Foi há cerca de quinze dias que aqui falei na casa do Bernardo Perdigão, a que ficava lá em cima, no monte do Maio, bem pertinho da minha casa paterna. Também falei na violência doméstica que ali se ia vivendo, no dia-a-dia, com a mulher do Bernardo, a Engrácia, a mandar de lá, pela tardinha, uma grande gritaria com muitos pedidos de socorro. Mas, no dia seguinte a Engrácia vinha por aí abaixo a encher um bom caneco de água da mina e não mostrava sinais de tal violência, fosse uma quebradura de ossos ou as marcas de quaisquer pisaduras. E, de caneco à cabeça, a Engrácia ia subindo, upa, upa, toda a meia encosta do monte Maio, a falar sozinha como que a castigar o cansaço, sei lá se a quebrar um enguiço que andasse lá por casa, numa desarmonia de mau viver.
Enquanto isso, o Bernardo entretinha-se lá por casa sempre atento ao granjeio de duas ou três pipas de vinho e a tratar do “vivo”. O “vivo” eram alguns coelhos metidos num caixotão e de madeira mal-cheiroso, com uma tampa de rede por cima e por via da doninha ou da comadre raposa.
O Bernardo, mais do que mostrar o embardamento da vinha, gostava de mostrar as coelhas paridas com os filhotes ainda mamotos de volta das tetinas. Era como se ele próprio fosse um pai-coelho e não o pai-perdigão que nunca foi.
No exterior da casa, rés vés a porta de entrada, era a cozinha, um simples acrescento de cobertoira alpendrada e onde o Bernardo todo se envaidecia a mostrar a engenhoca de um bom fogo. O engenho, se calhar copiado, era um caneco de lata sem fundo, cheio de serrim, com um pau de vassoura aprumado no centro. Retirado o pau do serrim bem compactado, ficava em seu lugar uma estreita chaminé como se fosse o respiráculo de uma boa tiragem e boa oxigenação. O lume era atiçado no fundo da chaminé e a combustão ia-se fazendo muito lentamente sem grande consumo do serrim. No alto, na boqueira da chaminé, a chama era tão silenciosa, tão azul e tão pura, digamos que tão cheia de frescura, que até apetecia embrulhá-la e trazê-la, a bom recato, como amostra de um bom fogo lareiro, fogo sem carvão, sem lenha de pinho nem carqueja, apenas ateado com uma poalha de serrim.
A propósito de fogo, bem me lembro que por uma tarde afogueada de Estio, o Bernardo teve a feliz ideia de me oferecer, a mim e a outros companheiros de aventuras, a fresquidão de uma boa limonada. O refresco foi servido num daqueles jarros de esmalte que se punham, cheios de água, ao lado do lavatório de ferro, tanto para lavar o surro das mãos como a remelosa sujeira do, com licença, focinho. Se o refresco viesse numa caneca de vidro transparente a mostrar a turvação do açúcar e dos limões espremidos, mesmo numa dessas infusas de barro preto ainda com saibo de água-pé, vá que não vá. Mas, servido assim no jarrão do lavatório, de mais a mais mexido e remexido com um pedaço de cana, isso foi o que foi. Foi o melhor do nosso contentamento e do nosso saudável companheirismo. O Bernardo, muito satisfeito, com todas as bem querenças da sua franca ruralidade, mostrou-se desapegado das doçuras da limonada e foi-se chegando ao seu quartilho de vinho e ao palavreado das suas crónicas já requentadas.
Agora, como quem se confessa ou como quem se diverte com as benzeduras e as cartomancias da Engrácia, direi que a minha música é muito minha, desde os meus verdes anos. É toda ela uma partitura clássica, envolvida de acordes eruditos. Direi ainda que em algumas peças musicais, as que considero mais figurativas, tenho por costume ilustrá-las com imagens cinemáticas que me são próprias e são da minha lavra. Assim foi, por exemplo, com o “Poeta e Aldeão”, a “Dança Macabra”, o “Capricho Italiano” ou o célebre “Bolero”, o de Maurice Ravel.
Pois foi já há umas décadas que idealizei um filme para ilustrar o “Aprendiz de Feiticeiro”, um interessante scherzo sinfónico do compositor Paul Dukas e baseado num texto de Goethe. Eu, por mim, achei que a dinâmica dos cenários ficava muito bem na ilustre casa do Bernardo Perdigão. Ali só havias trastes da cozinha, os alguidares, os potes, as panelas e as infusas e, a um canto, os utensílios da lavoura, o pulverizador, a podoa, a sachola, o serrote de ponta e algo mais. Havia um gato preto retinto, afeito às assombrações, e havia, no caibramento do tecto, uma grande teia de aranha, a enredar o melhor dos cenários.
Não havia era o instrumental de qualquer orquestra, fosse o naipe das madeiras, das cordas e dos metais, com alguma percussão a tempo e horas. Sem pandeiretas, assobios, pífaros ou berimbaus, só com sentoiras e cutelos, com tachos e tigelas, eu podia fazer de conta e podia divertir-me com o “Aprendiz de Feiticeiro”.
O aprendiz entrou na casa do Bernardo pela calada da noite. Entrou com os primeiros compassos do fagote, coisa de nada, mansíssima, como quem se precata de olhos estranhos. De uma atrapalhação que, a princípio, parece desordenada, o aprendiz acabou por exprimir em música, com muita clarividência, toda a inspiração e particularidades estilísticas do compositor Paul Dukas.
A obra é um prodígio de orquestração, com uma bela harmonia de acordes e sonoridades. Eu, enamorado da boa música, feito retratista de fingimento, trouxe ao meu íntimo o testemunho de tempos idos, de mais a mais com os acordes do “Aprendiz de Feiticeiro”, os quais ainda ressoam na casa do Bernardo e da Engrácia. Esses acordes ainda se embebem de muita doçura poética e, mau grado a violência doméstica, tudo em volta me parece pacificado.
A modos de fingimento, chegou ao fim a partitura sinfónica do Aprendiz. O Bernardo e a mulher dormem já o sono da eternidade e até a casa onde viviam é agora o pequeno chão de algum vinhedo, a desabrolhar primaveras.
- Por Manuel Braz Magalhães
"O Aprendiz de Feiticeiro (1897), poema sinfônico de Paul Dukas (1865-1935), inspirado no poema homônimo de Goethe e composto em forma de Scherzo. Executado dia 06 de maio de 2012 pela Orquestra Filarmônica de Minas Gerais na Praça do Papa - Belo Horizonte, MG - BRASIL, como parte da série de concertos Clássicos no Parque."
Clique nas imagens para ampliar. Texto enviado por Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Imagens recolhidas da net e editadas para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Maio de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.
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