segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Um jantar oferecido ao primeiro bombeiro do país - Guilherme Gomes Fernandes


Quem mais escreveu sobre os bombeiros da Régua foi, sem dúvida, o reguense José Afonso Oliveira Soares, dedicado sócio -contribuinte e seu comandante de 1892 a 1927. Como protagonista activo, acompanhou de perto toda a história dos seus primórdios, da génese nos finais da monarquia, primeira república e princípios do Estado Novo, que deixou narrada num capítulo do “História da vila e concelho do Peso da Régua”.

Se não fosse Afonso Soares, hoje sabíamos muito menos do que levou um grupo de homens a “inaugurar” em 28 de Novembro de 1880, uma associação humanitária que detinha um corpo de bombeiros, composto de três esquadras. Como seria mais difícil de entender as necessidade de ter homens formados que, na ausência de um socorro municipal organizado, soubessem dar o devido uso à bomba e ao carro de material adquirido pela câmara, já que nas ruas principais da vila da Régua – a Bandeira e a Alegria - se erguiam muitos   armazéns de vinhos e aguardentes, que potenciavam perigosos e violentos fogos urbanos.

Pelo seu testemunho histórico, ficamos a conhecer quem foram os ousados fundadores, nome por nome e distinção e eficácia do Comandante Manuel Maria de Magalhães que materializou o sonho com “a grande actividade e amor de mais alguns sócios, do número dos quais se destacaram José Joaquim Pereira soares Santos e Joaquim Sousa Pinto”.

As memórias de actos de abnegação e heroísmo dos primeiros bombeiros da Régua e os honrosos reconhecimentos públicos concedidos à Associação, são evocados por Afonso Soares com algum desvanecimento. O título de “Real Associação”, concedido, em 1892, por carta do Rei D. Luís I, por ser a primeira grande condecoração nacional, mereceu-lhe uma ampla referência. Também chamou a atenção para singeleza das primeiras instalações, que ficava no Largo da Chafarica e que serviu de “ casa de quartel e recreio onde reúnem os seus associados e nela inaugurou em Janeiro de 1885 uma escolhida biblioteca”.

Depois do que deixou brilhantemente memorizado nas páginas do seu livro História da Régua, Afonso Soares que também foi distinto jornalista, publicou no semanário regional “A Região Duriense”, de 30 de Novembro de 1930, um excelente trabalho sobre a fundação da Associação e do Corpo de Bombeiro. Sem alterar o que já tinha escrito, este trabalho traz novidades e algumas revelações de acontecimentos, completamente desconhecidos, dos primórdios da vida da Associação.

Um acontecimento que destacou estava relacionado com a figura mais importante para os bombeiros portugueses: Guilherme Gomes Fernandes, o Comandante, o Inspector de Incêndios do Porto, o mais medalhado com ouro em concursos e manobras, considerado um herói de todos os tempos.

Foi este homem, mestre e sábio comandante dos bombeiros que, nos finais do séc. XIX, revolucionou as técnicas do combate aos fogos urbanos, os bombeiros da Régua tiveram o privilégio de conhecer. Ele que ficava consagrado ao alcançar um enorme êxito no concurso de manobras, realizado em Paris, em 18 de Agosto de 1900, que alguém recordou desta forma simples:

“Mas, o seu dia de maior glória verificar-se-ia precisamente seis anos mais tarde. Paris. Agosto de 1900. Realiza-se a Exposição Universal na capital francesa e, conjuntamente, um Concurso Internacional de Bombeiros (…)

(…)

A prova dos nossos antigos camaradas realizada no dia 18 de Agosto de 1900 coincidiu com a dos húngaros e americanos. Foi-lhe dado um prazo para resolver o tema do concurso. Em 15 minutos teriam de extinguir o fogo que se manifestava no terceiro andar de um prédio de seis. Não era possível utilizar a escada de serviço nem o quarto andar, e uma outra no sexto. Com material moderníssimo para a época, os americanos gastaram apenas 10 minutos. Mais morosos, os húngaros ultrapassaram o tempo limite, concluído a prova em pouco mais de 16 minutos. E, quando chegou a vez, Guilherme Gomes Fernandes conduz de tal forma os seus camaradas que 2 minutos e 56 segundos depois de a ter iniciado, a sua prova estava terminada!

Para avaliar do êxito alcançado pela exibição dos portugueses bastará referir que muitas das corporações desistiram, por considerarem a inutilidade de competir com os nossos compatriotas e superar o tempo por eles alcançado”.

Já se sabia que, em 1892, o Comandante Guilherme Gomes Fernandes tinha jantado com os bombeiros da Régua, a convite da Direcção e do Comandante Manuel Maria de Magalhães.

O pouco que sabíamos desse jantar estava mencionado num Relatório e Contas de Gerências. Quem verificar as despesas extraordinárias, repara que está assinalado um gasto num jantar, no valor de 582.880 réis, o que suscita a atenção dos mais curiosos.

