O Comandante Afonso Soares (1892-1927), no seu livro “Apontamentos para a História da Vila do Peso da Régua”, editado em 1907, no capítulo dedicado à história dos bombeiros, assinalou uma visita dos bombeiros voluntários de Mirandela à então vila da Régua.
Essa visita aconteceu no dia 20 de Setembro de 1903 e coincidiu com a realização de outro acontecimento de grande significado para os bombeiros da Régua, a bênção do primeiro Estandarte que, nesse dia, foi benzido na Real Capela do Senhor Jesus do Cruzeiro (hoje Capela Senhor do Cruzeiro).
O primeiro estandarte dos bombeiro da Régua, de seda azul e branca, bordado a matiz e ouro, foi oferecido por “uma comissão de senhoras da melhor sociedade regoense” que era “composta das ex.rnas snr.as D. María Adelaide Costa Pinto, D. Isaura Lopes da Veiga, D. Margarida Clotilde de Bernardes Pereira, D. Clotilde da Costa Pinto, D. Maria Margarida Pereira e D. Virginia Augusta Pereira”.
Os bombeiros da Régua tiveram esse estandarte graças à generosidade daquelas senhoras que custearam as despesas. Segundo consta, o emblema foi desenhado pelo grande artista que era Afonso Soares.
Os dois acontecimentos tiveram honra de notícia no jornal “O Douro”, de 23 de Setembro de 1903, que Afonso Soares transcreveu quase na íntegra no seu livro. Ao que parece, o autor da noticia foi Afonso Soares, ele que brilhou como jornalista na imprensa local a escrever e a dirigir os jornais do fim do século XIX e os inícios do século XX.
Quem ler a noticia, rica em detalhes e pormenores, fica a saber quase tudo o que se passou nesse dia, desde que o comboio da linha do Douro, vindo do Tua, parou na estação da Régua e os bombeiros de Mirandela foram recebidos com foguetes e o hino nacional tocado por uma banda de música.
Era um dia de Verão, mas chovia mansamente. As ruas da vila estavam embandeiradas e viam-se muitas pessoas para assistir à festa. O quartel, então situado no edifício do Largo da Chafarica (hoje Largo dos Aviadores) bem como as salas do andar nobre, estavam com “uma ornamentação muito vistosa, constante de ferramentas do serviço de incêndios, bandeiras, flores e festões de verdura”. A chuva que caía frequentemente não deixou que se efectuasse o exercício que os bombeiros da Régua tencionavam fazer em honra dos excursionistas.
Durante o percurso “os hospedes foram aclamados constantemente e cobertos de flores que, das janelas, adornadas de colgaduras, lhes deitavam as damas da nossa terra”. O ambiente era de festa, grande colorido e animação popular. Os bombeiros eram já uma força viva da sociedade reguense e as suas manifestações não eram indiferentes à população que os apoiava e deles se orgulhava: “Era encantador o aspecto das ruas, com as bandeiras drapejando ao vento, as casas embellezadas de colgaduras de seda, de todas as côres, nuvens de pétalas e ramos cahindo sem cessar, e milhares de pessoas apinhadas nas janellas e nos passeios, acenando, com lenços e soltando vivas”.
O cortejo dirigiu-se para a Real Capela do Senhor Jesus do Cruzeiro. Aí efectuou-se a cerimónia da bênção da bandeira oferecida aos bombeiros pelas distintas senhoras reguenses. Seguiu-se a celebração de uma missa, acompanhada no coro pela tuna artística de Mirandela, que interpretou temas deliciosos do seu selecto reportório.
Por volta da 1 hora da tarde, reorganizou-se o cortejo que se dirigiu para a sede da associação. Orgulhosos, rua acima, os bombeiros da Régua levaram já hasteado o seu primeiro estandarte. No quartel, a comitiva foi recebida na sua sala nobre e os representantes das duas associações apresentaram cumprimentos mútuos e fizeram-se alguns discursos a assinalar os históricos acontecimentos.
Em nome dos bombeiros de Mirandela, usou da palavra o Sr. Silva, distinto advogado, para agradecer “a recepção magnifica feita aos excursionistas e enaltecendo as bellezas naturaes da nossa terra e os sentimentos dos habitantes della. Fallou com muita eloquencia, revelando uma vasta jntelligencia e um caracter muito nobre. Foi applaudido com muito enthusiasmo”.
Pelos bombeiros da Régua, foi Camilo Guedes Castelo Branco - chefe da segunda esquadra e vice-presidente da Assembleia- geral da Associação – que falou parar dar “as boas-vindas aos nossos estimaveis visitantes e agradeceu a sua honrosa visita e os inolvidaveis testemunhos de apreço que a corporação de que faz parte e as demais pessoas que a acompanharam, em Abril de 1902, tiveram em Mirandella, pondo em relevo o quanto todos os excursionistas d'então vieram penhorados com as innumeras gentilezas que lá lhes prestaram”.
