quinta-feira, 31 de março de 2011

APRESENTAÇÃO DO LIVRO LAGAR DA MEMÓRIA DE M. NOGUEIRA BORGES

APRESENTAÇÃO DO LIVRO LAGAR DA MEMORIA DE M Nogueira Borges

APRESENTAÇÃO DO LIVRO LAGAR DA MEMÓRIA DE M. NOGUEIRA BORGES
FEITA POR ARMANDO FIGUEIREDO EM 12/03/2011 NA CASA-MUSEU TEIXEIRA LOPES
Vila Nova de Gaia
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
Informações para aquisição aqui !

A MINHA CIDADE

(Clique na imagem para ampliar)
Fotografia pertencente à galeria pública de Jaime Gabão 

A minha cidade
Tem o visco da saudade
E o nevoeiro do futuro.
A minha cidade
Tem a tristeza do escuro,
Mas, sobretudo,
O brilho da verdade.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima pertencente à galeria pública de Jaime Gabão e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Uma Sineta de Palavras - 3

 A presença dos bombeiros na vida e obra  de João de Araújo Correia

“A associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”
João de Araújo Correia

Continuação.
O mundo dos bombeiros tem uma magia muito especial para todos os seres humanos, muito em especial quando crianças, que é imutável mesmo que mudem as cores das fardas, os pronto-socorros sejam mais potentes e equipados com material sofisticado e os sinais de incêndios tenham outras formas de alertar os bombeiras. De uma época para outra, a modernidade traz algumas alterações na forma como os bombeiros actuam e desempenham a sua missão. Umas são mais notórias e caem em desuso, mas provam que se verifica também uma evolução na sua missão de socorro.


A partir de certa altura, os sinais de incêndios que só os velhos bombeiros aprenderam caíram também em desuso. Antigamente eram usados para saberem em que ruas da Régua andava o fogo, mas hoje os bombeiros não assim chamados, mas pelo toque de uma sirene que, começa já começou a dar lugar a um novo aviso, as mensagens difundidas pelos modernos telemóveis.

Em “Sinais de Incêndios”, crónica publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, João de Araújo Correia evoca o tempo em os fogos metiam mais medo e os bombeiros eram chamados pelos diferentes toques do sino da Capela do Cruzeiro.

“Estou a ver, no quarto de meu pai, dentro de um caixilho, uma espécie de registo intitulado Sinais de Incêndio. Mas em ortografia antiga… Os Sinais rezam como Signaes.
Pela ortografia se poderá avaliar a idade do registo. Idade antiga, embora posterior a Gregos e Romanos…
Pendia o registo com a sua moldura, sobre a mesinha de cabeceira de meu pai. Era uma espécie de semideus lareiro. De noite ou de dia, se o sino do Cruzeiro tocasse a fogo, aqui na Régua, o benemérito registo indicava a meu pai o sítio em que lavraria ponta de incêndio capaz de destruir a Régua.
No tempo de meu pai, havia mais medo a fogos do que hoje. Se havia confiança nos bombeiros, haveria menos confiança no material que então usavam. Hoje, tanto se confia na bomba como no bombeiro. O munícipe sossega.
Também havia, no tempo de meu pai, maior curiosidade ou possibilidade de saber onde era o fogo. Hoje, não o diz a ninguém a lúgubre sereia. O morador desiste de ser curioso ou sai à rua a perguntar: onde é o incêndio?
Graças à pagela, pendurada no quarto de meu pai, sabia ele a qualquer hora, diurna ou nocturna, se havia fogo e em que bairro andaria ele ateado.
Como de facto. A tabela rezava assim:
  • 4 badaladas – Souto, Boa Morte, Calvário, Quebra Costas, Rua das Árvores, Estrada Nova, Eiró, S. Pedro, S. João, Eirinha.
  • 5 badaladas – Fontainhas, Cruz das Almas, Rua do Passo, Carreira, Fundo de Vila, Azenha, Ferrans (?), Rua de S. José, Vila Franca.
  • 6 badaladas – Rua Serpa Pinto, Bordalo, Americano.
  • 7 badaladas – Ameixieira, Senhor dos Aflitos, Rua Custódio José Vieira, Cais de Baixo, Passeio Alegre, Rua João de Lemos, Rua Nova.
  • 8 badaladas – Rua dos Camilos à Ponte, Rua da Alegria, Rua 1.º de Dezembro, Guindais, Midão.
  • 9  badaladas – Fora de Vila
  • Para parar - 5 badaladas.
Copiei a lista de exemplar velhinho e esbotenado. Copiei-a, acertando-lhe a ortografia pelo cânone actual. Mas, tão velho é o espécime, que duvido do topónimo Ferrans – tanto ou quanto safado. Se alguém me quiser tirar dúvidas…
É curiosa a lista de badaladas. Fala-nos de ruas velhas, ruas que mudaram de nome ou o perderam – como a do Passo. Fala-nos da Régua de nossos pais que se pode considerar antiga.
Muito estimaria que alguém me oferecesse um exemplar perfeito dos SIGNAES DE INCÊNDIO. O que possuo não pertenceu a meu pai. Deu-mo um amigo. Mas, tão gasto, que mal o posso ler. É pena… Como folha velha, teria mais poesia se fosse mais legível.

Nota do Autor: Diz-me pessoa amiga que a Rua do Passo, no Peso, é a que vai da Cruz das Almas, em linha recta, às Rua da Carreira. Abre para essa rua a propriedade a que chamam de Gama. Esta informação, que muito agradeço, completa o artigo que intitulei de Sinais de Incêndio”.

Os temas sobre as crónicas dos bombeiros são fragmentos essenciais para completar a história colectiva do seu remoto passado. São pedaços de memórias que permitem refazer com rigor e verdade quem foram os homens e os seus momentos decisivos que revelaram uma determinação e fé inabalável em manter em funcionamento esta maravilhosa obra de ajuda a quem precisa.

Em 1938, no seu primeiro livro publicado, intitulado “Sem Método”, o escritor na Nota XXIX, reconhece a importância social dos soldados da paz da sua terra, ao expressar o seguinte:

“Despedi-me do doutor Feliciano com um abraço amargurado. É que me lembrei desta desventurada terra chamada Régua, tão desenfeliz que nem água tem para beber. Que não tem uma escola. Que não tem um hospital. Que, tirante os bombeiros, não tem coisa nenhuma útil ao comum.”

Mais tarde, o elogio aos bombeiros e à Associação repete-se em “Biblioteca Maximiano de Lemos” (in Pátria Pequena-1963) para fazer um louvor à instituição que revelava dinamismo e uma frescura “física”, em cada aniversário que comemorava.