Nesse precioso documento, para a informação dos associados, essa despesa extraordinária foi justificada não,  como um débito de uma  qualquer refeição,  mas de um importante “Jantar oferecido ao primeiro bombeiro do país, Sr. Guilherme Gomes Fernandes, inspector dos incêndios do Porto e sócio-honorário desta Associação”.

Foi, sem dúvida, um jantar com a presença de uma importante personalidade para os bombeiros da Régua. Se, ao tempo, teve divulgação nada se sabe, mas nos tempos de hoje, deve ser valorizado e referenciado com um acontecimento excepcional para história dos bombeiros.

Sabemos que, durante algum tempo, Guilherme Gomes Fernandes ministrou instrução aos bombeiros da Régua. Era ele que se deslocava pessoalmente e, quando não podia, mandava pessoa da sua confiança. Que o confirmou, foi o Comandante Afonso Soares que, entre outras informações, recordava no referido trabalho jornalístico,  que da primeira corporação de voluntários, o seguinte:

“Recebeu instrução directamente fornecida pelo falecido Guilherme Gomes Fernandes que várias vezes veio à Régua, outras vezes mandava pessoa da sua confiança, pertencente à Corporação dos Bombeiros Voluntários do Porto para aquele fim. O resultado que a corporação obteve da instrução fornecida por Guilherme Gomes Fernandes foi tão proveitosa que, quando aquele bombeiro que tanto ilustrou o seu nome, formou a brigada de bombeiros portugueses para irem à cidade de Lyon, para onde tinham sido convidados, convidou para fazer parte daquela equipe o actual comandante dos nossos bombeiros (Camilo Guedes Castelo Branco)”.

Sendo o Comandante Afonso Soares a lembrar tão importante episódio, não há razão para duvidar que a proveitosa a instrução fornecida por Guilherme Gomes Fernandes elevou o prestígio de um corpo de bombeiro, que tinha poucos anos de existência, mas que esteve preocupado em não ficar ultrapassado na aprendizagem das novas técnicas de combate aos fogos urbanos.

Esta era uma página brilhante que faltava acrescentar na história dos primeiros bombeiros da Régua. Uma grande momento, um exemplo de liderança, responsabilidade e de determinação em formar um corpo de bombeiros, apto e competente na sua missão de socorro. Mais do que uma honra e um privilégio para os primeiros bombeiros da Régua, foi uma oportunidade receberem os ensinamentos de quem mais sabia em matéria de combate aos incêndios. 

Este facto histórico constitui um acontecimento que sobressai no passado da Associação. Se os directores da Associação ao escreverem num documento administrativo o nome de Guilherme Gomes Fernandes como o “primeiro bombeiro do país” desejaram que o jantar que lhe ofereceram não ficasse esquecido, conseguiram que um século depois, voltasse a ser evocado, como que a revelar a grandeza e o valor de um corpo de bombeiros.

Não se conhecendo os motivos que levaram à realizarão desse jantar, não nos enganamos se afirmarmos que só pode ter sido organizado para agradecer o seu trabalho de instrutor daqueles bombeiros, voluntários na opção mas que pretendiam ser profissionais na acção, retribuindo-lhe à sua gratidão.

Gostávamos de saber o que se terá passado no decorrer desse jantar, mas parece que não foi revelado nem sequer documentado por nenhum dos convidados.

Apenas, se pode imaginar que, numa noite de 1892, os bombeiros da Régua e os seus directores, acompanhados pelo Comandante Manuel Maria de Magalhães – que, nesse ano, viria a falecer de doença - tiveram a honra de conviver e de escutar  a Guilherme Gomes Fernandes, o “primeiro bombeiro do país” como o distinguiram,   as suas proezas patrióticas nos concursos  de manobras, enquanto  jantavam…para um inesquecível  momento da História. 
- Colaboração de José Alfredo Almeida*, Peso da Régua, Setembro de 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.

  • *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.


    Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 24 de Setembro de 2010
    Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
    Um jantar oferecido ao primeiro bombeiro do país - Guilherme Gomes Fernandes.
      (Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
    Um jantar oferecido ao primeiro bombeiro do país - Guilherme Gomes Fernandes     

      1 comentário:

      joana disse...

      A minha total ignorância sobre tudo o que se relaciona com bombeiros, começa a ser vergonhosa! Trazes-me um verdadeiro herói, daqueles que só existem nos contos de ficção: um homem inteligente, um estratega brilhante, que usou todo o seu engenho e mestria ao serviço dos bombeiros e da sociedade e que não a limitou á sua corporação: estendeu os seus conhecimentos a outras corporações ensinando, partilhando e levando consigo os melhores de cada corporação para com ele brilharem em concursos internacionais.
      Quem diria que em 1900, bombeiros portugueses se deslocariam a Paris para disputar uma medalha de ouro com outros países, em provas de perícia e eficiência?...uma surpresa e um orgulho para mim….talvez demasiado habituada a considerar que tudo o que é nacional não passa da mediania (tirando umas breves e raras excepções).
      São estes homens, tão especiais que me trazes em cada crónica que me fazem sentir de novo o orgulho de ter nascido neste canto do mundo.

      J.