Quando da celebração, recente, da
passagem do 70.º aniversário da sua fundação, a Associação de Bombeiros
Voluntários desta vila expediu vários telegramas de saudação e agradecimento
por benefícios recebidos. Entre eles, um ao Sr. Mário Bernardes Pereira, à
Câmara de cuja presidência ela ficou devendo valiosíssimos serviços, como a
oferta do terreno para a edificação do seu novo quartel (ainda e infelizmente
incompleto) e a actualização do subsídio que vinha recebendo.
Decorridos cerca de 20 anos, os
bombeiros, em cujos peitos espontaneamente desabrocham dois dos sentimentos que
nos nossos dias menos se cultivam e menos se apreciam, - o do amor ao próximo e
o da gratidão, - vieram relembrar o facto e significar ao Sr. Dr. Mário Pereira
a simpatia e a consideração que lhe tributam e que não podem ser mais elevadas.
E que esse nosso prezado e distintíssimo conterrâneo e os de mais membros da
Câmara a que presidia, não se limitaram a fazer à encanecida Associação
promessas animadoras, ou reiteradas e espaventosas afirmações de simpatia como
tantas, afinal, lhe têm sido feitas, e das quais com frequência se usa e abusa,
- porque não acarretam encargos, nem responsabilidades ou compromissos, e
mascaram até, porventura e em certos casos, a indiferença ou o desprezo
absoluto pela acção que ela desenvolve, pelos serviços relevantíssimos que ela
presta, pela luta em que permanentemente anda empenhada para poder assegurar a
sua existência.
O Sr. Dr. Mário Pereira e os seus e
nossos amigos (todos ainda vivos graças a Deus) não se limitaram, pois a essas frias
e platónicas promessas, a essas afirmações de simpatia, mas definiram-nas,
concretizaram-nas, pela forma eloquente e generosa que deixamos exposta.
Não esqueceu a Associação de
Bombeiros essas provas de amizade e boa vontade, jamais se esquecerá.
E à saudação dessa Associação,
servida por gente humilde é certo, toda muito humilde, mas que nem pelo facto
de o ser deixa de ter sentimentos nobres e altivos, porque não se roja, não se
curva, não adula, porque passe a consciência exacta do que vale, a noção
perfeita da missão que desempenha, respondeu o Sr. Dr. Mário Bernardes Pereira
com a carta que a seguir e com imenso prazer transcrevo:
“…Sr. Presidente da Direcção
da Associação de Bombeiros:
Só a carência de saúde
motivou o atrazo com que acuso a recepção do telegrama, tão cativante, que V.
me enviou no dia do aniversário da Associação. Emocionaram-me profundamente as
palavras que me foram dirigidas. Já vão longe os anos em que, na Câmara,
procurei servir o melhor que pude, os interesses da minha terra; não esqueço o
entusiasmo com que iniciei a minha cruzada.
Hoje, é igual o amor pela
terra em que nasci; a energia, a capacidade de lucta, a saudade física, é que
não são iguais. Não esqueço os meus companheiros de então, aqueles que nada queriam
para si, nada pediram em troca do seu esforço e da sua dedicação.
Afinal, símbolo desse altruísmo
e dessa isenção, é a Associação dos Bombeiros. Passam vereações, sucedem-se
facções no comando da política do concelho, renovam-se figuras no tablado administrativo:
a Associação mantêm-se indestrutível, sobrevive a todas as modificações, escola
de sentimentos humanitários, de abnegação e de civismo. De longe, avalia-se
melhor a grandeza dos homens e das colectividades. Quanto mais labuto por aqui,
mais sinto, em todos os recantos do meu ser, o sangue afirma-se reguense e
duriense; e, ao recordar quanto me afirma o valor da minha terra, vejo sempre
sobrepor-se a tudo, como modelo de vitalidade no culto de uma nobreza eterna,
de sentimentos, de humanitarismo e de coragem, a Associação de Bombeiros.
Passam na minha recordação, dignificadas, as figuras que sucessivamente
comandaram o seu corpo activo; passam sempre, com tanta sinceridade na minha
admiração, como quando lutei pela Associação antes de ocupar o meu posto na
Câmara, e procurei servi lá quando presidia vereação.