“Na Régua, é tradição que falhem todas as iniciativas. Falharam as touradas, as exposições fotográficas, o teatro de amadores, o orfeão, a parada agrícola, os desportos náuticos e até o carnaval inventado pelo Chico Pulga. Tudo falhou, menos a Associação dos Bombeiros Voluntários, fundada em 1880, e de ano para ano, mais florescente”.

Na crónica “Uma velha Estante”, publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, o escritor volta à sua infância -  quando teria onze ou doze anos de idade – para reviver o fascínio  das  salas recreativas do primeiro quartel,  onde  reparou  numa velha estante os   livros que nunca mais esqueceu.

“Quando o quartel dos bombeiros funcionou modestamente numa casa situada no actual Largo dos Aviadores, frequentei-lhe as salas recreativas com o meu pai - era eu rapazinho.
Na sala dos jogos, inofensivos jogos de cartas, dominó e quino, lembro-me de ver, encostada a uma parede, uma alta e larga estante de madeira rica, toda envidraçada e repleta de livros.
Creio que ninguém lhes tocava. Quem se entretinha com a sueca, o dominó e o quino talvez nem reparasse na volumosa estante, abarrotada de livros.
Reparava eu... E o meu regalo seria abrir aquela estante e colher de lá um livro para o folhear e ler antes de me deitar. Assim eu o percebesse. Era ainda tão novo… Teria onze, doze anos.
Os meus encantos, naquele clube, eram aquela estante. Mas, sempre fechada e muda. Até que uma noite, e em noites seguidas, a vi abrir. Um senhor, que usava óculos, ia retirando e colocando de novo, no seu lugar, rimas de volumes. Arrecadava-os depois de lhes escriturar os títulos num grande livro de papel almaço.
Livros que nunca mais esqueci. Quando, depois de instalados os bombeiros no quartel novo, alguém me disse que todos esses volumes estavam à matroca, empilhados num monte, sem o mínimo vislumbre de arrumação, caiu-me a alma aos pés. E assim, esteve, de rastos uma porção de anos.
Até que ontem, dia que marquei com uma pedra, vim a saber que os livros já estão arrumadinhos na estante – bela estante de mogno.”

Os bombeiros da Régua fazem mais do que apagar os incêndios. Desde o seu início constituíram uma organização social e humanitária. O seu quartel não guarda só os equipamentos e fardamentos, mas serve como um centro convívio social da comunidade reguense. De acordo com o estabelecido nos estatutos da Associação, os sócios fundadores propuseram-se criar uma biblioteca, desde que os fundos o permitissem. Se assim o pensaram e desejaram, depressa o conseguiram realizar, com a ajuda de Afonso Soares e de muitos beneméritos.

No tema “Primórdios” (in Pátria Pequena - 1963) volta a falar da criação da biblioteca dos bombeiros, criada em 1885, pelo  sócio contribuinte Afonso Soares que, por modéstia, não quis que o seu nome fosse revelado.

“Pena é que o saudoso historiador da nossa vila e concelho mão tenha nomeado o sócio contribuinte, que tanto desejou ver o nosso quartel espiritualizado com uma livraria. Dizemos tanto desejou, porque o seu desejo moveu a vontade do Dr. Joaquim Correia Cardoso Monteiro.
Devemos a um anónimo a fundação, em 1885, da nossa Biblioteca. Se soubéssemos o nome dele, seria obrigação perpetuar-lhe a memória com algum voto condigno. Como não se sabe, imagine-se que foi o humilde benemérito. Algum obscuro artista, amigo da Instrução…
Obscuro não deve ter sido o Dr. Joaquim Correia Cardoso Monteiro, propulsor da luminosa ideia do sócio contribuinte. Inscreva-se-lhe o nome numa lápide se não pudermos eternizar-lhe o retrato entre os nossos livros. Devemos gratidão a esse antepassado.
As coisas são como os rios. Têm origem que, embora tímida, nunca é desprezível. A nossa Biblioteca nasceu em 1885. Ninguém esqueça essa data.
Nascida em 1885, só em 1960, em pleno século actual, veio a ser baptizada. Na província, a marcha de qualquer intuição é sempre lenta.”
(Clique na imagem para ampliar)

Aquela biblioteca foi ainda tema para mais duas crónicas, todas incluídas no livro Pátria Pequena: “Dr. Maximiano de Lemos (in Pátria Pequena-1960), “Alvíssaras” (in Pátria Pequena-1960) “Biblioteca Maximiano de Lemos” (in Pátria Pequena-1963).

Em 1960, a velha biblioteca era enriquecida com a instalação de uma biblioteca fixa da Fundação Calouste Gulbenkian. Os bombeiros passaram a garantir serviço público. Esta biblioteca, a única que existiu na Régua durante muitos anos, passava a ser procurada e frequentada pelos jovens.

Na primeira crónica que foi dedicada a Maximiano de Lemos, erudito historiador da Medicina Portuguesa, nascido na Régua, em 8 de Agosto de 1860, quando os bombeiros se preparavam para lhe fazer uma homenagem, escreveu:

“Querem os nossos Bombeiros inaugurar quanto antes a sua nova biblioteca, renascida do velho armário repleto de livros sem catalogação, e querem dar-lhe o nome de Maximiano de Lemos, fazendo coincidir o acto inaugural com o centenário natalício do nosso conterrâneo. Dois quereres, qual deles o mais gentil… Que vão por diante é o nosso voto.”

Na crónica seguinte que intitulou de “Alvíssaras” elogiava a iniciativa dos bombeiros, que contribuiriam de forma decisiva para a organização das comemorações do centenário natalício de Maximiano de Lemos e que ela tenha encontrado apoio em mais “boas vontades”.

“Parece que vão por diante, aqui na Régua, as comemorações do primeiro centenário natalício do professor Maximiano de Lemos. À boa vontade dos nossos bombeiros vieram sucessivamente, para esse feito, a boa vontade do senhor Provedor da Santa Casa da Misericórdia e a boa vontade do senhor Presidente da Câmara Municipal. Três boas vontades que, somadas, darão de si inabalável querer no cumprimento de uma obrigação.
No dia 8 de Agosto próximo, ao cumprir dos cem anos sobre o nascimento de quem se distinguiu ao ponto de ser querido dos sábios do seu tempo, inaugurarão os nossos bombeiros a sua nova biblioteca, dando-lhe o nome do reguense ilustre. O grande estudioso, que passou a vida entre livros, sorrirá do outro mundo à carinhosa ideia dos seus conterrâneos. Será capaz de vir ajudá-los na escolha, catalogação, arrumação e defesa de boas espécies bibliográficas.”

