da espectacular subida do rio Douro, e na margem ribeirinha todos os habitantes trataram de levar para local acautelado os seus modestos' haveres. Mas não tiveram tempo de retirar tudo porque o rio, numa arrancada súbita, tudo invadiu, instalando-se na Avenida João Franco, onde estacionou cerca de vinte e quatro horas, como que a restaurar as forças para nova e mais terrível e pavorosa arrancada.
E assim foi, de facto.
A sua subida rápida veio estabelecer a confusão e o pavor na tarde do dia vinte e quatro de Dezembro, véspera de Natal.
Nessa tarde, numa inesperada galopada, inundou totalmente a rua da Ferreirinha, (na qual se situavam os principais estabelecimentos de mercearia, que pouco, ou nada puderam salvar) a rua João de Lemos, até ao local onde agora existem umas escadas que dão acesso ao Adro do Cruzeiro, a rua da Companhia, até ao primeiro degrau do páteo da casa, da Companhia Velha, e parte das ruas da Alegria, Primeiro de Dezembro, etc.
O rio estava um verdadeiro oceano, inchado como uma jibóia e com uma corrente rapidíssima, arrastando árvores, telhados de pequenas casas, pipas, utensílios de armazém, peças de mobília, etc. As laranjas boiavam aos milhares, e até uma junta de bois, certamente já mortos, seguiam na veloz caminhada da corrente impetuosa do Douro enfurecido.
Tinha meu pai nessa época um jornal intitulado O Dissidente no qual, muito novo, comecei a rabiscar uns artiguelhos, e cuja redacção estava instalada em parte do primeiro andar de um prédio que ainda possuímos na rua Marquês de Pombal, naquele tempo denominada rua da Companhia. O rio avançava velozmente, tendo, junto à noite, atingindo os primeiros degraus desse prédio.
Chamaram-se a pressa os tipógrafo, um dos quais era o bom e falecido Teixeirinha, e, começamos a mudar, a toda a pressa, para o segundo andar, os caixotins dos vários tipos, papel, tinta, e tudo aquilo que se relacionasse com o jornal. Apenas deixamos ficar o prelo.
Quando esse serviço se terminou, já com água quase pelo joelho, subimos para o segundo andar e meu pai que como nós, tomara apenas o pequeno almoço, conseguiu encontrar a lata em que minha mãe guardava o pão e da qual, devido à precipitação da fuga, nem sequer se lembrara. Abençoado esquecimento!
A seguir encontramos um pequeno barril de escabeche e um saco com figos secos.
Depois destes preciosos achados, resolvemos comer.
Abatidos e encharcados, lá nos sentamos.
Nunca me esqueci dessa ceia: pão com enguias de escabeche e, como sobremesa, figos secos e dois cálices de vinho do Porto.
Minha mãe, minha avó paterna e meu irmão Camilo, ao tempo um rapazinho, refugiaram-se em casa de meu tio Afonso Soares, que a pôs inteiramente à nossa disposição e que tinha uma entrada também pelo adro do Cruzeiro. Para lá já havia sido transportado meu irmão Jaime, que se encontrava gravemente doente.
Às quatro horas da manhã um barco, levando a bordo o Presidente da Câmara, Doutor Júlio de Carvalho Vasques e um piquete dos bombeiros, sob o comando do velho chefe Joaquim Maria Leite, lançaram uma escada “crochet” (de ganchos) à sacada da casa e por ela descemos para o barco salvador.
Mas os maus dias continuaram e até se agravaram, devido à absoluta falta de géneros alimentícios. Durante dois ou três dias fomos forçados a seguir o regímen vegetariano...
As estradas encontravam-se completamente intransitáveis, devido aos enormes desmoronamentos de trincheiras e pelo mesmo motivo os comboios que partiam do Porto só chegavam a Mosteirô.
E houve, então, criaturas sem escrúpulos ou compaixão que, à custa da miséria alheia, iam adquirir géneros não sei aonde e vendiam-nos aos infelizes desalojados com uma margem de lucro de 300% e por vezes até mais, amealhando, com esse chorudo e infame negócio importantes quantias. Que maldita corja!
E toda esta tremenda tragédia, de que também fui vítima, conservo-a tão fixamente gravada na retina e na alma que, por muito que viva, nunca a poderei esquecer.
* Antigo Chefe dos Bombeiros da Régua
NOTAS:
1- Esta crónica de memórias, sobre a cheia de 1909, está publicada no jornal O Arrais.
2- A fotografia recente é do fotógrafo Miguel Guedes e assinala a casa sita na Rua da Ferreirinha, na cidade da Régua, onde está colocada uma placa, a marcar o nível que atingiram as águas do rio Douro.
3- Como esta crónica evoca do trabalhos de alguns dos bombeiros da Régua, desse tempo, o retrato que está guardado mo museu da Associação, apresenta o Chefe José Maria Leite, um dos bombeiros fundadores, que comandou essas operações de socorro, na cheia de 1909.