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quinta-feira, 4 de abril de 2013

AS VIRTUDES DOS ANTEPASSADOS - VIRTUTIBUS MAJORUM

O Sr. António Guedes Castelo Branco, nosso conterrâneo, a quem nos liga mútua e velha estima e consideração, as quais se processaram ao longo de larga vivência, a nível de duas famílias quiçá o único sobrevivente de uma geração que, mercê de polifacetadas eclosões espirituosas – a que não foram alheias os manes de Pai Camilo e sua brilhante contemporaneidade -, sacudiram a então pasmaceira provinciana do burgo reguense, vem abordando, em substancial e não menos relevante colaboração, no Arrais, situações inerentes a um passado naturalmente saudoso, para quem ultrapassou os 80 anos de idade.

De passo que fixa e retrata tipos locais dos quais o decantado polícia da Régua é expressão superlativa, inserta na estruturação, revisteira da época, em situações pouco sérias, tocadas de certo sentimentalismo inevitável, em ordem a caracterizar estilo próprio, não lhe é possível abstrair de outros que, com perpassarem, pé ante pé, pelos recôncavos de um feliz anonimato o qual, em todas as épocas, se assinalaram e assinalarão, nas sociedades humanas, não lograram o propósito, neles visceral, dado o rasto luminoso, que deixaram, e se oferecerem à admiração dos coetâneos e vindouros, interessados nos valores culturais dessas épocas.

É o caso de Anastácio Inácio Teixeira, cuja personalidade, impregnada de humildade, só aos eleitos está reservado por condicionalismos predestinatórios, os quais se furtam, por vezes, à penetração do comum dos mortais.

Vimo-lo, de óculos encavalitados no nariz, curvado, em atitude ascética, à maneira do Aleijadinho(1), no Santuário do Congonhas, sobre o bloco de cantaria, com mãos peritas, munidas de escopro e macete, silenciosamente, quase furtivamente, ir afeiçoando aquele aos motivos ornamentais, que enriquecem a fachada do edifício sede dos nossos Bombeiros Voluntários. E quando havia dúvidas técnicas a respeito da exequibilidade de determinado pormenor de obras(2), Anastácio, sentindo em si a firmeza dos obstinados, lá ia prosseguindo na tarefa, a que votara toda a alma, quiçá sorrindo, interiormente, convicto, por longa e profícua experiência e devoção, que dele fez um Artista, de que é no caso, precisamente, que  o sol irradia os revérberos mais fulgentes, até que chegou o momento no qual, parafraseando Afonso Domingues, na Batalha, poderia afirmar – o arco não caiu… o arco não cairá.

Remonta, como é sabido, à pré-história o momento em que o homem, ao adquirir consciência do seu destino, passou a expressar, por via da Arte os anseios quer de ordem material, quer de ordem espiritual.

No âmago das civilizações que no mundo antigo se estabeleceram nas margens dos grandes rios e, posteriormente, na bacia do Mediterrâneo, de par com Artistas cujo nome passou à posteridade, vinculada a obras de  projecção indelével no consumar dos séculos, outros não menos fecundos e relevantes permanecem ignorados. Se é conhecida a paternidade do Partenon, de Pietá e da Mona Lisa, por exemplo, não é a dos templos de Karnak e Luxor, a dos baixos relevos do vale do Nilo, a dos palácios da Babilónia e Assur, a que animou igualmente o fogo sagrado.

Pelo que ao nosso país e, particularmente, respeita à nossa região, solares, cruzeiros, tempos, oleografias e mais partes estéticas, com ir de encontro ao asserto, documentam a capacidade conceptiva de ascendentes os quais, em época pouco propícia ao acesso de artistas consagrados, cuja acção se confinava aos grandes centros populacionais, mormente Lisboa e Porto, e, na verdade, a Capital do Alto Douro, não obstante se afirmar, desde que o vinho brotou dos seus geios, como centro de actividade marcante na economia nacional não passar era, então, modesta Póvoa a qual aponta, hoje, para promoção cabal.

Há qualquer coisa de místico nestes artistas ignorados, que tudo sacrificaram e sacrificam, numa renúncia sobrelevante a paixões materialistas, demiurgos de um idealismo, o qual, nem sempre, se abre à prospecção anímica de quem os observa. E Anastácio, ao jogar, na mesa da consciência, a cartada dos bens adquiridos através de sacrifícios inauditos, para ganhar bens espirituais, polarizados na catedral dos seus sonhos, bem merece que o recordem os vindouros, no local, onde, do holocausto, resultou a obra da qual, irmanados com os nossos Soldados da Paz, nos orgulhamos.

Erguida sob o risco de Oliveira Ferreira sedia-se a Associação Humanitária dos Bombeiros do Peso da Régua, na verdade, em autêntica catedral. Se as outras são catedrais da fé, que revela aos humanos os mistérios da escatologia transcendente, esta é catedral do bem, do qual, no plano terreno, é susceptível de os libertar de paixões mesquinhas e, em contrapartida, de lhe ir buscar ao subconsciente o que de bom lá se encontra oculto, em circunstâncias conjunturais.

À virtude dos nossos maiores! Que a legenda seja farol que guie o deambular dos homens, pelas vereadas do porvir.
- José António de Sousa Pereira - Publicado no jornal o Arrais, edição de 19 de Janeiro de 1979.
  1. - António Francisco Lisboa, o qual, vítima de lepra nervosa, que lhe mutilou as mãos, com os instrumentos de trabalho amarrados aos cotos esculpiu, em pedras de sabão, as estátuas dos doze apóstolos, que adornam o átrio daquele Santuário.
  2. - O pormenor reportava-se ao fecho da corda do grande arco da volta redonda, que realça na fachada, hoje repetido na segunda fase da obra.
Clique nas imagem para ampliar. Imagens e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Edição de imagem e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Março de 2013. Atualizado em 4 de Abril de 2013. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.                 

quinta-feira, 28 de março de 2013

A “pátria pequena” e os valores humanitários

Ana Ribeiro*
O bem comum mais precioso é o homem. Como quem diz: somos nós. 
João de Araújo Correia em Pátria Pequena.

Em 1977, Pátria pequena veio juntar-se ao já extenso rol de publicações de João de Araújo Correia. Tal designação traz à lembrança títulos como Pátria (1896), de Guerra Junqueiro, ou A minha pátria (1906), de Ana de Castro Osório. Distancia-se deles, no entanto, ao circunscrever um recorte daquela que, por contraste, poderá ser considerada a pátria grande. Esse retalho corresponde, como o autor esclarece na nota introdutória, à “vila e concelho do Peso da Régua”, aos quais também dedica o livro. Num primeiro plano, este título, à semelhança de Terra ingrata ou Montes pintados, fornece a representação de um espaço, cuja exiguidade é várias vezes referida ao longo da obra.

A “pátria pequena” de João de Araújo Correia é, porém, muito mais do que um território, pois esta figuração metafórica expressa sobretudo a relação profunda que o escritor mantém com este local. Quando declara “Aqui nasci, aqui vivo e aqui morrerei sem espírito provinciano”, faz dele uma espécie de casa onde passou a sua vida, convertendo-o num espaço íntimo da maior importância na sua geografia sentimental.

Enraizado no seu torrão natal para a vida e para a morte, nem por isso deixa o autor de o transcender. “Sem espírito provinciano”, ele é um cidadão do mundo fiel às suas origens, mas de vistas alargadas. Somada à sua estreita ligação ao meio onde decorreu a sua existência, esta característica legitima o projecto que desenvolve nos diversos textos coligidos em Pátria pequena. Na nótula de abertura, o autor apresenta-os como “setas de papel disparadas pelo meu arco, sempre insofrido, contra fealdades e vícios de cunho provinciano” que afectam a Régua e arredores. Como dirá na crónica “De boa mente”, onde realiza o balanço de três anos de publicações mensais no Vida por vida, “não mira outro alvo que não seja quanto a deslustre ou prejudique”.