Em “Biblioteca Maximiano de Lemos” (in Pátria Pequena, 1963), recorda, com sentido de humor, as duas bibliotecas que coexistiram, durante algum tempo, no último piso do Quartel dos Bombeiros:

“A Biblioteca Maximiano de Lemos, inaugurada em 1960, ao comemorar-se o primeiro centenário do seu ilustre patrono, vai ser enriquecida, no próximo mês de Novembro, com uma valiosa colecção de livros da Fundação Calouste Gulbenkian. Diremos, para ser precisos que vai funcionar, dentro da Biblioteca Maximiano de Lemos umas das bibliotecas fixas da Fundação Gulbenkian.
Queremos que as duas bibliotecas não briguem uma com a outra, antes se auxiliem e completem. A de Maximiano de Lemos pobre e velha livraria, herdeira da primitiva estante dos Bombeiros e acrescida de alguma oferta particular. A da Fundação, constituída por livros em barda e todos em folha, será útil ao comum dos leitores. Será própria para os desbravar e lhe estimular o gosto da leitura.”

“Uma grande lição”, crónica publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, foi mais um pretexto para distinguir a acção cultural, em especial dos bombeiros, nas comemorações do primeiro centenário de uma figura pública reguense, de valor nacional, que ele muito considerava, o Dr. Maximiano de Lemos, insigne médico, professor e historiador da medicina portuguesa.

“Nem sempre a Régua adormeceu em pontos de civismo. A 3 de Dezembro de 1960, deu uma grande lição, comemorando, com solenidade, o primeiro centenário do Dr. Maximiano de Lemos - insigne reguense.
Bombeiros Voluntários, Hospital de D. Luís I e Câmara Municipal colaboraram no sentido de não envergonharem a terra com comemorações.
(…)
Diga-se também que os nossos bombeiros inauguraram o ressurgimento da sua livraria, dando-lhe o nome de Maximiano de Lemos.
(…)
O Dr. Alberto Saavedra, homem de Ciências e Letras produziu um belo discurso na inauguração da Biblioteca. Publicado em fascículo, esse discurso é hoje venerável relíquia”.

Em 1978, na crónica “Uma Galera”, publicada no jornal “O Arrais”, lamentava que os bombeiros não possuíssem uma sala museu para guardarem os antigos materiais usados nos incêndios, as velhas fardas e os documentos de valor. Considera que essa atitude é uma falta grave. Mas incentiva ao aparecimento de um espaço no quartel destinado a um museu dos bombeiros. Aquele texto acaba por ter um efeito pedagógico.

Em 1980, um século depois da fundação, os bombeiros da Régua criavam o seu Museu, numa das salas do quartel que decidiram baptizar o Museu com o nome de Dr. João de Araújo Correia. A ideia por ele desejada, acaba assim por ser concretizada, mas sem que a galera voltasse ao seu destino de origem.

“De uma das vezes que atravessei uma vila risonha, apeei-me da burra, como quem diz do carro, para espreitar uma casinha baixa, de portas abertas para um grande largo. Era um quartel de bombeiros…Mas, tão antigo, em seu material, que era um museu de bombas e capacetes, machados e agulhetas, tudo disposto para acudir a incêndio ateado aí cem anos antes.
Estive, vai não vai, para nele pegar nele e trazê-lo para a Régua, oferece-lo aos bombeiros da minha terra, que tinham quartel novo, no trinque, e não tinham guardado, do quartel velho, grandes recordações. Podiam, em edifício à parte, manter aquele museu como saudade do século passado. Podiam oferece-lo à memória de quem fundou, há cerca de um século, a primeira associação de bombeiros da Régua.
Que resta desse tempo? Uma galera, que andou de jó para já até um dia. Consta-me que foi parar, emprestada que não dada, a um quartel do Porto.
Hoje, que os nossos bombeiros ampliaram o quartel, devem chamá-la a si como relíquia dos seus velhos tempos… Já não lhe falta espaço onde a meter e exibir.
Os bombeiros da Régua, que tanto cabedal fazem da sineta de Canelas, que só a Canelas pertence, devem recolher, quanto antes, a galera que só a eles deve pertencer. Venha para a Régua, quanto antes, a galera que levou a muito incêndio, em tempos idos, os bombeiros da Régua. Tanto mais, que é uma linda galera, muito bem conservada… Parece que acabou de sair de mãos de artista.” 
Continua...

- Colaboração de J. A. Almeida - Régua para "Escritos do Douro".
João de Araújo Correia na "Infopédia"
João de Araújo Correia na "Wikipédia"

domingo, 27 de março de 2011

CARTA (IM)PROVÁVEL

Para uma MÃE... para uma Esposa, para um Irmão(a), para um Familiar... para um Amigo(a):


   Não sei o que queres de mim, diga ou faça. Olho-te para lá dos teus olhos, como se quisesse entrar na tua alma, lembro a tua cara de criança, quando te conheci, sorriso aberto e feliz, e é como se regressasse ao tempo da inocência, ao pensamento limpo, sem nódoas. Tanto quis que a nossa vida se desenrolasse em harmonia, com tudo lindo como o teu rosto! Agora, quando te fixo de lado, para, julgo eu, não te distrair, e te vejo de olhar vazio cravado não sei em quê; essas olheiras fundas que não te desaparecem nem que durmas um dia inteiro; essas rugas, antes da idade delas, que vão da testa à junção dos lábios, outrora vermelhos e sensuais, cujos beijos eram o onírico despertar do desejo; esses teus seios caídos e mirrados, antes redondos e firmes, onde aplaquei os arrebatamentos das noites de excessos; esse teu corpo vibrátil mas sempre pudico, abandonado ao cansaço da satisfação – quando recordo tudo isso não consigo encolher as lágrimas.

   Não sei o que queres de mim, diga ou faça. Ficas calada e quieta, como se eu não te pertencesse, como se tu não me pertencesses, mas eu pertenço-te, pertencemo-nos, não sou do teu sangue, mas sou de ti e teu porque fui de ti e teu na luxúria dos corpos, na franqueza da convivência, que é sempre o desnudar recíproco de tudo o que é, no mais íntimo, nosso. Sessenta e cinco anos dão para criar filhos e netos, para se ser feliz com eles novos e não adormecer a pensar neles, mais velhos, enquanto não chegam a casa. Em quarenta anos de comunhão já não há segredos nem originalidades, tudo se conhece de nós e muito dos outros, tudo foi dito. Monossílabas sons, alguns entendo-os porque uma vida inteira dá para perceber até o imperceptível; mas eu queria que te explicasses, porque era importante conhecer essa tua nova vida, o que se passa dentro de ti, o que sentes, se ainda tens consciência e desejo, se ainda eras capaz de recordar a brasa da nossa paixão, quando lá fora nada interessava, e só na nossa solidão preenchida, no nosso egoísmo compartilhado, nascia o amor, a insaciabilidade, o esquecimento.  Era indispensável que me demonstrasses o que aconteceu ao teu cérebro, à tua alma, aos teus nervos, à tua genica que, de tão grande, me confundia, por vezes, naquilo que eu julgava ser uma fuga de ti. Assim, queda e muda, de quando em quando um esgar, que acho de sofrimento ou de repulsa, sem uma reacção ao meu aperto de mãos, sem um esboço de vontade; assim ao teu lado, parece que não tenho ninguém, que vivo só na companhia de uma defunta por enterrar, um isolamento duplo, que já não sei se estou sozinho ou acompanhado.

