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segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Retalhos da net: CONTOS SOMBRIOS de Mónica Baldaque

Livro de uma escritora da RÉGUA

Transcrição de "O Fio de Ariadne" (Zilda Cardoso) - Quinta-feira, 14 de Julho de 2011

Mónica Baldaque acabou de publicar um belíssimo livro que intitulou Contos Sombrios. Contos inspirados nas memórias de alguém que sabe dizer o que a tocou fundo e a relacionou com o mundo. E isto está escrito no livro do princípio ao fim com estas palavras e com outras.

Os contos são muito bons - são histórias de despedidas, diz-se na contra-capa. Trata-se fundamentalmente de se afastar de uma casa que vai ser vendida e que se tornou um espaço de memórias e de histórias de personagens que ali viveram, que a narradora conheceu e agora evoca. Talvez tenham acontecido, talvez não. A autora conta essas histórias "cheias de lacunas e de abismos" como se as tivesse ouvido a essas personagens no lugar mítico, na casa da Quinta do Douro, onde podiam ter acontecido.

Elas marcam também para a narradora, talvez autora, a despedida de uma época da sua vida que não se vai repetir e de que possivelmente lhe ficaram saudades.

Comovem-me sempre estas histórias não apenas por serem de despedida mas por se inspirarem em memórias de infância, em episódios que a narradora viveu ou que testemunhou ou com que sonhou. O que evoca é a época, o ambiente, a casa, as pessoas e os fantasmas que ali viveram – fez de tudo personagens com os seus conflitos, as misérias, os seus desejos, as sombras, as ruínas…

O que admiro na autora é a sua extrema sensibilidade para as coisas do mundo ou de certo mundo, a riqueza da sua solidão tão produtiva, o silêncio que aprecia e a concentração que alcança na procura do caminho do sagrado em si e naquilo que a rodeia. Admiro os seus conhecimentos, a sabedoria, os seus gostos requintados, a sua arte.

Porém, não esqueço que, ao estar desperta e a prestar atenção à sua voz interior, ao questionar e ao procurar a verdade em cada coisa e em cada acontecimento, ao meditar ou ao reflectir sobre isso, ela está a aproximar-se de Deus pelo caminho da espiritualidade. E está, nos seus contos, a convidar-nos para esse caminho de encontro e de transcendência.

“Há muitas coisas de que não me lembro. Outras, lembro-me de as lembrar. Outras, essas ficam bem nítidas, umas aqui, outras além, e são todas essas que tecem as minhas memórias.

Desde muito pequena que o sei: a minha força, o meu mundo interior nunca ultrapassou os lugares do meu imaginário. Nem vai ultrapassar. Por mais viagens que eu faça, por mais encontros que eu tenha, há um tempo inalterável. E desde criança que lá está tudo, intacto, como um embrulho de raízes.

O som mais longínquo de que tenho memória é o da voz da minha mãe a chamar “mãe”!

Rolava o som pela casa como uma nuvenzinha de partículas frágeis, transparentes, prontas a desagregar-se contra os estores de pano-cru queimados do sol. O som abria-se no quarto do mirante, junto à minha cama, batia na caliça da parede e saía ligeiro pela porta…”

É assim que principia A caveira da tia Assunção. Mónica fala de outros sons – o dos passos, o do vento e o do silêncio das tardes. Este último é o mais excitante dos silêncios.

Espero que apreciem como eu os Contos Sombrios, de Mónica Baldaque.
Por Zilda Cardoso às 16:31
Mónica Baldaque - Nasceu no Douro, no lugar de Ariz, Peso da Régua. O Douro tem uma importância fundamental na sua actividade de pintora, patente em grande parte da sua obra, alguma publicada em livros e catálogos. Profissionalmente está ligada à museologia, sendo conservadora principal de museus. Tem exercido cargos de direcção, estando actualmente nos museus municipais do Porto. Pertence ao conselho directivo da Associação dos Amigos do Museu do Douro e ao conselho cultural da Fundação Eça de Queiroz. Na pintura tem uma vasta obra no retrato e na paisagem. Realizou exposições individuais e participou em exposições colectivas. Integrou o grupo dos artistas convidados pelo Museu do Douro para criarem cinco rótulos para cinco produtores de vinho do Porto. Este é o seu terceiro livro. Filha de Agustina Bessa-Luís.
Bibliografia de Mónica Baldaque no "WOOK"
Clique nas imagens para ampliar. Contos Sombrios de Mónica Baldaque - Edição/reimpressão: 2011 - Páginas: 216; Editor: Ulisseia; ISBN: 9789725686744; Coleção: Ficção; Mónica Baldaque no Google.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Leonardo, o Bombeiro

Leonardo era aprendiz de alfaiate no Peso da Régua.