Na identificação desassombrada das males de que a sua terra padece, o escritor reguense parece transferir para a sua “pátria pequena” aquele comportamento tão típico dos portugueses, que, como diz Barry Hatton, “são mais críticos de si mesmos do que os estrangeiros”. No entanto, é a sua afeição por ela e o seu espírito cívico que assim o determinam: “É admissível e até louvável que o natural da Régua diga mal da sua terra por amor, isto é, com o intuito de a corrigir de algum defeito grave ou esvoaçante pecha que a deslustre” (“Pobre Régua”). À semelhança de José Correia de Magalhães, que cita em “Música de Poiares”, João de Araújo Correia pretende “fazer da Régua uma vila perfeita”. Tal aspiração, partilhada “por quem se distingue do barro comum”, não será alheia à responsabilidade associada ao estatuto de capital do Douro, pois, como o escritor recorda em “Escolas técnicas”, “A Régua é o Douro, região com características de autêntica província. É a capital do país vinícola mais célebre do mundo”.

A denúncia com objectivos terapêuticos traduz-se num retrato da Régua no século XX, uma vez que, embora redigidos na segunda metade deste século, os textos não excluem a convocação do passado recente. Note-se, no entanto, que os antecedentes desta actividade remontam ao Sem método (1938), a obra inaugural do autor. De facto, nas “notas críticas de certeiro jacto” de que fala Vergílio Correia no prefácio da 1ª edição, João de Araújo Correia identifica na sua terra chagas como o descaso pela memória, o esquecimento de vultos ilustres que nela nasceram ou viveram, a ausência de estruturas básicas de saúde e de assistência social, o desperdício de potencialidades turísticas e agrícolas, o bairrismo estéril, a descaracterização de hábitos (num prenúncio de globalização) e a fúria arboricida. Cerca de vinte anos depois, estes temas regressam nos textos recolhidos em Pátria pequena. É caso para dizer que se mudam os tempos mas não se mudam as vontades. Daí que, em “Alvitres”, o autor ironize: “Parece-nos a nós […] que os nossos estímulos, a bem do nosso meio, já não têm conta. /O que conta é o efeito que produziram. Matematicamente, é igual a zero. Poderá haver maior consolação?”. No entanto, a indiferença que acolhe as suas sugestões não faz esmorecer o seu zelo, como bem revela uma alusão à “Parábola do semeador” na crónica “De boa mente”: “Que faz porém quem nada mais deseja que ser semeador? Semeia… Se a semente cair em bom terreno, muito bem… se cair em mau terreno, paciência…” . Espécie de Cristo a pregar no deserto, só o amor inquebrantável à sua terra justifica que, entre 1956 e 1974, apesar de algumas interrupções, persista na sua intervenção cívica nas páginas do Vida por vida, o jornal dos Bombeiros locais.

Por outro lado, diz também muito do meio que o envolve o facto de, durante quase vinte anos, nele continuar o escritor a encontrar motivos que justificam a sua acção pedagógica, reincidindo até em alguns, como a defesa das árvores e a imperiosa necessidade de criar espaços verdes na Régua, a inaceitável decadência das termas do Moledo, a urgência de preservar os miradouros e de os tornar lugares convidativos à contemplação da paisagem, o resgate do esquecimento de reguenses de vulto como Vieira da Costa e Maximiano de Lemos e a falta de educação e de civismo que afecta alguns dos seus conterrâneos.

Não quer isto dizer, no entanto, que a pena de João de Araújo Correia seja atraída apenas pelo lado negro da sua terra. Como afirma em “Pobre Régua”, “Criticar é apreciar, é distinguir, na coisa criticada, os valores negativos e positivos”. Por isso se revolta, na mesma crónica, contra aqueles que, munidos de critérios desajustados, deixam escapar aquilo que torna um local único, conferindo-lhe uma identidade própria: “Quem sai da cidade sem nada na cabeça, mas com a bitola do Porto ou de Lisboa, diz mal da Régua como diz mal de Mirandela. Diz mal das terras pequenas, porque não são grandes. Do gracioso e do pitoresco não cura. Só lhe praz o colossal”. Mais uma vez, a “pátria pequena” inspira ao autor dos Contos bárbaros um patriotismo idêntico ao dos portugueses pelo seu país natal, os quais, no dizer de Barry Hatton, “são facilmente susceptíveis a estrangeiros desaprovadores”.

Pequena, mas não desprezível, a pátria de João de Araújo Correia detém, pois, potencialidades que deve explorar sem, contudo, se descaracterizar. É neste sentido que vão as sugestões do autor, as quais, numa dialéctica entre tradição e inovação, pretendem abrir caminho para um futuro alternativo a um presente pouco auspicioso.

Tal como ele a vê em meados do século passado, a sua pátria carece de atractivos quer para os naturais, quer para quem a visite: não tem um parque, não tem vida cultural, não tem monumentos, não tem locais de onde se possa desfrutar a bela paisagem envolvente, não tem escolas que possam contribuir para o desenvolvimento da região, não tem asseio nem maneiras, não tem uma rede local de transportes públicos, não oferece espaços agradáveis de alojamento e restauração, é barulhenta, tem muitos carros e condutores incumpridores...

Nada há de fatal, no entanto, neste cenário, pois, na óptica do escritor, não faltam recursos ao concelho da Régua para mudar de rumo. A começar pelas condições naturais, propícias ao turismo e à floricultura, por exemplo. Para além da natureza, também o passado é apresentado, sem contradição, como uma fonte de renovação. A ele se hão-de ir recuperar iniciativas como a parada agrícola, a tourada, as bandas de música ou os grupos de teatro, ou seja, aspectos que fazem da terra do nosso contista mais do que um entreposto vinícola. Ela pode também embelezar-se recuperando trechos como a estrada do Rodo, com as suas amoreiras. Desse passado fecundo, do qual se traça um retrato eufórico, deverá manter-se ainda a tradição dos queijinhos e do requeijão fornecidos pelas aldeias vizinhas, e ícones como o barco rabelo e o carro de bois, “relíquias da nossa terra ameaçadas de morte”. A memória e identidade locais também não podem dispensar os “reguenses ilustres”, imortalizados em nomes de ruas ou em monumentos. O antigo jornal diário também deve ser ressuscitado, para “defesa e ilustração” da capital do Douro. Enfim, a criação de escolas técnicas e o exemplo de outras terras são alguns dos estímulos para que a Régua deixe de ser uma “princesa indolente”.
Se criticar, como vimos acima, é também apontar os aspectos positivos, os Bombeiros Voluntários do Peso da Régua cabem certamente nesta categoria. Oriundos desse pretérito glorioso, não tiveram o mesmo destino efémero de muitas criações de outrora. Na sua crónica “Biblioteca de Maximiano Lemos”, João de Araújo Correia assinala precisamente a excepcionalidade da sobrevivência da corporação local de Bombeiros entre fracassos de diversa ordem: “Na Régua é tradição que falhem todas as iniciativas. Falharam as touradas, as exposições fotográficas, o teatro de amadores, o orfeão, a parada agrícola, os desportos fluviais e até o carnaval inventado pelo Chico Pulga. Tudo falhou, menos a Associação dos Bombeiros Voluntários, fundada em 1880 e, de ano para ano, mais florescente”. Ao perdurar vigorosamente, a corporação de bombeiros poderá constituir um exemplo a seguir, demonstrando que o sucesso é possível.

A vitalidade desta instituição está bem patente nos textos que inspira a este seu admirador e entusiasta apoiante. Diga-se a propósito que logo a segunda crónica de Pátria pequena, “Uma relíquia”, de 1956, os traz à liça. O mesmo sucede numa das últimas, “O pelourinho de Canelas”, de 1971, o que sugere uma certa continuidade da presença deste tema ao longo dos anos. Registe-se ainda que, se a primeira crónica assinala os setenta e seis anos da corporação, a segunda evoca o aniversário do seu jornal, o Vida por vida.