   Quem diria, quando nos conhecemos, que uma coisa destas te (nos) iria acontecer! A medicina diz que não tem cura para ti. Vais, então até o coração (ou o cérebro) parar, levar esta vida vegetativa, sem te aperceberes de nada, de quando te dou os comprimidos, a sopa passada ou o leite por um biberão, como quando os filhos eram bebés, sem saberes quem é a enfermeira que me vem ajudar e ensinar a lavar-te, a mudar a algália? Será que não quero que morras? Tenho medo que apodreças, cries pústulas, e o teu espírito fuja pela janela de Agosto? Umas vezes, quando, cavalo enfreado, o desespero me toma, tenho ganas de te deixar, nunca mais ver essa tua cara de esquife, de fatalidade, esse rosto que foi tão belo e, agora, um desenho de mímica. Mas não fujo, lembro-me que podia ser eu no teu lugar, e tu, tenho a certeza, nunca me abandonarias. Para lá de tudo, o nosso amor não merece nenhum abandono, nasceu da atracção fulminante do nosso olhar, consubstanciou-se na posse da carne e na mistura do sangue; é tão forte que, mesmo quando não existirmos, havemos – almas invisíveis – de voar sobre a terra, e os que ficarem saberão que nenhuma memória se sepulta. De noite, quando me deito, apetece-me acordar-te; acaricio as tuas coxas, a tua púbis, subo ao teu ventre, aos teus seios, e é como se um cadáver estivesse a meu lado, só a quentura me diz que ainda existes; arrepio-me de ainda te cobiçar, querer possuir-te até ao fundo de mim, de nós, igual àquelas horas em que, loucamente, nos esmagávamos na sofreguidão. Não te troco nem me lembra de o pensar, falta-me a coragem de te substituir. Para onde foi aquela voracidade de viver que me ajudava a disfarçar os instantes de incerteza? Ver-te de olhos brancos, da côr da tua pele, sem um clarão, um lampejo, breve que seja, um sinal de presença partilhada, é um castigo sem culpa que me estremece de revolta. 

   Lembro-me de quando dávamos banho aos filhos ou íamos a correr com eles para o médico, mal qualquer tosse ou febre nos inquietava o sono ou o instinto. E recordo, muitas vezes, nestas alturas, não sei por que absurda  associação de ideias, quando te vi pela primeira vez! Tinhas umas covinhas na cara, uns olhos de Primavera e um riso de Estio. Escrevia-te cartas incendiadas, chamava-te amorzinho e boneca das minhas brincadeiras. Como passa e se transforma a vida! A porteira do colégio, medrosa, entreabria a porta com um sorriso de adorável cumplicidade, pegava no envelope e dizia-me que era a última vez. Mulher corajosa e amorável, que arriscava, aos olhos tentaculares das freiras, o seu emprego, como se aquele amor clandestino também fosse dela ou imaginasse um semelhante. Nas tardes de domingo seguia-te os passos aonde te levavam as vestes negras. Rias-te às escondidas, tapando a boca com as mãos, a Manuela a dar-te cotoveladas, eu a mandar-te recados pelos olhos, e tu encolhias os ombros, desenhavas um coração com os dedos e « Amo-te » com os lábios. Meu Deus!, como se trituram sonhos, se desfazem previsões! Olho as paredes, e apetece-me deitar fora as fotografias em que estamos, esmagá-las sob os meus pés, queimá-las na lareira, arrasar as nossas lembranças, para que nada reste do antigo e que me ofende quando o comparo à idade de hoje. Nem quando te vêm visitar e me misturo, nesse intervalo, no movimento das ruas para não me desabituar do Mundo, te esqueço. És um castigo que não merecia, ainda menos tu, mas és esse castigo que me interroga a ideia de Deus, embora não consiga apagá-la numa certeza, ao ponto de não suportar os sinos das missas domingueiras e ter vontade de mudar de casa para o meio de um monte só com pedras para esmurrar, e ouvir, ao longe, num eco sem fim,  os berros que engulo neste sexto andar. E aí chorar bem alto as lágrimas de raiva, de desgosto, de porquê a mim?, de injustiça sentida como uma ingratidão sem nome. Será possível, meu amor, que te tenha acontecido uma coisa destas, a ti, que foste o sol da minha vida, o corpo do meu ( do nosso ) prazer, a razão de todas as manhãs te deixar com vontade de regressar depressa, de te telefonar duas e mais vezes ao dia com o chefe a perguntar-me se tinha alguma amante, o pessoal a rir-se quando eu dizia que era a minha mulher.

   Como aconteceu isto? Ignorámos, durante anos, que a morte tem o privilégio da impunidade e a vida se sujeita a todas as arbitrariedades julgadoras; que a desfilada dos anos aniquila a espontaneidade  e cimenta a rotina dos silêncios onde mergulham as saudades do que nunca fomos. Não tínhamos à volta, nem em nós, a gelatina da mistificação, conhecíamos as agruras alheias, mas não as víamos na vizinhança dos nossos passos.  Afinal, chegaram, quando nunca as esperávamos.  Já não as conheces; eu, como escolhido, vou ter  que  aprender a fingir que as divido contigo. Quero-te útil até acabares. Vamos, então meu amor, ser vizinhos até ao fim.
- M. Nogueira Borges*, Portugal, 26/2/2010.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Uma Sineta de Palavras - 2

 A presença dos bombeiros na vida e obra  de João de Araújo Correia

“A associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”
João de Araújo Correia


Sem abusar da sua confidência, julgo que não alterarei o rigor da sua dedicatória, se acrescentar que o livro “Pátria Pequena” não foi só escrito e como uma homenagem, à “vila e o concelho do Peso da Régua”. Em grande parte esse seu livro, foi – é e será -  também,  um preito aos bombeiros da Régua, em especial aos bombeiros da velha guarda,  a todos os bombeiros do seu tempo,  como a única gente que teima em representar, neste nosso meio, um papel tão nobre, que a distingue da apatia comum”. Da mesma forma, deve ser entendido como o reconhecimento de uma Associação Humanitária que criou raízes no seu meio social e, por assim dizer, se tornou uma força invencível, obstinada em cumprir os ideais legados pelos seus heróicos fundadores.