Outras lembranças se apagam,
á medida que a vida passa, e os anos me curvam, de fadiga. Esbatem-se já as
silhuetas de muitos do meu tempo, na imprecisão da memória. Porém, quando sonho
dias melhores para a minha terra – os dias que Ela merece – e visualizo a
solenidade duma consagração, todos os pormenores ficam indefinidos, mal se
esboça a representação de pessoas e organismos; fiel, à frente de toda a
figuração, primeira por direito próprio, credora da admiração e da gratidão de
todos, vejo sempre, nitidamente, a Corporação dos Bombeiros, capacetes
doirados, rodeando um estandarte de honrosas tradições.
Agradeço, comovidamente, á
Direcção a que V. preside, o ter-se lembrado duma pessoa apagada que mais não
fez do que pretender recordar ao povo da Régua, o muito que deve à Associação
dos Bombeiros Voluntários.
Faço votos porque o Destino a
engrandeça, como, é natural em presença da dedicação admirável, imensa,
daqueles que a servem.
De V. Etc.
(a)Mário Bernardes Pereira 14
-12- 50»
Esta carta é mais uma afirmação do brilhante, do
lucidíssimo espírito do seu autor. Lê se e relê-se. Enternece, faz vibrar a
sensibilidade de todos quantos à velha Associação veem dedicando os seus
incansáveis esforços e os melhores tempos da sua vida, - porque nunca ninguém
dela disse tanto e disse tão bem, em termos tão calorosos, tão expressivos e
tão repassados de sinceridade. Por isso, ela vai ser impressa em papel especial
e afixada nos seus 2 quartéis, a fim de que aos bombeiros, aos humildes e
obscuros bombeiros, sirva de estimulo e de incentivo para que prossigam, como
até aqui, no estrénuo cumprimento do seu dever, honrando a farda que envergam e
o velho e glorioso estandarte que há 70 anos e num dia de festa brilhante,
tocante, como aquela que há pouco se realizou. Pela primeira vez e com o mesmo
aprumo e a mesma galhardia, foi empunhado por aqueles seus camaradas que a
morte já aceitou.
E essa uma homenagem, que os bombeiros
prestam ao Sr. Dr. Mário Pereira, e com a qual lhe querem significar o seu
profundo e inalterável reconhecimento por mais essa prova de afecto e de apreço
pela sua Associação e do interesse que lhe merecem às coisas da sua terra.
Homenagem modesta, apagada talvez, mas muito comovida, e de cuja sinceridade
ele não pode duvidar.
… Afastou-se o Senhor Doutor Mário do
nosso convívio. Perdeu a nossa terra, e esse prejuízo dia a dia se sente, se
afirma cada vez mais dolorosamente.
E os bombeiros sabem e sentem que
também perderam muitíssimo.
Jaime
Guedes
Nota: Este artigo
foi publicado no jornal de Noticias do Douro, edição de 24 de Dezembro de 1950.
O seu autor Jaime Guedes (filho do Comandante Camilo Guedes Castelo Branco e
irmão do Chefe António Guedes), ilustre reguense, destacou-se nos anos 30 como
vereador na Câmara Municipal da Régua e, a além de outros cargos que exerceu na
Associação, foi um empenhado e dedicado Presidente
da Direcção.
Reúnem-se aqui dois preciosos documentos para
a história dos Bombeiros da Régua que revelam alguns factos da construção do
Quartel Delfim Ferreira. Os comentários de Jaime Guedes e a divulgação que faz de
uma interessante carta de um outro grande Presidente da Direcção da AHBV, o médico
Dr. Mário Bernardes Pereira que, como presidente da edilidade reguense, doou a
parcela de terreno para ser construído o actual Quarta, obra de arte
projectada, a título gratuito, pelo famoso Arq. Oliveira Ferreira.
Aos directores
Jaime Guedes (na foto) e ao Dr. Mário Bernardes Pereira devem os Bombeiros da
Régua uma singela homenagem, como sinal de reconhecimento e de gratidão.
Clique nas imagens para ampliar. Este texto está também publicado na edição do semanário regional "O Arrais" de 23 de Fevereiro de 2012. Sugestão de J. A. Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Fevereiro 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.
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