Também as crónicas “Novembro” e “Bombeiros da velha guarda”, de 1963 e 1965, respectivamente, celebram natalícios dos Bombeiros. Constituem, por isso, atestados da robustez do corpo de Bombeiros, ao mesmo tempo que expressam o regozijo do autor com tal efeméride.

Este sentimento é indissociável do envolvimento do escritor na missão humanitária daqueles que sempre designa como “os nossos bombeiros”. Se não foi bombeiro como o pai ou presidente da Associação como o filho Camilo, nem por isso deixou de contribuir para o futuro de uma instituição com propósitos tão semelhantes aos da sua profissão. Com a discrição da abelha no seu casulo, foi da escrita que se serviu para fomentar o progresso dos soldados da paz da sua terra. Neste aspecto, a actuação de João de Araújo Correia é talvez única no país, já que nenhum outro dos nossos escritores, ao longo da sua vida, terá dedicado na imprensa tantos textos aos Bombeiros seus conterrâneos. Neles enaltece publicamente a nobre missão dos soldados da paz, iluminando com as suas palavras um recanto da sociedade geralmente deixado na sombra.

Por outro lado, a existência de Pátria pequena é, por si só, bem reveladora da ligação estreita entre o escritor e a corporação dos “nossos bombeiros”. Como explica na nota introdutória a este volume, foi no boletim Vida por vida, “órgão da [então] quase secular Associação dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua”, que surgiram pela primeira vez, raramente identificados com o seu nome, os textos que esta obra reúne e reivindica como seus. Ao alimentar as páginas do órgão da Associação com as suas 121 crónicas, o contista duriense contribuiu certamente para a afirmação e robustecimento de ambos.

O júbilo do autor não decorre apenas de o aniversário dos Bombeiros, à conta de se festejar há muitos anos, se ter tornado em mais uma tradição que, no penúltimo mês do ano, como reflecte em “Novembro”, se veio juntar aos santórios, aos diospiros, aos almanaques e às castanhas assadas. De facto, estas crónicas de comemoração servem ainda para assinalar a invulgar juvenilidade destes Bombeiros com mais de oitenta anos. É que, e ainda segundo esta mesma crónica, eles, “ao contrário de nós, que somos mortais, remoçam com a idade”. Ao salientar este fenómeno, João de Araújo Correia torna patente a cadeia intergeracional através da qual a vida dos Bombeiros se renova, contrariando o esmorecimento do seu projecto humanitário. E assim deve ser, pois, como prossegue, “É objecto que os nossos Bombeiros vivam sem envelhecer”. 

Tanto em “Novembro” como em “Bombeiros da velha guarda”, o autor do Sem método não deixa também de referir a forma como os Bombeiros celebram o seu aniversário. Na primeira destas crónicas chama-lhe “velha tradição”, na qual vemos não só o reflexo de uma existência, ao tempo, quase centenária, mas também um dos suportes da longevidade da instituição. Segundo esta mesma crónica, tal tradição consiste apenas num “jantar fraternal”, associando assim ao jantar os valores que norteiam a actividade dos soldados da paz. Em “Bombeiros da velha guarda”, há um retrato mais completo da forma como os Bombeiros comemoram o seu aniversário: “Depois das cerimónias piedosas e do desfile nas ruas, sentam-se à mesa e comem. Comem bem e gracejam…”. A vida da corporação é, pois, marcada pela jovialidade, pela boa disposição e pela camaradagem. Os valores religiosos também fazem parte do ADN dos Bombeiros, assim como a sua ligação à comunidade, para a qual se exibem em trajes de gala.

Logo pelo seu título, esta crónica apresenta um pendor evocativo que no texto se desenvolve através de recordações várias. Em primeiro lugar, “os sócios e bombeiros antigos” que já participaram neste convívio anual. Numa luta contra o esquecimento e o anonimato, o autor constrói uma espécie de memorial, no qual reúne nomes mais ou menos sonantes, todos eles irmanados numa causa comum: “Lembra-se de Afonso Soares […]; do poeta Camilo Guedes […]; do José Avelino […]; do José Ruço […]; do José Maria Leite, o Riço […]”. Esta mescla de homens de origem social diversa que partilham valores afins torna patente a natureza democrática dos Bombeiros, bem explícita quando João de Araújo Correia afirma: “Clube, ponto de reunião sem preconceito, era o quartel dos Bombeiros”. Sinal desta sã convivência entre escalões sociais diversos são talvez as “gargalhadas que faziam estremecer o quartel”. Aliás, na evocação do autor, é a boa disposição que caracteriza esses bombeiros de outros tempos: “Pelo que nos toca, ou toca aos nossos Bombeiros, recordemos os da velha guarda, tão garbosos como os de agora, mas, muito mais alegres, mais divertidos, mais despreocupados”.

Para além das pessoas, a rememoração do passado da corporação não dispensa a referência às suas antigas instalações “na Chafarica, no largo dos Aviadores, como hoje se diz”, informação que também regista as alterações na onomástica da vila, aspecto que mereceu a atenção do autor em “Nomes de ruas”, incluído no mesmo volume.

Estas recordações fornecem a João de Araújo Correia o ensejo para chamar a atenção para a necessidade de escrever a história dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua: “Tempos simples aqueles! Falta escrever-lhes a história”. Ao longo de Pátria pequena, é recorrente a preocupação do escritor com a preservação do passado. Para além da dos Bombeiros, falta “a história de notabilidades nossas – de raiz ou adoptivas” (“Reguenses ilustres”), “a história dos Artistas da Régua” (“Escolas técnicas”) e mesmo a história do teatro na vila (“Teatro na Régua”), capítulos que viriam completar a História da Vila e Concelho do Peso da Régua (1936-1938), da autoria de Afonso Soares. A causa da insistência na importância do passado encontramo-la em “Primórdios”, onde afirma: “As coisas são como os rios. Têm sua origem, que, embora tímida, nunca é desprezível”. Esta sua cruzada contra o esquecimento dos tempos pretéritos embate na indiferença da sua “pátria pequena”, já que “a Régua não tem amor a velharias, que são o pergaminho das localidades” (“Pobre padre Carminé”). A história dos bombeiros, que dá corpo à sua longa existência, ao permitir tomar consciência de um labor continuado de obreiros vários, torna-se relevante para um melhor conhecimento da instituição e, ao mesmo tempo, da terra onde lançou raízes e se desenvolveu.
Aniversários, tradições e história não teriam razão de ser se não fosse o relevante papel que os Bombeiros desempenham na sociedade, particularmente na “pátria pequena”, a qual, de acordo com o Sem método, “tirante os bombeiros, não tem coisa nenhuma útil ao comum”. É sabido que, após a publicação do livro de estreia de João de Araújo Correia, outras instituições se vieram juntar aos Bombeiros no zelo pelo bem de todos, mas tal libelo mostra bem como os Bombeiros são indispensáveis à colectividade. Mas se é verdade que a comunidade tem nos Bombeiros um dos pilares da sua existência, estes também não sobrevivem sem ela. Isto mesmo se depreende do agudo apelo que João de Araújo Correia dirige aos leitores do Vida por Vida em “Socorro!”. O título não podia ser mais adequado, já que se trata de um pedido de ajuda. No entanto, contrariamente ao habitual, são os Bombeiros que precisam de auxílio para desempenhar da melhor maneira a missão humanitária de transporte de doentes que lhes compete, tarefa para a qual é fundamental a aquisição de uma nova ambulância. Com a sua clarividência habitual, o escritor sublinha que, ao aderir a esta causa comum, é a nós mesmos que estamos a ajudar, pois “Ninguém dirá, vendo passar a auto-maca: de ti, estou eu livre”. Nesta sugestão de que o puro altruísmo não existe parece o nosso escritor ir ao encontro da irónica máxima que Nietzsche apontou no seu Crepúsculo do ídolos: “Ajuda-te a ti mesmo: então todos os outros te ajudarão. Princípio do amor ao próximo”.