Certamente que contar a história dos bombeiros da Régua não foi uma tarefa pensada ou imaginada pelo escritor, no sentido de que desejasse narrar os factos e os acontecimentos com uma ordem cronológica, como se fosse mestre de história. Mas, os temas tratados nas crónicas são uma grande parte da história dos bombeiros. Se nelas há muito das sua memórias também está também retratada a sua relação de amizade com os velhos bombeiros os directores. O escritor de memória em memória, de retrato em retrato e de acontecimento para acontecimento faz enobrecer a grandeza de homens bons e enaltece os seus ideais humanitários.


João de Araújo Correia, nas crónicas que dedica aos bombeiros consegue reconstruir uma parte do passado, obscuro e desconhecido, com génio, humanismo e até ternura por figuras humanas que já se tornaram imortais, em momentos que testemunhou, directa ou indirectamente, da existência uma instituição modelar, no que ela tem de sonho e de paixão, abnegação e heroísmo, grandioso e nobre, mas também de sofrimentos, desânimos, e tragédias que fizeram perder a própria vida a homens, que cumpriram ao extremo o lema do voluntariado: “Vida por Vida”.


Desde o projecto organizado por Manuel Maria de Magalhães, o líder escolhido para comandar o movimento associativo, os bombeiros aparecem referenciados nas inúmeras crónicas que o escritor publicou quer em livros quer em jornais, até ao fim da sua vida, encontrando-se as últimas no jornal O Arrais. Sempre com uma indisfarçável paixão, descreveu os bombeiros da sua terra como uma força invencível, uma força ao serviço de causas com uma dimensão moral e ética, que sempre apoiou.


Com os bombeiros, João de Araújo Correia manteve também uma ligação de sócio contribuinte. Era assim que o dizia na sua correspondência que encontramos arquivada nos bombeiros. Curiosamente, contribuinte era a classificação dos associados, definida nos primeiros estatutos, os que pagavam uma quota fixa em dinheiro para ajudar. Esta classe de associados, onde já se incluiu a D. Antónia Adelaide Ferreira, a famosa Ferreirinha, que se inscreveu como a sócia numero um, foram sempre muito importantes pelos seus contributos generosos nos momentos de maiores dificuldades económicas.


Como já se disse, João de Araújo Correia foi um dos colaboradores literários nas páginas do boletim “Vida por Vida”, folha informativa da Associação. Teve como primeiro director o seu filho Camilo de Araújo Correia que, durante um mandato de dois anos, exerceu as funções de Presidente da Direcção da Associação. Mas o escritor, sempre que lhe foi pedida a sua colaboração literária, respondeu de forma positiva. Escreveu textos e memórias relacionados com os bombeiros para os dois boletins comemorativos que a Associação editou, em 1955 e 1980, datas em que, respectivamente, comemorou as “Bodas de Diamante” e o seu primeiro centenário.


Perante os sacrifícios dos bombeiros, o escritor dizia numa carta que enviou  num dos aniversários da Associação que “a associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”.


Quando nasceu João de Araújo Correia, em 1 de Janeiro de 1899, a Associação dos Bombeiros da Régua tinha perto de dez anos de existência. Das mais antigas do país, encontrava-se numa fase em que havia muita boa vontade e determinação dos seus homens e um sentido de manter, apesar de todos os sacrifícios, um corpo de bombeiros voluntários capazes de cumprirem uma tarefa de protecção civil, então da responsabilidade da Autarquia.


Na história dos bombeiros rezavam a proeza e feitos, agraciados com medalhas e reconhecimentos públicos pelos relevantes serviços prestados às populações da Régua e dos concelhos vizinhos, onde não havia nenhuma corporação, como seja em Santa Marta de Penaguião, Armamar e Mesão Frio.


Em 1882 foi atribuído aos bombeiros da Régua, o título de “Real” , que estes passaram a usar na bandeira desenhada pelo Comandante José Afonso de Oliveira Soares.


Havia também falecido, em finais de 1892, de doença, na sua residência na Rua Serpa Pinto, com a idade de 47 anos, o principal fundador e o primeiro comandante Manuel Maria de Magalhães, o decidido impulsionador da criação dos bombeiros da Régua. Presidiu a uma Comissão Instaladora que depressa redigiu os estatutos da benemérita Associação e o regulamento para o bombeiro, com colaboração do advogado e então Presidente de Câmara, Dr. Joaquim Claudino de Morais, o qual prometeu a ajuda pessoal e da autarquia.


Na crónica “Bons e Maus Exemplos”, publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, -  assinada com o pseudónimo Joaquim Pires -  o escritor evoca um  pormenor da vida pessoal do primeiro comandante, natural de Bragança, mas que viveu e trabalhou na Régua, onde exerceu no Tribunal Judicial, então localizado no rés-do-chão do edifício da Câmara Municipal, as funções de escrivão de direito.


“Contavam os antigos reguenses que o Rei D. Luís, dando o título de Real à associação dos nossos bombeiros, em 1882, se relacionou, amistosamente, com o fundador e primeiro comandante da corporação Manuel Maria de Magalhães.
Contavam também que D. Luís se carteava com ele. Apesar de rei, não se desdenhava corresponder-se com um escrivão. Creio que foi escrivão o Comandante Manuel Maria de Magalhães”.   


O escritor não conheceu pessoalmente o primeiro comandante dos bombeiros da Régua, mas na crónica “Bombeiros da Velha Guarda” (in Pátria Pequena, 1965) confessa a sua admiração pelos primeiros bombeiros alistados, com os quais se relacionou e conviveu, não para lhes bendizer feitos heróicos, mas para retratar os seus exemplos de altruísmo.


