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segunda-feira, 8 de novembro de 2010

UM HOMEM

Aqueles doze dias que me deram, antes do embarque, pareceram a satisfação da última vontade de um condenado. Para dizer a verdade, só o sono me descansou. De dia contava o tempo, olhava o fundo do vale, com o Douro ao fundo, e nunca a estrada me foi tão curta e tão detestada; chegava a pedir o impossível: que ela desaparecesse do mapa. Era uma dor que nunca soube definir: a barriga em espasmos, uma vertigem no olhar, mas o que me custava mais era uma ardência no lado esquerdo do peito; acho, até, que era a angústia transformada em revolta, que, como sabemos, não mata mas dói. Cheguei a pedir que os dias saltassem para me ir embora depressa, acabava-se com aquilo, abandonada, há muito, a ideia de me escapar com o Artur para Paris. Ficava meio mundo a falar que eu me “cortara”, e sei lá se o Salazar não era eterno e nunca mais eu cá voltaria. Minha mãe, sabe Deus como, lá ia aguentando, e havia ali, entre nós, um penoso jogo de disfarçar sentimentos, que chegava a ser desumano.

Mas, quando chegou a hora de me despedir, o mundo desmoronou-se. Julguei mesmo que se encerraria o sofrimento: ficaríamos esticados pelo fatalismo da síncope e o Niassa rumaria a Angola com menos um camuflado. Penso ter escutado o comboio – é melhor usarmos a ironia porque, às vezes, nestas coisas de contos, não se sabe como encurtar a volta a situações intoleráveis –, e lá me despeguei para o carro de praça, que me esperava. Não ouvi mais nada, ou não quiz ouvir. Quando ia na recta, antes da curva que tapava a vista da casa onde nasci, olhei para trás, dei um grito e chamei nomes do piorio aos donos da Nação; o chaufer riu-se, disse-me que , com ele, quando foi para a Guiné, tiveram que o ir buscar ao café, e rematou: « Sr. Gilberto, deixe lá; o senhor vai como oficial, eu fui como soldado. » De repente, não entendi onde estava a vantagem, mas conversar era o que menos me apetecia.

Eu estava habituado a viajar, de comboio, da Régua para o Porto, e vice-versa, mas daquela vez o pouca-terra parecia nunca mais chegar. Pedi a todos os santos para que o Gualter estivesse à minha espera no Embaixador, e abri a mala para tirar um livro dos que levava, juntamente com alguma roupa. Calhou-me o Fio da Navalha. A primeira coisa que li foi a citação introdutória: «DIFÍCIL É ANDAR SOBRE O AGUÇADO FIO DE UMA NAVALHA; É ÁRDUO, DIZEM OS SÁBIOS, É O CAMINHO DA SALVAÇÃO.» Havia de saber quem era o Katha – Upanishad, mas só quando, e se, acabasse a comissão. Foi mais o tempo em que espraiei os olhos pela paisagem do que pelo romance de Maugham, o que me agravou o estado de alma. Imaginei minha mãe, vestida de luto, deitada sobre a cama, com a Laurinda a confortá-la; a minha aldeia, de caminhos e casas sem água e sem luz, com a fome à espreita nos cardenhos dos cavadores, as crianças sem culpa da injustiça dos adultos. Deixaria o meu país sem uma pinga de progresso, triste e desolado, cheio de bufos.- até , se calhar, o velho que se sentava ao meu lado -, uma terra sem uma disparidade na côr, tudo cinzento, até as palavras eram sempre as mesmas, o único contrário era a morte. Lembro-me que enxuguei os olhos, na paragem em Penafiel, quando vi, à janela, uma velhinha, de lenço preto na cabeça, subir com dificuldade para uma carruagem das traseiras. Ali ia eu, adolescente feito à pressa atirador de infantaria, para uma guerra que a teimosia de um ditador velho e de falsete, sem filhos e sem carinhos, transformara em destino patriótico. Os campos, ao longe, cumpriam, na nostalgia do abandono, o calendário primaveril: os rebentos pascais, com as maias em saliência.

Mal o comboio parou em S. Bento, corri como um desalmado, de mala na mão, fazendo uso dos quinze meses de tropa, receoso que o meu amigo já tivesse ido com o pai para Lisboa. Pedi ao engraxador que guardasse a mala, com a promessa de que depois me limparia os sapatos, subi as escadas para o primeiro andar, onde alguma  gente já comia, e só nos bilhares é que o encontrei, encostado a uma janela a ver uma partida de snooker. Fazíamos a festa do costume, quando ele me atirou: «Consegui uma baixa no Hospital Militar. Vou para lá amanhã.» Levei um murro na boca do estômago; aquilo soube-me a traição. Toda a gente se tentava safar, inventando pés chatos ou úlceras repentinas, até água gelada deitavam nos ouvidos para criar ou agravar uma otite, mas isso era mais naqueles que pagavam bons cabritos; ignorava que ele fizesse parte desse esquema, e, para disfarçar, pedi-lhe que me arranjasse uma baixa também. Fomos comer umas tripas à Flor do Congregados, contou-me como o pai se mexera e das esperanças que tinha de ir para os Serviços Auxiliares. Ficou de me escrever ou telefonar para contar como lhe correra a patranha.

No Foguete, a pensar no golpe do Gualter, dei por mim a inebriar-me com o meu heroísmo e, para ser franco,perpassou por mim uma excitação de bandeira ao vento. Por meados de Aveiro, adormeci, ajudado pelo feijão e pelo fino. Em Santa Apolónia, consultadas as horas, hesitei entre ir para o Cais do Sodré ou para a Amadora. A mala das primeiras necessidades determinou a minha recolha decente, matando o tempo na conversa de sala numa messe quase vazia , com a televisão a repetir o Aqui há fantasmas e a emissora nacional a transmitir um Serão para trabalhadores.

Passadas que foram três semanas, já só de ordem unida para reforçar o espírito de corpo, o batalhão estava na Rocha do Conde de Óbidos, disperso com os familiares, numa algazarra ensurdecedora, enquanto não recebia ordem para formar. Eu fazia parte dos que não tinha compromissos desses, assim o pedira. Sem dormir e cheio de café queria que o embarque acelerasse para aproveitar o balanço do Niassa; resolveria dois problemas: não assistiria à despedida dos lenços, e dos gritos, e dos gemidos, e dos desmaios e o sono ficaria em dia ou em noite. Estava a conversar, já não me recordo com quem, quando me baterem nas costas. Virei-me, repentinamente, não fosse o capitão da minha companhia, quando caí nos braços do Gualter. Reparei que, ou estava com uma bebedeira ou louco, as lágrimas cobriam-lhe as faces, «Gilberto, parto daqui a oito dias para a Guiné. Aqueles filhos ...», balbuciou, sempre agarrado a mim. Percebi, então, que a armadura por mim inventada para aquela ocasião estava a derreter-se, provocando-me queimaduras de muitos graus. Toques de clarim e vozes de comando repercutiram no bruá reinante que, a pouco, se esbatia. Sem saber como proceder, apertei-o mais, apressadamente, os diques rebentaram-me, e senti-me verdadeiramente UM HOMEM.
- M. Nogueira Borges*, Porto 23/7/10, para ForEver PEMBA/Escritos do Douro 2010.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.