À semelhança de “Socorro!”, a crónica “Acudam-lhe”, tal como o título anuncia, também encerra um pedido de auxílio. As atenções voltam-se agora para a Ceia de Cristo existente na igreja matriz, obra de Pedro Alexandrino degradada pelo tempo. Neste caso, os Bombeiros são chamados, como habitualmente, a prestar assistência, mas num domínio bem diferente daquele em que costumam intervir. Entre a Casa do Douro e a Associação dos Bombeiros, o escritor prefere esta última para acolher o painel setecentista depois de recuperado. Com uma certa dose de humor, argumenta que os Bombeiros, “bairristas por excelência, defendê-lo-iam de todos os ultrajes, nomeadamente o fogo”. É o amor deles à “pátria pequena”, comprovativo da ligação profunda que os liga à sua terra, que os torna os melhores guardiães dos tesouros que ela possui e não deve perder. A sua missão humanitária vê-se assim complementada por uma vertente cultural.

A ser aceite a sugestão de João de Araújo Correia, não seria a tela religiosa o primeiro objecto com história a ser albergado pelos Bombeiros. Ela iria juntar-se à “sineta que alarmou os povos em 1808”, “relíquia” exibida, em 1956, pela “cobertura da nossa casa, como quem diz, [n]o telhado do nosso quartel”. Estas mesmas instalações seriam, provavelmente, o destino do “Pelourinho de Canelas”, se o desafio lançado nos quinze anos do Vida por vida desse fruto. Preciosidades provenientes do concelho que, em 1853, foi extinto a favor da Régua, fazem parte da pré-história do novo concelho. Nestas circunstâncias, seriam, pois, os Bombeiros a suprir a inexistência de um Museu da Régua, equipamento cultural que o escritor também antecipa em “Fontainhas”. Neste texto de 1958, João de Araújo Correia acalenta ainda o sonho de “uma bibliotecazinha municipal”. Acudindo mais uma vez a uma carência da vila e do concelho, é precisamente pela sua biblioteca que os Bombeiros se impõem na paisagem cultural reguense da segunda metade do século XX.
Ao longo de Pátria pequena, nenhum outro aspecto da vida da corporação ocupa tanto a atenção do escritor como a biblioteca. Tal traduz certamente o relevo que atribui a esta iniciativa, a qual, segundo o autor, numa crónica não coligida neste volume , visa “provocar o amor à cultura, à instrução, à educação das gerações”. Numa região de “Vocações perdidas” “por falta de cultura e ensino técnico perfeito”, compreende-se o entusiasmo do contista com mais esta actividade humanitária dos Bombeiros.

As crónicas que João de Araújo Correia dedica a este tema dão-nos conta de diversos marcos do historial daquela que designa como “a coqueluche dos Bombeiros”. De acordo com “Primórdios”, a sua origem remonta a 1885, isto é, a cinco anos após a fundação da Associação. Embora se desconheça a paternidade da ideia, a sua existência é bem significativa da apetência pela leitura entre os seus sócios e dos valores que os norteavam. Setenta e cinco anos mais tarde, “o velho armário repleto de livros sem catalogação” dá lugar a uma biblioteca propriamente dita, que os Bombeiros pretendem baptizar com o nome de Maximiano de Lemos, “fazendo coincidir o acto inaugural com o centenário natalício do nosso conterrâneo”. Deste modo, para além de promover a ilustração dos habitantes do concelho, a biblioteca perpetua o nome de um reguense ilustre ameaçado de esquecimento, ajudando a sedimentar a memória colectiva. Saliente-se, a este respeito, que, de acordo com “Alvíssaras”, terão sido os Bombeiros o motor das “comemorações do primeiro centenário natalício do professor Maximiano de Lemos”, pois, seguindo-lhe o exemplo, outras entidades se agregaram a esta homenagem. A actividade cultural dos bombeiros realiza-se, deste modo, de diversas maneiras. Ela vem a ser outra das concretizações do já referido espírito bairrista que, segundo o escritor, anima a corporação.

Três anos após a inauguração da Biblioteca Maximiano de Lemos teve lugar outro acontecimento importante da sua história. Nesta altura, recebeu ela “uma valiosa colecção de livros oferecidos pela benemérita Fundação Calouste Gulbenkian”. A biblioteca inaugurada em 1960, constituída sobretudo por espécimes provenientes do antigo armário-estante e por ofertas particulares, vê-se assim ampliada e actualizada. O aumento do acervo bibliográfico e o alcance social desta obra dos Bombeiros tornam manifesta a necessidade de organização, sugerindo o escritor a criação de um regulamento. Tal como a respeito da aquisição da nova ambulância, considera ainda que a Associação dos Bombeiros deve, também neste domínio, ser auxiliada pela sociedade civil. Apela por isso à colaboração dos “reguenses dados à leitura” e propõe a fundação do “Grupo dos Amigos da Biblioteca Maximiano de Lemos”. Esta é uma das múltiplas associações cuja semente lançou ao longo da sua colaboração no Vida por vida, visando acrescentar vida cultural à “vila comercial” que a Régua então era.

Com este repto lançado aos seus conterrâneos terminou João de Araújo Correia a sua batalha nas páginas do boletim da Associação em prol da biblioteca humanitária. Volta, no entanto, a convocar a intervenção dos Bombeiros no texto “Música de Poiares”: “Bombeiros e outros grémios devem apadrinhar a ressurreição da música de Poiares”. Deste modo, a missão cultural dos soldados da paz alargaria consideravelmente o seu âmbito ao estender-se a um domínio artístico específico e a uma aldeia do concelho da Régua. Ao permitir recuperar uma banda que era “a mais antiga, a mais perseverante e, há tantos anos, única música do nosso concelho”, esta parceria entre os Bombeiros e outras entidades impediria o empobrecimento cultural da “pátria pequena”. Se isto não bastasse, os benefícios da Música justificariam só por si o empenho no ressurgimento da banda poiarense: “Não é preciso inculcar a ninguém o valor da Música. Todos o sentimos. Como educadora do povo rude, é inestimável. Desperta-lhe sentimentos bons adormecidos, desvia-a de recreios perigosos. É imprescindível para suavizar índoles bravias”. De novo João de Araújo Correia implica os Bombeiros numa causa “A bem da humanidade”.

Esta viagem pelo Pátria pequena à boleia dos soldados da paz ficaria incompleta sem uma referência ao Vida por vida, não por ser este o depositário original dos textos que deram origem àquela obra, mas por causa do que ele representa. Na pequena nótula introdutória surge a mais extensa referência a este mensário, relativa ao seu historial. Os seus breves dezoito anos de existência expressam talvez a vitalidade da Associação a que dá voz, num período particular. Avançando para o interior do volume, passagens como “folhinha privativa de uma Associação de Bombeiros”, “pequena tribuna”, “cantinho” ou “recanto da Imprensa Portuguesa” colocam a tónica na modéstia do jornal. No entanto, a sua discrição não é sinónimo de inoperância, pois ele é também “luzinha numa espécie de serração espiritual”, “guia” para “espíritos ávidos de claridade”. O humilde periódico ocupa, portanto, um lugar especial no panorama reguense, ao mesmo tempo que confere novas valências à actuação da Associação em proveito da comunidade em que se insere.

É este espírito de serviço ao seu semelhante que subjaz à porfiada colaboração de João de Araújo Correia nas páginas do Vida por vida. Se aponta os males da sua “pátria pequena”, também indica as terapias para os debelar e assim melhorar a vida dos seus conterrâneos. Não será por isso descabido dizer “Ditosa pátria que tal filho teve!”.