“Fim de Novembro, fazem anos os Bombeiros da Régua. Contam oitenta e cinco, mas parece que nasceram ontem. Nem uma ruga, nem um cabelo branco, nem um desalento…Garbosos até no capacete, fazem do seu garbo agilidade, frescura e força. Que milagre!
Confraternizam, em cada aniversário, os Bombeiros da Régua. Depois das cerimónias piedosas e do desfile nas ruas, sentam-se à mesa e comem. Comem bem e gracejam…Mas talvez que nenhum se lembre, nem bombeiros nem contribuintes, de sócios e bombeiros antigos, que também se sentaram, em ágape semelhante para comer e gracejar.
Quem vai contando anos, dos que já fazem mossa, não dos bombeiris, que rejuvenescem, lembra-se da velha bomba e de quem a movia e sustentava.
Lembra-se de Afonso Soares, com a sua barba branca; do poeta Camilo Guedes, de gravata à La Vallière; do José Avelino, que comia um boi por uma perna; do José Ruço, que pertencia ao grupo auxiliar; do Joaquim Maria Leite, o Riço, que pertencia ao corpo activo com alma de criança e alma de bombeiro. Mas, de quantos se não lembra ainda? Justino Lopes Nogueira, o Justino, daria um livro de inocentes recordações alegres.
O quartel dos Bombeiros, situado ali em baixo, na Chafarica, largo dos Aviadores, como hoje se diz, era o clube da terra. Havia outro, mas, aristocrático, presidido pelo monóculo do Dr. Costa Pinto. Clube, ponto de reunião sem preconceitos, era o quartel dos bombeiros. Ali se jogava e conversava à vontade. Ali se davam gargalhadas que faziam estremecer o quartel. Guarda-lhe o eco algum ouvido então adolescente…”.


O escritor lembrou um bombeiro voluntário, o divertido Justino Lopes Nogueira, natural de Santa Marta de Penaguião, que foi conhecido por falar com erros gramaticais. Não se distinguiu não pelas suas proezas heróicas, mas antes pelos seus burlescos e impagáveis comentários.


Em “As anedotas do Justino”, crónica publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, traçou um breve retrato deste humilde 1º patrão – hoje equivalente ao posto de Chefe -  dos bombeiros, à mistura com palavras de ironia e muita  ternura pela sua  humilde figura.


“Bem faz o António Guedes, recordando a Régua do seu tempo. Oxalá o pulso lhe não arrefeça tão cedo para continuar a recordá-la com invejável fluência e graça. Oxalá…
Aqui há tempos, lembrou António Guedes a extraordinária figura do bombeiro Justino. Digo extraordinária, porque não houve quem lhe chegasse aos nós em cretinismo.
Boa figura física tinha o nosso homem. Sólido, com as suas carnes sobre o enxuto, garganta bem timbrada… Mas, não abria a boca sem dizer asneira.


- Comi hoje perdiz com molho de pilão. Soube-me pela vida…
Se disse pilão, quis dizer vilão. Toda a gente sabe que o molho de vilão casa bem com a perdiz.


-Fui à feira. Não estava lá grande coisa. Se não fossem os suíços…
Quis dizer suínos. Mas, coitado disse, suíços.


-Deu-lhe de presente uma apendicite.
Não lhe chegou a língua para dizer pendentif – adorno feminino pendente ao pescoço – por aí pingente.


-Sempre simpatizei com o seu panorama…
Cumprimentou assim um político da época. Mas, em vez de dizer programa, disse panorama. Pouco tempo depois, emendou a mão, chamando programa ao panorama. Que lindo programa!


O Cinema, naquele tempo, oscilava, tremia… Tremia como criança.   Oscilava… Mas, o pobre Justino, que tinha no ouvido, como pulga, o verbo oscilar, deitou cá para fora aperfeiçoado em urcilar.


À gipsófila, que então se pronunciava gipsòflia, planta de flores miudinhas, chamava ele, de modo grandioso… pisgatòfilha!


Não sairíamos daqui hoje se quiséssemos completar o rol de tanta asneira.   Completem-no os velhos, que porventura se lembrem do Justino.
Falta apenas dizer, neste lugar que teve carreira politica, no cargo de regedor, por sua honra, que o atestado supra é pobre.
Homem assim não podia ser só regedor. No declínio da primeira república, subiu de posto. Foi administrador do concelho de Santa Marta de Penaguião. Falta saber se também foi ministro.”


Quem o escritor lembrou de forma comovente na crónica  “Figuras de Barro - Os Bombeiros” (in Manta de Farrapos-1957) foi  o primeiro Capelão dos bombeiros da Régua,  a figura bonacheirona  do Padre Manuel Lacerda de Oliveira Borges e o dia triste do seu funeral, quando  ia  a caminho do cemitério do Peso.


“Perdi a ocasião de ver os bombeiros formados quando morreu o Padre Manuel Lacerda. Passou à minha porta o acompanhamento, a caminho do Cruzeiro, mas não o vi. Se passou de manhã, estaria eu ainda na cama ou andaria para o quintal, onde era vivo e morto nas horas forras das primeiras letras - tinha eu sete anos.
Quem me descreveu o enterro foi minha irmã mais velha, imediata de minha mãe na minha iniciação em espectáculos novos. Disse-me como tinha sido, mas só o fixei, de mo dizer muitas vezes, que o Borrajo levava a bandeira e ia a chorar.
O Padre Manuel Lacerda foi, de todos, o mais benquisto dos reguenses. Morreu de repente, enlutando num pronto a Régua toda. Lembro-me de o ver conversar com meu pai. Que fisionomia! Era uma espécie de coração visto por fora para melhor se adorar. Meu pai, que não era homem de muitas lágrimas, nunca o recordou, pela vida fora, com os olhos absolutamente secos.
Não se pode dizer que o Padre Manuel Lacerda, como padre, tenha sido talhado pelo figurino que os cânones exigem. Mas, como homem, foi um santo homem, um homem alegre, que não podia ver pessoas mal dispostas nem arrenegadas umas com as outras. Onde soubesse que havia desavindos, fazia uma festa, promovia um banquete, fosse lá o que fosse, para os congregar.    Deixou, na Régua, essa tradição benigna.
O Padre Manuel Lacerda foi capelão dos bombeiros. Por isso o acompanharam, de bandeira enlutada, no último passeio. O Borrajo, porta-estandarte, ia a chorar…”


Embora João de Araújo Correia não o tenha confessado, o seu pai António da Silva Correia, solicitador encartado, republicano convicto, nascido nas Caldas do Moledo, foi um dos bombeiros da velha guarda. Tinha pertencido, por algum tempo, ao corpo de bombeiro, mas o seu porte físico não era compatível com a acção exigida a um bombeiro.


Como seu pai deixou guardou a farda de bombeiro e seus adereços no baú das recordações, foi aí que o escritor encontrou a inspiração para o recordar, comovidamente, em “Figuras de Barro - Os bombeiros” (In Manta de Farrapos - 1957),  publicado, originalmente,  no boletim “Vida por Vida”.


