Conheço Godim desde que me conheço. Mas, no tempo em que me criei, não se dizia Godim. Dizia-se Jugueiros.
Ramalho Ortigão, referindo-se com a maior veemência à Ribeira do Rodo, chama-lhe Vale de Jugueiros - risonho e pingue.
Acontece que as terras mudem de nome ou prefiram, de dois ou três, o que melhor lhes cante no ouvido. Lembram meninas do velho Romantismo, que inventavam, para seu uso, a graça que mais lhe agradasse. Houve graciosas Pulquérias que se crismaram, ficando Elviras durante meses e Genovevas nos meses seguintes.
Seja de Godim o nome da freguesia, e Jugueiros, ao pé da igreja, um dos lugares da mesma freguesia.
Faz-se em Jugueiros, vá lá o nome antigo, uma grande festa no dia da Ascensão, festa móvel que sempre coincide com uma quinta-feira. Quinta-feira da Ascensão…
À parte o biscoito da Teixeira, muito queijo se vende nessa festa. Vende-se o queijo fino e o chamado queijo de batata.
Lembro-me de ver, em urna das festas da Ascensão, a uma e outra banda do caminho, da parte da manhã, entre a Quinta de Santa Maria e o recinto da igreja, duas filas de mendigos horrorosos. Vinham até ali da Idade Média, com repulsivos andrajos, aleijões de toda a qualidade e muita cegueira de olhos estoirados.
Eu tinha-lhes medo. Mas, chegando à igreja, logo esse medo se me desvanecia. Era raro, naquele tempo, que a festa da Ascensão se fizesse sem tumulto ou, como se dizia, barulho. Era o recontro de valentões, que ali convergiam, desafiados, com suas facas, rachas e, se bem me lembro, armas de fogo.
No auge da romaria, rebentava o conflito. Nesse momento, romeiros e romeiras da sangue acomodado começavam a gritar e a fugir.
No ano em que ali me levaram as Senhoras Monteiras, minhas saudosas mestras de primeiras letras, a fuga foi tão rápida, que chegámos num ai ao começo do Salgueiral. Já ali haveria uma farmácia.
Não tenho saudades de romarias tão perigosas. Mas, muitas vezes me lembro do tempo em que visitava, com minha mãe, o alto Senhor da Misericórdia.
Minha mãe tinha grande devoção com este crucifixo. De tempos a tempos, lembrava-se de o visitar, levando-me como pajem - teria eu nove anos.
Era para mim tocante a devoção de minha mãe. Penso que lhe devia o refrigério de padecimentos morais.
Não herdei a fé que amparou minha mãe. No entanto, posso dizer que herdei da sua santidade o sentimento religioso. Nos primeiros tempos da minha profissão, ia a pé, de vez em quando, até o adro da igreja de Godim e ali me sentava, à sombra de um plátano, recordando as visitas de minha mãe ao alto Senhor da Misericórdia. De vez em quando, dizia eu à minha gente, mulher e filhos, que devia ali uma promessa.
Herdei de meu pai a dedicação ao escritor Vieira da Costa, que penava no Salgueiral a infelicidade do isolamento, da pobreza, da surdez absoluta e da cegueira quase completa.
Muitas vezes o visitei, conversando com ele por meio de sinais - palavras que eu rabiscava, com o dedo, no seu lenço de doente.
Não quero aqui repetir o que tenho escrito sobre Vieira da Costa, hábil romancista cedo prejudicado por invalidez. Devo dizer no entanto, uma vez mais, que nem a Régua nem Godim deram ainda, à sua memória, uma luzinha de consideração.
Bem a merecia o escritor malogrado. Deveria ostentar o seu nome a Escola Secundária do Peso da Régua ou a Escola Agrícola do Rodo. Leia-se, para coonestar este preito, quanto escrevi sobre Vieira da Costa.
Foi na Ribeira do Rodo que um dia ouvi, ao amanhecer, uma inesquecível música de passarinhos. Estes defuntos hei-de lembrá-los enquanto me não morrer, no ouvido, a sua recordação. No mundo actual, não os posso ouvir, porque morreram. Matou-os a estupidez humana.
Ribeira do Rodo! Antes de desonrada por construções abusivas, fora de lugar próprio, foi uma das maiores belezas do país. Gozei-a, em rapaz, de uma das varandas da rua de Medreiros. Foi sonho que me não pode esquecer.
A chamada recta do Salgueiral, no tempo em que foi avenida, plantada de viçosos olmos, foi também um dos encantos da terra portuguesa. Ouvi-o dizer a um senhor de Lisboa.
Não quero pôr ponto neste escrito, das minhas recordações de Godim, sem amaldiçoar, uma vez mais, os inimigos das árvores.
- Texto de João de Araújo Correia, publicado num opúsculo dedicado às Festas da Ascenção de Godim. Colaboração de J A Almeida para "Escritos do Douro 2011".