O autor de Cinza do lar não tem olhos apenas para as coisas negativas da sua terra. A corporação de Bombeiros merece-lhe particular carinho e atenção, desde logo pela sua resistência num meio onde tudo parece destinado ao fracasso. Enquanto representante dos valores humanitários que eram tão caros ao nosso escritor, procura alargar o âmbito de acção da corporação a domínios de grande relevância para a comunidade. Sublinha, ao mesmo tempo, que o auxílio dos Bombeiros à colectividade depende do apoio que dela receber, mostrando que ambos estão interligados. Afinal, os Bombeiros, como a Régua, dependem da colaboração de todos. Para além de tudo isto, João de Araújo Correia apresenta-nos os Bombeiros por dentro, relatando alguns dos seus hábitos e um ou outro dado da sua história. Se lhe fosse possível regressar ao seu torrão natal, ficaria certamente contente por saber que “os nossos Bombeiros” estão a caminho do seu 133º aniversário, sem perderem o garbo e a juvenilidade que lhes conheceu. Simpatizaria, sem dúvida, com o “Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua” do Arrais, jornal a que, de diversas maneiras, esteve ligado em vida e onde também publicou crónicas sobre os seus Bombeiros.
Agradar-lhe-ia também a notícia de que alguns episódios da longa e proveitosa vida da corporação se encontram já fixados num livro, constituindo a primeira resposta ao seu apelo ao registo escrito da história dos Bombeiros locais. Nada está perdido. Quem sabe de que outras propostas de Pátria pequena não se encarregará o futuro?

1* - Referimo-nos ao texto “A Biblioteca dos Bombeiros”, encontrado pelo Dr. José Alfredo Almeida no Vida por vida de Dezembro de 1960, do qual gentilmente nos forneceu uma cópia. Embora assinado com as iniciais A.D., pelo estilo e pelo ardoroso apelo que encerra, é, sem dúvida, da autoria de João de Araújo Correia.

*Crónica escrita pela drª. Ana Ribeiro, Profª. da Faculdade de Letras da Universidade do Minho em volta do escritor  reguense João de Araújo Correia.
Clique nas imagens para ampliar. Fotos e texto cedidos por Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Março de 2013.  Também publicado no jornal semanário regional "O ARRAIS" edição de 27 de Março de 2013 (1ª parte). É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

quarta-feira, 13 de março de 2013

O comissário da Sandeman

Encontro-me à mesa da minha secretária, num entardecer outonal com a luz a resplendecer nas águas do rio e nos vinhedos que serpenteiam o vale Abraão, absorvido na leitura de um livro que, de um momento para o outro, me leva às vindimas no meu Douro. Enquanto ouço, lá no meio dos socalcos coloridos, os cantares das vindimadeiras e os sons de uma gaita-de-beiços, um harmónio, os ferrinhos e os bombos que acompanham o pisar das uvas pelos homens, deixo-me viajar no tempo em direcção ao passado.

Acabo de chegar à vila da Régua dos finais do século dezanove. O comboio que me trouxe terminou aqui a sua marcha, apenas com um ligeiro atraso relativamente ao seu horário. Estou na estação, que esconde muita da sua beleza arquitectónica nos ramos dos frondosos plátanos. Da sua porta principal, começa a sentir-se o bulício de pessoas e dos transportes na estrada nacional que lhe passa em frente. Sinto odores de vinho fino que se misturam com perfumes de flores silvestres. As diligências da viúva Vilela, empresária e benemérita, estão de saída para outras paragens.

A vila está a crescer e o comércio prospera, mas é a sua beleza que atrai a atenção do meu olhar e me deixa, por breves instantes, extasiado pela luz e pela intensidade das cores de uma paisagem fascinante que alastra até às margens do rio. Sou despertado por uma velha rebuçadeira de bata branca que vende pacotinhos de uns rebuçados embrulhados em papel. Compro-lhe dois pacotinhos e delicio-me com o aroma de flor de laranjeira de um doce rebuçado da Régua.

Olho as horas no relógio da estação, está muito calor, decido passear-me pela Rua da Bandeira, o coração da vila, onde se faz todo o comércio de retalho, as casas exportadoras guardam o vinho e as aguardentes, onde ficam as hospedarias e as pensões e se encontram as figuras mais respeitáveis da terra. Depois de fazer uma ligeira refeição numa hospedaria mais recomendada, quero visitar a Loja do Zé Pinto, progressista ferrenho, e aí comprar a última edição do bi-semanário O Douro. O jornal interessa-se por divulgar os assuntos da lavoura, do comércio dos vinhos e a gestão da câmara do regenerador Dr. Júlio Vasques. À entrada desta loja, onde se vende um pouco de tudo, deixo o meu olhar penetrar numa sala para aí rever figuras ilustres numa roda de cavaqueira e que, agora, me parecem almas retiradas das profundezas da Eternidade ou de um outro mundo. Na verdade, não os conheço nem eles me conhecerão a mim, mas nutro por eles uma indisfarçável admiração, simpatia e respeito pelo que fizeram no seu tempo. Se eu pudesse falar com alguns deles, seria com o poeta Camilo Guedes Castelo Branco, que continua a usar a sua  farda de soldado da paz.

Retomo a minha caminhada e, de uma viela que circunda o Largo do Cruzeiro, vejo passar o senhor Afonso Soares de barbas brancas e olhos luminosos. Deve ter acabado o seu repasto, porque fuma com redobrado prazer. Disseram-me que é um apreciador de sável, um saboroso peixe que ainda se pesca no rio Douro. Bem gostava de o ter convidado para provar comigo esta deliciosa especialidade gastronómica, mas o senhor Soares é um artista diletante, jornalista, escritor, erudito e pintor. Quase que desconfio que não pode dissipar nenhum do seu precioso tempo com um estranho que lhe apareça assim de frente. Tem mesmo muito que fazer e deve estar preocupado com o futuro da corporação de bombeiros, onde acabou de ser escolhido para Comandante.

Desço a ruela das Vareiras, com as tabernas que vendem os vinhos mais baratos e apreciados pelo povo e onde crescem negócios em que o sal e a sardinha salgada de barricas são as principais mercadorias. Ao fundo da rua sobressai o areal extenso por onde corre o rio e voam vertiginosamente as últimas andorinhas, anunciando que estão de partida. Um barco rabelo de bela içada, carregado com cinquenta pipas de vinho da feitoria, produzido pela firma Martinez e Gassiot, solta as amarras de um movimentado cais fluvial.

Como se faz tarde, aproximo-me da Rua Nova para me dirigir à Casa da Companhia. No seu átrio, juntam-se lavradores, comerciantes, corretores e comissários das casas inglesas. Enquanto uns discutem os preços da pipa de vinho da vindima, outros exibem amostras de colheitas antigas. O preço da pipa ronda os 25.000 mil réis e os viticultores estão insatisfeitos. Diante de mim, tenho os senhores Francisco Ferreira e António Claro, fiéis empregados da Casa A.A. Ferreira, Scrs. Estou surpreendido, os lavradores, numa veneração digna de deuses, saúdam-nos com vénias e mesuras. Gostava de cumprimentar a D. Antónia, a Ferreirinha, que deve estar pela Quinta das Nogueiras, e agradecer-lhe a generosidade para com a associação de bombeiros, que, como primeira sócia contribuinte, muito ajudou nos primeiros anos de existência.

Quem eu vinha procurar, um tal comissário da casa Sandeman, não encontrei. Ali perto, está a relojoaria de Adolfo Pauman, um velho actor galego que deixou as artes cénicas para ser bombeiro voluntário e se dedicar ao comércio reguense. A porta da loja está encerrada, pelo que decido entrar na Botica do Anastácio, outro memorável ponto de tertúlia. Ao balcão, está um moço que avia umas receitas de pomadas. Pergunto-lhe pelo paradeiro do senhor António Roberto Pinto. Depois de sair o cliente, diz-me que devo encontrá-lo na casa da Real Associação dos Bombeiros, no Largo da Chafarica, onde ao fim da tarde costuma ir jogar dominó, quino e frequentar a sala de leitura. Meto as pernas ao caminho em direcção à Rua da Boavista e, em pouco tempo, chego ao quartel dos bombeiros voluntários, instalado numa casa antiga, o rés-do-chão para arrumar as bombas e o primeiro andar para reuniões e encontros de lazer.