“Meu pai tinha sido bombeiro voluntário. Mas, dotado por aí de lenta agilidade, sempre meticulosamente pausado, é crível que as obrigações de bombeiro, subir e descer escadas, de agulheta em punho, em cima de um telhado, fossem incompatíveis com o seu eu, isto é, com o seu físico e o seu moral. Sei que pouco tempo foi bombeiro. Desertou do apito, mas continuou ou fez-se contribuinte. Foi-o até à hora da morte.
Da actividade bombeiril do meu pai, ficou em minha casa, durante algum tempo, uma recordação. Foram os botões, as charlateiras e umas insígnias do uniforme. O que brinquei, com estas maravilhas amarelas, meio oxidadas, só eu sei… O que não sei é como se perderam. Sei que foram, uma após outra, imitando o soldadinho de chumbo do conto prodigioso.
Mas, se o soldadinho de chumbo regressou, para fazer das suas, elas coitadinhas, não regressaram. Vivem apenas na minha memória, isto é, no passado, que se faz presente quando eu o chamo.
Sempre que brincasse com os botões, as charlateiras da farda do meu pai, dizia entre mim: o papá foi bombeiro. Dizia-o como se o tivesse visto fardado, em dia de grande gala, numa formatura resplandecente. Dizia-o por intuição das charlateiras, insígnias e botões meio oxidados, mas ainda áureos bastantes para suscitarem orgulho no cérebro infantil. Se tivesse visto o papá numa parada, com o capacete a arder, numa fogueira de sol, com certeza que a minha vaidade se teria tornado insuportável.
Um homem de luvas brancas, com machado de prata às ordens e a cabeça adornada com um elmo de ouro, não é um homem. É um semi-deus”.
Continua...

- Colaboração de J. A. Almeida - Régua para "Escritos do Douro".
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quarta-feira, 23 de março de 2011

Recortes: Régua, antes... Régua, depois...

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Real Companhia Velha - Atual Museu do Douro

Uma Sineta de Palavras

 A presença dos bombeiros na vida e obra  de João de Araújo Correia

“A associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”
João de Araújo Correia


Quem teve o prazer de ler algumas das crónicas do escritor João de Araújo Correia sabe bem que o Douro, desde o humilde jornaleiro ao abastado proprietário, o seu rio dos barcos rabelos, os seus socalcos de vinhedos, onde se produz o vinho do Porto, foi o seu universo real e literário.

A vila da Régua -  como era ainda designada – e o concelho,  como lugar onde nasceu,  criou, viveu,  trabalhou e morreu, que chamou  de  “Pátria Pequena”,  serviram-lhe de inspiração e  pano de  fundo para escrever  uma grande parte das suas crónicas.

Da íngreme rua de Medreiros - a actual Maximiano de Lemos - onde teve a residência familiar  e um  frequentado consultório médico, João de Araújo Correia,  nas horas de repouso,  estendia o  olhar para a  montanha que lhe  ficava  em frente ao terraço, plena de luz  sobre  o casario de cal branca e os vinhedos fartos pela encostas de Loureiro, Fontelas e o Vale de Jugueiros, em Godim.

Em volta deste cenário gravitavam figuras sagradas do imaginário popular, como ele dizia, as “almas sem penas” do Santo Heitorzinho de Loureiro, do viticultor rico António Borges e do Dr. Mesquita, médico andarilho, enquanto o rio Douro se espraiava na curva da margem do Salgueiral. Se o olhar se deleitava com esta sua paisagem, muitas vezes lhe inspirava os seus pensamentos de cidadão atento e crítico, apontando os erros graves aos que estragavam este equilíbrio natural da sua terra.

Com frequência, o escritor e o cidadão apontavam o desagrado ao poder camarário pelos erros e as fealdades urbanísticas de uma terra que crescia atabalhoadamente, sem nenhum respeito pela preservação ambiental, a falta de asseio e limpeza das ruas e de qualidade de vida numa vila em que não havia uma escola do ensino público secundário, uma biblioteca para os espíritos mais inquietos, um hospital para as urgências médicas, nem sequer um jardim para as crianças brincarem e os mais velhos se refrescarem nas quentes tardes de verão da Régua.

Era assim, a vila Régua, por volta de 1913. A urbe que conheceu como criança durante o tempo em que frequentou a escola primária do mestre Zezinho e fez depois estudos secundários, até rumar para o Porto para, na Escola Médica, estudar medicina.

Alguns anos depois, em 1928, formado em médico, regressou para exercer clínica e fazer-se, por devoção, escritor. A Régua pouco ou nada tinha mudado. Estava quase igual como a tinha deixado, sem alterações de monta no seu espaço geográfico urbano, o que se via pelas mesmas casas e as mesmas ruas.

A maior diferença que notou estava na sua rua, a Rua de Medreiros - hoje Rua Dr. Maximiano de Lemos. Já não encontrou os moradores mais lustres, como o Sr. Silva, contínuo da câmara, o Dr. Zagalo, talentoso advogado boémio, a D. Pantalona, a Joaquina Pinheira, a Mariquinhas Taranta, cozinheira conhecida de Sol da Rua, o Zé Ruço e sua consorte Senhora Ritinha e o maluquinho Tanta-Rua, pregoeiro das festas e dos enterros, todos sumidos e de partida para o outro mundo.

Se o jovem médico encontrou algo diferente na vila do Peso da Régua, foram os bombeiros e a associação humanitária. Aí encontrou uma casa modelar no exemplo do altruísmo e coragem dos seus bombeiros.

Pelo contrário, nos bombeiros encontrou algo mais que um serviço de voluntariado. Os bombeiros eram uma força viva e dinâmica. Desde o seu princípio desejavam fazer mais que a protecção da vida e dos bens das pessoas. No seu edifício sede, no quartel guardavam os seus equipamentos para os incêndios, mas também havia lugar para as reuniões, o convívio social, a leitura e os jogos para quer fosse sócio ou tão só amigo dos bombeiros.

Essa movimentação cívica e cultural em volta dos bombeiros talvez tenha sido o bastante para, nos seus escritos, os aplaudir como cidadãos diferentes, pelos valores éticos e de cidadania activa. Esta era a verdadeira razão que os distinguia numa terra pacata, parada no tempo, sem que ninguém ousasse mudar este desinteressante estado de coisas.

A partir de certa altura, a Associação dos Bombeiros passou a ser motivo da sua atenção como mais ninguém o fez até aos nossos dias. Na verdade, poucos escritores haverá que se tenham lembrado de escrever sobre os bombeiros, de lhes conhecer os nomes, os seus sinais de fogo e tanto os elogiar. Aos bombeiros da sua terra, alguns dos quais conheceu, respeita-lhes os seus valores e mostra a admiração e gratidão pelo trabalho realizado em prole do semelhante, seja a apagar fogos ou a transportar doentes nas velhas e cansadas ambulâncias, a vangloriar o nível e a qualidade das suas iniciativas culturais.

