Quando esta fotografia me chegou às mão, fez-me regressar à Rua dos Camilos, na década de 1980, para junto à mercearia do Sr. Arnaldo Marques, perto da antiga agência do Banco Nacional Ultramarino, assistir à passagem de mais um desfile dos carros de bombeiros da Régua, num dia de um aniversário da associação.
Não foi o velho Buick, de 1930, a reluzir no seu vermelho vivo, que abria o desfile, mas o homem que o conduzia que fez escrever sobre aquele momento. Já há algum tempo, que o António Rodrigues da Silva, o Toninho Pintor, como era conhecido entre amigos, merecia ser recordado como um dos mais abnegados bombeiros. Sempre que revejo a fotografia, sem grande qualidade de nitidez na imagem, lembro-me de bombeiro dos velhos tempos, que ainda conheci, um exemplo de dedicação, boa vontade e de generosidade.
Nascido na Régua, em 1925, sobrinho de um grande bombeiro da velha guarda, o corajoso “patrão” Álvaro Rodrigues da Silva. Por influência deste seu familiar, alistou-se no corpo de bombeiros, nos finais de 1960. Não quis fazer parte do quadro activo. Apenas se fez bombeiro para poder ajudar como motorista e, se fosse preciso, como pintor dos carros e das ambulâncias.
Desde que ficou a fazer parte quadro auxiliares, nunca mais deixou de ser bombeiro. Umas vezes, era mais um dos motoristas dos velhos prontos socorros e das ambulâncias. Outras vezes, para evitar as despesas das oficinas, pintava qualquer carro que não estivesse em condições. Este homem, simples, afável e bem disposto, deixava a sua família, os amigos para ir para o Quartel fazer o que fosse necessário. Não era preciso que a sirene tocasse para ser o primeiro a aparecer e pegar nos carros. Quando o pessoal assalariado, os motoristas profissionais, não chegavam para tanto serviço, era com o Toninho que podiam contar para fazer os transportes de doentes que costumavam dar mais trabalho ou tinham como destino os hospitais do Porto, uma longa distância a percorrer pela velha estrada nacional nº108.
Dessas longas viagens de transportes de doentes que fez vezes sem conta e sem receber qualquer gratificação, o seu filho Norberto Gonçalves recordou uma delas que fez na sua companhia, assim:
“Recordo que numa madrugada depois de chegar de uma festa, bateram à porta de nossa casa, para o meu pai ir levar um doente a sua casa que ficava em Miranda do Douro. Meu pai que estava já deitado, depressa se levantou e vestiu a sua farda para seguir para o quartel, que ficava ainda afastado. Mas antes de sair veio ter comigo ao meu quarto e perguntou-me se não queria fazer com ele aquela viagem. Como eu já era bombeiro e o meu seguro de acidentes estava garantido, disse-lhe que sim ainda meio ensonado. Levantei da cama sem saber para onde íamos. Eu estava cansado de uma grande e divertida noitada com amigos, mas quis fazer a vontade ao meu pai. Lembro-me que me disse que eu podia continuar a dormir na ambulância, enquanto ele guiava. Como havia muita estrada para percorrer, ele pensava que não tardava a acordar, o que não aconteceu, mas ele deixou-me descansar sem me incomodar. Não me lembro de mais nada depois de me sentar ao seu lado. Só sei que acordei para ir com ele tomar um saboroso pequeno-almoço e… depois voltei a adormecer até ao nosso regresso à Régua. Quando acordei, o meu pai já estacionava a ambulância no quartel e me perguntou: Fizestes boa viagem? Ele sabia que sim, meu pai era um às a conduzir. De olhos bem abertos, sorri e percebi a sua troça, mas sentiu-o feliz pela companhia que lhe fiz naquele dia. Eu também estava feliz com a ternura e carinho do meu pai que me tinha deixado descansar de uma noite de folia nas festas do Socorro. Nunca mais voltei a fazer com meu pai assim uma viagem igual. Até ao fim da minha vida, o meu pai será sempre o meu herói”.
Enquanto o Toninho foi bombeiro pintor, o parque automóvel da Associação muito beneficiou. Não havia nenhum pronto-socorro nem nenhuma ambulância que circulasse avariada ou com a pintura estragada. Como era pintor de carros nas oficinas da famosa “Garagem Janeiros”, passou também a fazer esse serviço nas viaturas dos bombeiros, sem qualquer custo para os cofres da Associação. Sempre que fosse preciso dar uma pintura, ele não perdia tempo, chegava a perder noites inteiras, para os deixar em perfeito estado. Das suas mãos saíam a reluzir como novos…! O parque automóvel dos bombeiros, nesse tempo, tinha poucas viaturas, talvez as necessárias… Mas o Toninho Pintor estimava como mais nenhum, o elegante Buick, que cuidava como se fosse o seu próprio carro. E, quando havia oportunidades, a sua felicidade era conduzi-lo, nos desfiles, festas e aniversários e até nos funerais.
Foi um bombeiro admirado e respeitado pelos seus superiores e companheiros. Os bombeiros mais novos gostavam da sua presença. A sua humanidade contagiava-os. Ouviam-no contar as histórias da sua vida. A sua simplicidade fez do Toninho um ídolo no corpo de bombeiros da Régua.
Alguém tinha de lhe reconhecer os seus méritos. A Liga dos Bombeiros Portugueses agraciou-o com as medalhas de mérito, grau ouro e grau prata, que recebeu em 1991 e 1994.
Quando faleceu, em 19 de Setembro de 2005, tinha perto de 80 anos. Se acreditarmos que a vida contínua, esteja onde estiver, ele não deixará de ser bombeiro da Régua, para ajudar como motorista e pintor de carros. No Quartel Delfim Ferreira haverá sempre uma velha ambulância à sua espera, para a conduzir como antigamente ou um pronto-socorro Buick a precisar de uma pintura de um profissional como era o Toninho Pintor.
- Peso da Régua, Outubro de 2010. Colaboração de J A Almeida* para Escritos do Douro 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.
- *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.
Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 15 de Outubro de 2010
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
O Bombeiro Pintor
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1 comentário:
Não fazem parte da minha infância, nem sequer da minha adolescência, recordações de bombeiros com viaturas reluzentes, nem desfiles com fanfarra, tão pouco me lembro de alguma vez ter entrado num quartel de bombeiros…esse mundo nunca foi meu……
Aprendi apenas a respeitar o trabalho e a admirar a coragem dos soldados da paz.
Mas as tuas crónicas, despertam em mim um lado mágico, levam-me para um mundo tão diferente do meu, que me sinto uma criança com olhos bem abertos na admiração do Buick reluzente, de fardas cheias de dourados e brancos níveos, de capacetes reluzentes ao sol, como se de deuses se tratassem….quando te leio, encontro de novo o espanto de entrar num mundo completamente novo…e isso acontece a cada crónica tua.
A doçura com que falas do Toninho, faz-me sorrir….dás-me um bombeiro de carne e osso, que é a encarnação perfeita dos meus deuses-bombeiros: dedicado, brioso do seu trabalho, que respira orgulho pelo facto de vestir a farda e servir os outros com entrega e desinteresse.
Eu sei que há muitos “Toninhos” por esse país fora, que nunca vão ter a sorte de ver o seu mérito reconhecido publicamente e em palavras escritas, por isso mais duradouras, mas eles existem em cada bombeiro que defende quantas vezes com o risco da própria vida, pessoas e bens, e quantas delas sem um simples obrigado.
Joana
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