É domingo, e as badaladas do sino da capela do Senhor do Cruzeiro dão as seis horas da tarde. Alguns associados, mais habituados a frequentarem a sala de jogos e a casa de leitura, apressam-se a entrar no quartel. Reconheço o senhor António da Silva Correia, solicitador, e o Dr. Júlio Manso Preto, jurisconsulto e publicista que exerce o foro na vila. Ninguém sabe onde nasceu, mas aqui se radicou e fez família. Intriga-me que deste autor ninguém tenha dado atenção ao folheto que publicou em 1864 com o sugestivo título Duas Palavras Acerca da Régua e Arredores. Não o li, mas o seu autor faz aí um magistral retrato poético desta terra, então com poucas ruas, algumas com bons edifícios elegantemente construídos, notável pelo seu comércio de vinhos. Ele, que adoptou esta terra para viver, viu beleza nas colinas tapeteadas de vinha e polvilhadas de casario branco, um encanto para o olhar, donde se  avistava um rio forte, sem igual, e os enormes  sabugueiros em flor.

Atravessa o Largo da Chafarica, vindo do seu escritório, um jovem que começara a advogar como sucesso. Apaixonado pelos ideais republicanos, vai dedicar-se com afinco a resolver as mais problemáticas das questões do Douro. O causídico chama-se Antão de Carvalho e está a iniciar o brilhante futuro que o levará ao cargo de Ministro da Agricultura, logo após a instauração da República, e depois a ser o mais dinâmico dos paladinos do Douro.

Aproxima-se o abastado comerciante Joaquim Sousa Pinto, fardado de bombeiro, acompanhado pelo Comandante Afonso Soares e pelo presidente da direcção, Alberto Pereira Rolla, sendo saudados com continência por um piquete de voluntários. Param diante de mim e, como não me reconhecem familiar ao meio, cumprimentam-me com um afável “Boa tarde, meu caro amigo”. De imediato, o Comandante Afonso Soares, que traz na mão esquerda um manuscrito do livro que irá publicar, os Apontamentos para a História da Vila e Concelho, abeira-se de mim e pergunta-me se me pode ser útil. Digo que sim, que procuro o senhor António Roberto Pinto, comissário da casa comercial Sandeman, a quem precisava de dar umas palavras...! Avisa-me que deve estar a chegar para entregar um donativo da casa Sandeman para ajudar a missão dos bombeiros. Ainda o ouço exclamar: “Bem precisamos de dinheiro….”. Entretanto, pergunta-me se me fiz associado contribuinte. Não sei como lhe responder, mas prometo ao Senhor Soares que, mais tarde, aparecerei para me inscrever como sócio e é o que faço… um século depois.

As badaladas do sino do Cruzeiro voltam a ouvir-se dolentemente e fazem-me acordar de um sono profundo, aconchegado pelo calor outonal. Tenho aberto o livro de actas dos mandatos das primeiras direcções dos bombeiros da Régua. Cá está o desconhecido comissário que não tive a sorte de encontrar na minha viagem ao passado. Uma acta da reunião extraordinária da Direcção dos Bombeiros datada de 1893 confirma-me que, nesse dia, esteve presente oSr. António Roberto Pinto comissário da casa ingleza Sandeman, tendo por este entregue á hora desta sessão  a quantia  25.00 mil réis, que a mesma offerece para os fundos da Associação. Deliberou-se por unanimidade agradecer a oferta”.

A Sandeman, como casa comercial, morreu; aquele mítico nome pertence agora a outra empresa de vinhos, a Sogrape. Com ela morreram também os influentes comissários das casas inglesas, sobre os quais o escritor João de Araújo Correia escreveu o seguinte: “Governam-se melhor que o lavrador e quase tão bem como o comerciante. Estabelecem entre um e outro uma risca de união perfeita de metal precioso. Ser comissário é ser alguém. Ser comissário de casa inglesa é porventura ser mais do que alguém. (…) Ser empregado de ingleses, no Douro, é ser gente estremada – ainda que o emprego se exerça numa adega com caneco à cabeça. Se o emprego é porém de vulto, se representa confiança e espelha a bizarria inglesa, o empregado chama-se comissário e é um lorde. É um lorde entre lavradores preocupados com colheitas e com vendas”.

Já cá não estão estes lordes da sociedade duriense para defenderem o seu bom nome. Morreram todos. Perdura o nome do Sr. António Roberto Pinto, que, apesar de nada sabermos acerca dele, deixou uma fama de benfeitor dos bombeiros da Régua.

Devia acabar aqui esta pequena história. Mas, o mais certo, é ela continuar para acrescentar o exemplo da casa Symington - sócia contribuinte nº 578 – que assim concede o seu apoio a uma instituição humanitária que tem como seu ideal fazer o bem comum. 
- José Alfredo Almeida*, Peso da Régua, Fevereiro de 2013
*O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras actividades  escrevendo também cronicas que registam neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.



Clique nas imagens para ampliar. Texto e imagem de JASA. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Fevereiro de 2013. Também publicado no jornal semanário regional "O ARRAIS" edição de 13 de Março de 2013 - 1ª parte. edição de 20 de Março de 2013 - 2ª parte. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

terça-feira, 5 de março de 2013

UM EXEMPLO DE CIDADANIA

A história de uma Corporação, como a dos Bombeiros da Régua, faz-se de muitas sinergias e diversas cumplicidades. E, assim, na sua longa existência foram muitas as personalidades que contribuíram para a concretização dos seus projectos. Tal foi o caso de Nuno Simões. Nascido em 1894, em Vila Nova de Famalicão, foi nomeado, ainda muito jovem, Governador Civil de Vila Real, em 1915 (na sequência da revolução de 14 de Maio, que depôs a ditadura de Pimenta de Castro), vindo a ser eleito deputado pelo Douro em várias legislaturas durante a Primeira República. Seria ainda ministro do Comércio nos governos de Cunha Leal (16 de Dezembro de 1921 a 6 de Fevereiro de 1922), Álvaro de Castro (18 de Novembro de 1923 a 6 de Julho de 1924) e Domingos Pereira (1 de Agosto a 17 de Dezembro de 1925). Pelo seu percurso político e profissional, como advogado, rapidamente se tornou uma figura de grande destaque a nível nacional.

Não sendo natural do Douro, Nuno Simões nutria por esta região uma enorme estima. Enquanto deputado, e em sintonia com o movimento duriense, as suas intervenções pautaram-se pela defesa da questão regional, a ele se devendo a apresentação, no Parlamento, da Lei nº 881, que criaria condições para o incremento da fiscalização das disposições que regulavam o comércio dos vinhos do Porto. Mais tarde, já retirado da vida política activa, moveria, repetidamente, influências em benefício da Associação dos Bombeiros Voluntários da Régua, não tendo nunca recusado nenhum pedido que lhe fosse feito, como referia o vice-presidente da Direcção, José Pinto da Silva, em 1954. Dessa forma, viria a assumir uma importância cabal na realização de importantes melhoramentos na década de 1950.

Nuno Simões era um homem de grande influência no meio político. E era, principalmente, um filantropo. Apesar de afastado pelo Estado Novo, devido à sua posição de moderada hostilidade ao regime, continuava a movimentar-se junto dos meios decisores, utilizando a rede de sociabilidades políticas que construíra, em benefício das populações. Em face disto, José Pinto da Silva decidia-se a solicitar-lhe novamente a sua «valiosa protecção», desta vez a propósito de um subsídio para o conserto da ambulância da Corporação. Estávamos em Abril de 1954. A Direcção havia feito uma exposição ao Director-Geral de Assistência, mas havia-se deparado com um problema burocrático, colocado pelo Director-Geral de Administração Política e Civil. Sabendo que Nuno Simões se «dava muito bem» com o Director-Geral, pedia a sua intervenção junto deste a favor da concessão do referido subsídio. E terminava agradecendo em nome de toda a Corporação «que tanto e tanto lhe deve».