No eloquente discurso não esqueceu as damas reguenses beneméritas presentes, a quem respeitosamente manifestou a sua gratidão: “Aproveitando a occasião de estar no uso da palavra e de se acharem presentes a commissão offertante da bandeira e muitas outras senhoras d`esta villa, agradeceu-lhes, commovidamente, em nome dos seus camaradas, a alta e ínestimavel distincção que com tal offerta lhes foi conferida, e accrescentando que os bombeiros regoenses haviam de saber honrar sempre essa bandeira, em que viam concretisada a realisação de quaesquer ambições ou sonhos de gloria, que porventura tivessem tido”.
No fim da cerimónia, um gesto de simpatia não ficou despercebido a ninguém: “a Sra. D. Marta Benigna, uma respeitabilissima e amavel senhora da melhor sociedade mirandellense, offereceu aos bombeiros regoenses um rico e formoso ramalhete de flores artificiaes, com uma dedicatoria muito honrosa”.
De imediato seguiu-se um “copo de água” oferecido pelos bombeiros da Régua, servido numa sala contigua ao salão do tribunal – ao tempo, ficava no rés-do-chão do Edifício da Câmara Municipal - cedida amavelmente pelo juiz de direito, Dr. Manuel Alves da Silva. Estiveram presentes as damas, os bombeiros e outros excursionistas, além dos representantes das corporações e da imprensa local, mas o “logar de honra foi dado ao digno commandante dos bombeiros mirandellenses, o snr. Armindo de Castro, cavalheiro que gosa toda a estima e respeitos, pelas suas invulgares qualidades de intelligencia e carácter”.
Antes de acabar o animado repasto, houve tempo para os agradecimentos. Nas suas instalações, o senhor juiz de direito “brindou ás nossas conterraneas, cuja belleza e virtudes elogiou em sinceras palavras de justiça, alludindo, com muito brilho e felicidade, á bandeira, a cuja benção assistira, e definindo o muito que ella ficará sendo e valendo para a corporação a quem foi offerecida”. De imediato, o comandante dos bombeiros de Mirandela, o “Sr. Armindo de Castro, em termos vibrantes de sinceridade, saudou os bombeiros regoenses, a quem, bem como a todo o povo da Regoa, agradeceu a festa de que elle e os seus companheiros estavam sendo alvo”.
Entusiasmado com esta última saudação um elemento da corporação da Régua saudou e brindou os visitantes: “o sr. Gabriel de Gouvêa, phamaceutico da associação dos bombeiros regoenses, fallou brilhantemente, brindando a todos os excursionistas e, nomeadamente, ao snr. Armindo de Castro”.
A festa de confraternização terminava ao meio da tarde. Na gare da estação, o comboio das quatro e meia já esperava pelos bombeiros de Mirandela, de volta à estação do Tua, para seguirem viagem até à sua terra.
Na hora da partida, a “despedida foi grandiosa e commovente” e era “indescriptivel o enthusiasmo dos cumprimentos e saudações que então se trocaram”.
Nesta inesquecível visita, os bombeiros da Régua receberam os seus camaradas de Mirandela com muita amizade e um grande espírito de fraternidade. Mais que uma simples visita que marcou as vidas de homens e mulheres foi momento histórico em que duas associações, já cheias de passado, conseguiram ser pioneiras, dentro do mesmo espaço geográfico, a região de Trás-os-Montes e Alto Douro, de um gratificante intercâmbio de relações humanas e profissionais.
Ao ser evocado pelas novas gerações, este encontro não pode ser observado apenas como um exercício de revivalismo, mas como uma lição para que se faça aquilo que deve ter ficado nas mentes dos nossos antecessores, a geminação das suas associações. Mais do que nunca, os bombeiros precisam de criar laços de amizade e fraternidade, de estabelecer protocolos de cooperação em áreas da protecção e do socorro e de aproximarem os saberes e as experiências de cada corporação.
Da nossa parte, como actuais dirigentes dos bombeiros da Régua, estamos convencidos que estes bons exemplos não devem ficar apenas lembrados nas páginas da história. Por serem genuínos deve-lhes ser dada uma continuidade no presente, numa atitude solidária entre os bombeiros voluntários da Régua e os de Mirandela.
A história desta inesquecível visita dos bombeiros de Mirandela pode repetir-se. Desde que haja uma vontade capaz de inovar uma tradição que proporcione mais compromissos entre as duas associações e, talvez, mais visitas dos bombeiros mirandelenses à cidade da Régua.
- Colaboração de J. A. Almeida* para "Escritos do Douro" em Março de 2011. Clique nas imagens acima para ampliar.
- *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua.
A visita dos bombeiros mirandellenses à villa da Regoa
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 24 de Fevereiro de 2011
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 24 de Fevereiro de 2011
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