São tantas e tantas as páginas de João de Araújo Correia em louvor dos bombeiros da sua terra, que poderíamos formar uma pequena antologia dedicada exclusivamente ao tema. Só quem conhece da história dos bombeiros da Régua – o que acreditamos ser assunto desconhecido a muitas pessoas -  está  habilitado a  perceber que as suas palavras não foram meramente laudatórias. Elas espelham a grandeza de uma instituição que, nascida da vontade popular, tem mantido há mais de cem anos  um trabalho permanente ao serviço da sociedade reguense.

Por outro lado, o escritor considerava os bombeiros, a instituição como tal, como um bom exemplo de uma sociedade civil que, ao contrário do ambiente geral, estava activa e dinâmica.

Na sua opinião, na vila da Régua tudo morria ao nascer, faltava o mais elementar para a vida de um cidadão, não ganhava sequer raízes. Identificando-se com os valores fraternais dos bombeiros, inerentes à sua dedicação ao voluntariado, não surpreende ninguém o seu humanismo, a cidadania e, sobretudo, respeito que nutria pelos mais fracos e humildes, aqueles que punham os seus talentos ao serviço da comunidade e do bem. É sabido que o escritor admirava os homens simples, generosos, altruístas e abnegados, no cumprimento de missões humanitárias.
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Inaugurada – para usar a palavra dos sócios fundadores - em 28 de Novembro de 1880, num difícil período da monarquia, a Associação dos Bombeiros Voluntários da Régua nasceu da vontade de um grupo de 27 homens generosos  que organizaram uma companhia de bombeiros voluntários para combater os incêndios nas casas e, sobretudo, nos armazéns de vinhos e aguardentes, situados na principais ruas da vila.

Quando ainda não se falava de uma protecção civil municipal, aqueles homens, com os seus quereres e inconformismos, lutas e êxitos, tudo fizeram para garantir o bem estar à sociedade reguense em situações de risco, como os incêndios, os acidentes e as temíveis cheias do rio.

O escritor João de Araújo Correia não encontrou, por acaso, os bombeiros. Teve a sorte de encontrar na sua infância, alguém da família que, para o entreter nas suas irrequietas brincadeiras, lhe deu os adornos de uma velha farda que tinha pertencido e sido usada pelo seu pai, António da Silva Correia (1869-1947), que tinha sido um sócio activo -  um bombeiro voluntário como hoje se diz -  nos primórdios da corporação, quando era comandada por Manuel Maria de Magalhães.

O seu pai, republicano por convicção, foi bombeiro, mas por pouco tempo. Como ele nos segreda numa crónica, faltava-lhe o jeito e a destreza física, o que o terá levado a desistir cedo do voluntariado, continuando, contudo, a mostrar os seus sinais de solidariedade e fraternidade.

Pode ter nascido aí esta afeição que ganhou aos bombeiros que o levou a construir no seu imaginário infantil uma auréola que nunca esqueceu. Mais tarde, numa fase adulta da sua vida, os bombeiros passavam a ter um estatuto de seres humanos fantásticos nas suas criações literárias, a quem chegou a comparar com “Semi-Deuses”.

A paixão desvelada com que os envolveu nos seus escritos não ficou pela admiração que guardou de criança e que guardou fielmente na sua memória. Acompanhando o seu pai, teve a oportunidade de frequentar no primeiro quartel dos bombeiros, situado ao fundo do Largo da Chafarica – hoje conhecido por Largo dos Aviadores -,  numa velha casa, uma modesta biblioteca. Aí os bombeiros guardavam as bombas e pouco material de combate aos incêndios e, no 2º andar, funcionava a parte social e recreativa, um clube frequentado por todos estratos socam e de diferentes credos políticos. Era um lugar franqueado aos sócios, beneméritos e amigos da instituição que se reuniam para conversar, jogar dominó, quino e as cartas, desfrutar a o prazer da leitura dos jornais nacionais e de algumas novidades literárias, que se encontravam num vistosa estante de madeira, se assim se pode chamar, uma pequena biblioteca pública.

Mais tarde, já médico de nome feito, e, consagrado como homem de letras, pelas suas obras “Sem Método” e “Contos Bárbaros”, haveria de publicar nas páginas do boletim “Vida por Vida”, órgão oficial dos bombeiros, entre 1956 e 1974, as suas crónicas que depois seriam coligidas no livro “Pátria Pequena” e ainda de subscrever alguns estudos e apontamentos linguísticos, inseridos no livro “Enfermaria do Idioma”.

E, sobre este boletim, na crónica “Diário da Régua” (in Pátria Pequena, 1958) fez uma breve alusão à sua existência como uma fonte de informação local, mas privativa dos bombeiros.

“Pode-se dizer que a Régua, há cerca de cinquenta anos, teve um diário. Hoje, com mais habitantes, mais edifícios, mais automóveis, publica um semanário. Não importa para o efeito, o nosso boletim, que sai mês a mês, nem sequer passou de boletim…É folhinha privativa de uma Associação de Bombeiros.”

As origens do seu livro “Enfermaria do Idioma” estão contadas numa crónica inserta nas páginas do “Vida por Vida”, onde deu conta do seguinte:

“A Enfermaria do Idioma inaugurou-se aí no Porto, na falecida Revista do Norte, no já recuado ano de 1955, ano em que nasceu, viveu e morre aquela tentativa de publicação literária estreme. Pode dizer-se que morreu ainda como anjinho, porque durou apenas doze meses.
(…)
A Enfermaria do Idioma não morreu com a Revista do Norte. Salvei-a… Peguei-lhe ao colo e trouxe-a para o Douro, para o boletim dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua. Aí viveu até ao mês de Agosto de 67. Não sei se ressuscitará.”

Já quanto às origens do livro “Pátria Pequena”, que tiveram lugar no mesmo boletim de informação dos bombeiros destinado a sócios, no prólogo desse volume, o escritor dava conta aos leitores do seguinte:

“As notas que constituem este livro foram publicadas, quase todas, sem o meu nome, no Boletim Vida por Vida.
Mas, que é isso do boletim Vida por Vida? Responderei a esta pergunta, que o menos curioso dos leitores me faça, dizendo que o boletim Vida por Vida foi órgão da quase secular Associação dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua.
Publicou-se entre 1956 e 1974.Depois, deu-lhe o tranglomanglo. Morreu em flor. Não chegou a dar fruto.
(…)
Compare-se com uma luzinha inocente o boletim Vida por Vida. Veio o tranglomanglo, com boca de raio e pernas de rã, e abufou-lhe. Deu o ar - como se diz, entre comadres, quando se fala de sopro ruim, inimigo do bem e da claridade.
As notas que lancei ao Vida por Vida foram variações de temas gratos à minha índole.”  
Continua...

- Colaboração de J. A. Almeida - Régua para "Escritos do Douro".
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