Em Agosto do mesmo ano, Nuno Simões estava a veranear na estância de Pedras Salgadas, tendo sido visitado por uma delegação dos Bombeiros que lhe foram apresentar, de viva voz, os agradecimentos pelas suas diligências, a par de um novo pedido de ajuda. Nesse ano de 1954, haviam sido reiniciadas as obras do novo Quartel. A Direcção havia apresentado um pedido de subsídio ao ministro das Obras Públicas (Eng. Arantes de Oliveira) e vinha agora solicitar os bons ofícios de Nuno Simões no sentido de que fosse concedido. Em Dezembro, em nova troca de correspondência, o tom era de esperança pois haviam recebido um ofício dos Serviços de Melhoramentos Urbanos pedindo mais elementos quanto ao custo total. Tal facto prenunciava a atribuição do desejado subsídio, que viria, de facto, a ser concedido, contribuindo para a conclusão desta primeira fase, em 1955.

Em inícios de 1957, a preocupação voltava-se para a instalação de um Posto Médico no Quartel dos Bombeiros. A sua edificação estava quase concluída e havia já sido adquirido o material necessário ao Instituto Pasteur. Em Abril desse ano, o vice-presidente José Dias da Silva informava Nuno Simões que seria dado, ao Posto Médico, o nome do Dr. Trigo de Negreiros (ministro do Interior, que doara 30 contos para a sua construção) e que seria o próprio a inaugurá-lo, aproveitando a deslocação que efectuaria à Régua, em 5 de Maio desse ano, para inauguração de um novo Hospital Sub-regional. Demonstrando a importância dada à opinião e orientação de Nuno Simões, perguntava-se também se deveria ser endereçado um pedido de subsídio à Fundação Calouste Gulbenkian para aquisição de um aparelho reanimador, considerado de enorme utilidade para a Régua bem como para todo o distrito de Vila Real, visto não existir nenhum. O referido aparelho custava onze contos, quantia que a Associação não podia despender por estar a ultimar a segunda fase das obras no Quartel, inauguradas ainda nesse ano, pelo ministro do Interior.

A um outro nível, Nuno Simões revelar-se-ia fundamental em garantir a estabilidade dos órgãos sociais da Corporação. Em 3 de Julho de 1960, o presidente da Direcção, Dr. Júlio César Vilela (filho de Júlio Vilela, importante personalidade local, que fora Escrivão de Direito na Régua, vice-presidente da Comissão Administrativa e administrador do concelho, director do Asilo José Vasques Osório e director do semanário «A Defesa do Douro»), referindo-se a Nuno Simões como «carinhoso amigo e protector», aborda-o a propósito dos problemas suscitados com a escolha de um novo Comandante. O caso era considerado melindroso, e fora gerado pela circunstância de haverem atingido o limite de idade para se manterem no serviço activo o comandante do Corpo de Bombeiros, Lourenço Pinto de Medeiros (que entretanto havia já falecido), e o chefe do mesmo Corpo, António Guedes Castelo Branco (filho do antigo comandante Camilo Guedes). Depois de ponderar, a Direcção decidira-se por Carlos dos Santos, chefe de Secretaria na Santa Casa da Misericórdia da Régua. Muito jovem, com apenas 37 anos de idade, mas considerado de «aprumo invulgar no meio», possuía o 6º ano dos liceus e o Curso de Sargentos Milicianos preenchendo, por isso, todas as condições para o bom desempenho do cargo. Esta nomeação fora aprovada pelo Inspector de Incêndios da Zona Norte e, pela acção do novo Comandante, revelara-se acertada. O problema surgira quando Carlos dos Santos manifestara a intenção de mudar de emprego, com vista a auferir melhor salário para sustento da sua família, tendo prometida a sua colocação no Instituto Pasteur. Tal significava mudar-se da Régua e, em consequência, deixar o cargo de Comandante. Ora, a Corporação não o podia perder. Entretanto, o gerente da filial da Régua da Sociedade Industrial Farmacêutica (proprietária dos Laboratórios Azevedos), fora afastado por suspeita de desfalque. O lugar encontrava-se vago e a Direcção vê aqui uma forte possibilidade de solucionar a questão. Em seu entender, Carlos dos Santos era a pessoal ideal para o cargo, dados os seus conhecimentos e experiência profissional. Além disso, o vencimento era superior ao auferido no cargo que desempenhava na Misericórdia. E os Bombeiros não perderiam o seu Comandante.

Logo, era pedido o auxílio de Nuno Simões no sentido de conseguir a sua colocação, alegando-se não se conhecer «quem tão pronta e nobremente se tenha interessado pelos seus problemas e os tenha resolvido com maior magnanimidade». A sua resposta foi rápida e eficaz: Carlos dos Santos viria a manter-se como Comandante até 1990.

Como dizia ao início, a história de uma Corporação faz-se de sinergias e cumplicidades. Os factos relatados são disso um bom exemplo. A ligação entre Nuno Simões e os Bombeiros da Régua, constante e de grande proximidade, influenciou positivamente os destinos da Associação, em momentos cruciais da sua existência. Ao mesmo tempo, põe em evidência o quanto é possível alcançar-se quando a cidadania se exerce ao serviço das populações.
- Historiadora Carla Sequeira, Fevereiro de 2013.
Uma publicação de Carla Sequeira - O Alto Douro entre o livre-cambismo e o proteccionismo: a «questão duriense» na economia nacional - Tese de Doutoramento em História apresentada à Faculdade de Letras do Porto em 2010.


Clique nas imagens para ampliar. Texto de  Carla SequeiraImagem e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo AlmeidaEdição de imagem e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Março de 2013. Também publicado no jornal semanário "O Arrais", edição de 6 de Março de 2013. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos. Refªs. - Carla Sequeira, Escritos do Douro

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

RECORDANDO… Uma Excursão a Vigo

O tempo corre, voa, passa, mas as recordações perduram, fazendo reviver nitidamente na nossa retina factos passados há muitos e muitos anos, como este que vou citar:

As corporações dos Bombeiros Voluntários do Porto e da Régua, a primeira instalada, ao tempo, nuns antigos casarões da Rua do Bonjardim, a que pomposamente denominavam Pátio do Paraíso, e a desta vila num prédio do Largo dos Aviadores, resolveram aceder ao convite, feito por determinada individualidade de Vigo, para uma visita àquela linda e hospitaleira cidade galega.

Dias decorridos, estava designada a data da largada, ficando os Voluntários do Porto de esperar os seus camaradas da Régua na Estação de Ermesinde, de onde seguiriam em comboio especial.

Os bombeiros da velha guarda, com os quais ainda tive a ventura de acamaradar – Afonso Soares, Camilo Guedes, Joaquim de Sousa Pinto, Lourenço Medeiros, Luís Maria da Cunha Ilharco, José Vicente Ferreira da Cunha, João Pinto Cardoso, Justino Lopes Nogueira, Aires Saldanha, José Maria de Almeida, João da Silva Bonifácio (pai), e tantos outros, no desejo, muito de louvar, de que a Corporação «fizesse figura», chegaram à minuciosidade de encomendarem, para toda a Corporação, apurados e elegantes sapatos de verniz.

A azáfama, no Quartel, era enorme. Limpavam-se metais, poliam-se machados, etc.,etc.

E então, no dia aprazado, a Corporação seguiu na sua máxima força, sendo acompanhada pelos seus médicos e farmacêutico privativos e pelo seu Capelão, padre Manuel Lacerda de Oliveira Borges.