Rapaz alegre, boa figura, cabelo anelado, pele escura, tocava harmônica e aparecia em todos os bailaricos da terra e aldeias próximas, cativando com a sua despreocupação natural e sã paciência para ouvir os outros nos seus desabafos e tristezas. Ninguém saía triste de ao pé dele. Tinha o dom de despertar no coração das pessoas um sentimento de afecto e de tolerância. Era um rapaz raro.

Filho de uns caseiros de uma quinta no alto do lugar das Caldeiras, subia e descia aquela encosta, ligeiro, as vezes que fossem necessárias ao dia. Saía de casa logo de manhã muito cedo, os galos ainda não cantavam, nem os porcos se agitavam na corte. Depois de tomar uma cevada quente aquecida num púcaro de barro, metia-se a caminho, para chegar a horas de abrir o atelier. Vinha almoçar a casa, e voltava sempre, em passo rápido, assobiando e distribuindo cumprimentos e atenções.

No Inverno, vestia uma samarra com gola de pele de raposa, calçava umas botas de carneira, e nunca se lamentava se chovia, ou nevava, ou fazia frio. Tudo eram razões para se alegrar e agradecer a Deus o estar vivo e tranquilo com tudo aquilo que a vida lhe oferecia.

Desde muito jovem que se alistara nos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, que servia com grande dedicação e espírito de verdadeira solidariedade.

Eu lembro-me bem: nada era tão angustiante como ouvir a meio da noite, no silêncio e na escuridão da noite, a sirene dos bombeiros a tocar, um toque arrastado, insistente. Ouvia-se para além do vale, atrás dos montes, e só silenciava quando todos acorriam ao seu chamamento, e partiam para o combate que os esperava. Às vezes, viam-se as labaredas altíssimas, que pareciam que nunca poderiam vir a ser dominadas! Ardia um armazém à saída da Régua, junto à estação! Um fogo descontrolado, que o vento espalhava perigosamente. Os meios eram escassos, só a valentia dos homens igualava a força das chamas.
Leonardo, na sua casa no alto das Caldeiras, quando ouvia a sirene, vestia-se a correr, a correr passava pela capela a encomendar-se à Senhora das Dores, e corria quinta abaixo até à estrada, onde alguém quase sempre se oferecia para o levar até à Régua numa motorizada ou numa camioneta. Mas às vezes tinha mesmo de correr até ao quartel dos bombeiros!

Sempre lhe valeu a Senhora das Dores, e Leonardo serviu durante anos a corporação, com valentia e altruísmo, sem que nenhum desastre lhe acontecesse.

Um dia, na esperança de melhorar a vida, de conhecer outros horizontes, partiu para África. Essa esperança, que levou tanta gente a abandonar os pequenos deveres de um dia-a-dia de compensações tão pequenas que mal se percebiam... Por lá foi ficando, e a Régua cada vez mais se distanciava das suas memórias. Perdi-lhe o rasto.

Soube mais tarde, muitos anos depois, que morrera por lá, vítima de complicações resultantes de uma febre malária...

Mas ficaram os seus passos, o seu serviço, a sua entrega, registados no tempo da sua passagem pela terra onde nasceu.
- Porto,24 de Setembro de 2011 - Mónica Baldaque
  • NOTA: A autora deste inédito é natural do Peso da Régua (lugar de Ariz). Filha da escritora Agustina Bessa Luis (Maria Agustina Ferreira Teixeira Bessa), licenciada em pintura pela Faculdade de Belas Artes em Lisboa, foi conservadora dos Museus Municipais do Porto e Diretora dos Museus Nacionais da Literatura e de Soares dos Reis. É ainda autora de uma vasta obra plástica, na área do retrato, da paisagem e a ilustração, e dos títulos infanto-juvenis 'Do Outro Lado do Quadro', 'A Folha do Limoeiro' e 'Pequeno Alberto', 'O Pensador'. Publicou recentemente o livro Conto Sombrios, editada pela Ulisseia, um conjunto de 24 histórias sobre parte das memórias da autora ligadas à infância no Douro.
  • Encontre Mónica Baldaque no Google.
LEONARDO, O BOMBEIRO
Jornal "O Arrais", quinta-Feira, 06 de Outubro de 2011
(Click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)

Desenhos da autoria de Margarida Almeida, estudante, natural do Peso da Régua. Clique nos desenhos acima para ampliar. Colaboração de texto e imagens do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Outubro de 2011.