No dia da partida, a Régua em peso e com o seu Peso, acompanharam à estação aqueles valorosos soldados da paz, sempre dispostos, desinteressadamente, a sacrificar-se em prol do seu semelhante.

À chegada a Vigo tiveram uma recepção apoteótica, sendo recebidos no Ajuntamiento pelo respectivo alcaide, que lhes deu as boas-vindas numa sessão solene a que assistiram as mais altas individualidades daquela cidade e elevado número de Senhoras da alta sociedade.

A seguir foi rezada uma missa campal na vasta praça de Camões, à qual assistiu toda a guarnição militar, entidades oficiais e muitíssimo povo, e que foi celebrada pelo Capelão dos nossos Bombeiros, padre Manuel de Lacerda.

Seguiu-se o almoço oficial, primorosamente servido. E ao café, antes de se efectuar a renhida e deslumbrante «batalha de flores», e quando se comentava a forma primorosa como tudo estava a decorrer, o bombeiro nº 26, João Pinto Cardoso, conhecido por «João Latas», (talvez pelo motivo de ser latoeiro), teve este desabafo:

- A única coisa que admirei, porque nunca o julguei tão inteligente, foi a facilidade com que o nosso padre Manuel leu o latim espanhol, precisamente com o mesmo «à vontade» como lê o latim português, na missa do Cruzeiro.

Autêntico!

Rebentou uma estrondosa gargalhada que fez estremecer a casa e que deixou o 26 de boca aberta, pois não atinava com o motivo de tão estranha e, no seu entender, tão injustificada e despropositada risota.

A esta excursão juntou-se um numeroso grupo de reguenses, do qual fazia parte o Adolfo Rodriguéz Pauman, de nacionalidade espanhola, que já havia sido bombeiro e há muitos anos residia nesta vila, onde possuía uma relojoaria na Rua João de Lemos, precisamente na casa onde actualmente está instalado o estabelecimento do Butagaz, que faz esquina com a Rua da Companhia.

E como constasse do programa, no segundo dia da estadia em Vigo, um passeio ao Monte de Santa Luzia, de onde se disfruta, em deslumbrante panorama, a sua linda baía, com a povoação de Cangas, lá ao longe, a encerrar o cenário, todos trataram de arranjar meio de transporte, que consistia, naquele tempo, em velhas e estafadas tipóias, tiradas por parelhas de esqueléticas pilecas.

Ora, na que transportava Camilo Guedes, Joaquim de Sousa Pinto e outros, também tomou lugar o Adolfo Pauman, o qual, com as suas compridas e responsáveis barbas brancas, mais parecia um velho patriarca das Índias do que um mero excursionista.

Ficou justo, com o cocheiro, que o custo da passagem, por pessoa (e só ida), seria de uma peseta (um preço exageradíssimo, para aquela época).

Este contou os passageiros, já depois de instalados no carro, e à chegada a Santa Luzia voltou a contá-los.

Não sei como o tipo fez essa contagem. O que é certo é que, irritadíssimo, disse para os seus fregueses:

- Falta uno.

E não houve forma de o convencerem do contrário.
Depois de muito barafustar, e como não pudesse ser compreendido pela rapidez e indignação com que falava, alguém disse ao Adolfo que, como espanhol, se entendesse com ele.

Este, com muito bons modos, fez-lhe ver que estava enganado e que talvez, por equívoco, também se tivesse incluído na conta.

Traga Deus Bom Tempo!

O galego, vermelho de cólera, puxa de una cochila do tamanho de uma espada de cavalaria e disse para o amedrontado Adolfo, que tremia como se tivesse maleitas:

- Cala hombre. Usted no habla más palabra, su portuguesito duna figa (fazendo o gesto de lhe cravar o navalhão no bandulho).

Há tantos anos que o pobre relojoeiro vivia em Portugal que perdera, por completo, o sotaque espanhol, sendo julgado português.

E tiveram de lhe pagar a importância relativa «ao outro passageiro», que nunca existiu, sob pena do maldito galego os transformar em picado.

Soube-se, depois, que esse tipo era useiro e vezeiro na prática dessas proezas, principalmente quando se tratava de estrangeiros.

E levou a dele avante, aquele estafermo.
…………………………………………………………………………………………………………
Passou-se isto há muitos anos!

Já todos desapareceram do número dos vivos.

Bons tempos! E que saudades!
- António Guedes Castelo Branco - (antigo Chefe dos BV da Régua). Publicado no jornal Vida por Vida, de Março/Abril de 1971.
Clique na imagem para ampliar. Texto de António Guedes Castelo Branco publicado no jornal Vida por Vida, de Março/Abril de 1971. Imagem e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo AlmeidaEdição de imagem e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Fevereiro de 2013. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

“Podeis contar comigo…”

Depois de madura reflexão, ponderando as responsabilidades que hoje assumo no pleno exercício da minha liberdade, queria expôr-vos com clareza as razões da minha determinação.

Em primeiro lugar, notamos que a nosso mundo vive obcecado em salvar o homem, e, no entanto, as guerras, as enfermidades, a poluição, alcoolismo, as drogas, as dissensões político-sociais provocam o medo da aniquilação total do ser humano e grassam pelo universo de portas franqueadas.

A razão de tudo isso, creio eu, é que o homem não reflecte suficientemente a qualidade do seu ser. Assoberbamo-nos demasiado com o ter, com os votos e com os números e esquecemo-nos de ponderar, numa estrutura de personalidade, os dons que Deus nos deu. O orgulho e a vaidade humana continuam a espezinhar e a destruir o homem, para salvar a humanidade …

Esta trágica realidade levou-me à consciência da minha própria condição humana. Ponderei os valores que meus pais, professores, amigos e esta sociedade reguense me apresentaram e organizei-os numa hierarquia que me permite sentir-me homem no meio dos homens, com brio da honestidade de ser aquilo que sou.

Depois, verifico que todo o nosso ser está voltado para fora de nós, para o universo e para os outros, numa expressão de serviço que dá a razão de qualidade de ser a nós mesmos. Entre o belo e o feio, entre verdade e a mentira, entre o amor e ódio, só é verdadeiramente livre e humano quem opta pelo belo, verdadeiro, justo e favorável ao homem ou ao serviço do homem. Ora, no meio de nós uma organização humanitária de voluntariado que tem como lema “ vida por vida” representa orgulhosamente a esperança de todos nós para um mundo melhor, onde a dignidade humana seja o primado de todo o viver.

Por isso, aceitei pertencer ao Corpo de Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, convicto da minha capacidade de ser mais humano para todos os que possam ser nesta terra mais humanos também. Tenho a certeza de que se todos morremos um pouco para os nossos interesses pessoais, os nossos orgulhos, as nossas vaidades, seremos um sinal de salvação para todos: apagaremos labaredas de um fogo real para acalentarmos tranquilidade e paz em todos os reguenses; salvaremos bens e vidas humanas revelando a gratuidade do nosso amor, para rasgarmos sorrisos nos nossos lares; promoveremos o bem sem olhar a quem, para que desabroche uma eterna chama de amor no coração de todos os homens.

Aprendendo a morrer para mim, estou certo de dar a vida aos outros com mais alegria, mais esperança, mais harmonia e Paz, e estou seguro de realizar o único e válido ideal de humanidade que a todos vós desejo, num abraço amigo que já conheceis, mas que sem vós também não faz sentido.

Por isso conto convosco, porque podeis contar comigo.
- Pedro da Conceição Ferreira Pinto, 2º Comandante os BV da Régua (de 18/01/79 a 9/02/1990).

Nota: Discurso da cerimónia de posse, proferido no Salão Nobre do Quartel Delfim Ferreira, no dia 3 de Fevereiro de 1979, perante o Presidente da Direcção Dr. Aires de Querubim de Menezes e o Comandante Carlos Cardoso.

Clique  nas imagens para ampliar. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Janeiro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Texto e imagens originais cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no jornal regional semanário 'O ARRAIS', edição de 19 de Dezembro de 2012.Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.