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quarta-feira, 4 de abril de 2012

Retalhos: Respingos do Douro - Lagarada à antiga

Respingos do Douro - A lagarada - Friday, May 11, 2007 10:16 PM - “Vamos lá rapazes, que está quase na hora”. O rogador chamava-lhes a atenção porque estavam a ser 8 da noite, e era a hora de começar a lagarada, que iria durar até à meia-noite.


Os  homens começaram a descalçar as botas, a tirar os meiotes, a passar os pés pela celha de água, antes de entrar ao lagar. Davam voltas e mais voltas com os braços e mexiam bem as pernas, porque a noite estava fresca e o estar ali em calções não era nada agradável.


- Dê aí uma pinguita de aguardente” – diz António enquanto vai ao bolso das calças e tira quatro castanhas secas. Mete logo uma à boca, começa a mastigar e dá um bom trago no púcaro da aguardente.


- Ahhhh!” o que vale, ainda é isto, para aquecer a alma.


- Vamos lá pessoal, que está na hora. Quem é o mandante? pergunta lá ao fundo o caseiro, num vozeirão que ecoou pelo armazém todo.


- Então, é aqui o Ti Carlos, que é o mais velho, respondeu um deles.


- Ora, ora. Bem que me custa andar debaixo de cestos de 5 arrobas e agora ser o mandante. Vós que sois mais novos e ainda tendes boa garganta, tendes que começar a mandar. Arranjai outro.


O rogador, temendo que o caseiro se enervasse, que não era homem para brincadeiras e começasse para ali a berrar, virou-se para eles e disse:


- Pronto, acabou. Vamos tirar à sorte.


Pegou numa moeda de 2 tostões e fechou-a numa das mãos. Levou os braços atrás das costas, fez que passava a moeda de uma para a outra mão, repetidamente e estica os dois braços bem para a frente dele, de punhos cerrados.


- Vamos lá ver ! Quem acertar na mão que não tem a moeda está livre.


Vem um. Bate na mão. O rogador abriu-a e não estava lá.


- Estás livre. Outro.


Voltou a mão atrás das costas, agitando bem os braços, como a mostrar que levava  a moeda de um lado para o outro, nem que ficasse sempre no mesmo sítio… Vai o António. Azar! Tinha logo que lhe sair a ele, que era a primeira vez que tinha vindo para uma vindima. Decidido quem era o mandante, os homens entram ao lagar, cheio de uvas, acima do joelho.


- Caramba, está frio!!! Exclama um.


- Deixa-te de lamúrias. Andai lá, começai o corte que as pernas já aquecem.


Abraçados uns aos outros, bem encostados à pedra de granito do lagar vão começar.


- Vamos lá então. Esquerdo... direito... esquerdo… direito.... esquerdo… direito…


- Alto lá berrou o caseiro. Isso assim não é nada. Parece mais um funeral. O rapaz não tem jeito nem voz. Tem que ser o Ti Carlos, que sabe mandar como deve ser, que eu bem o conheço dos outros anos.


E estava dada a ordem. Quem manda, manda e o pobre do Ti Carlos nem pestanejou.


- Pronto, já que tem que ser, então vamos lá todos à minha voz... esquerdo… direito…esquerdo… direito… um… dois… esquerdo… direito... esquerdo… direito, pernas… até… ao peito… um… dois… esquerdo… direito… trabalho… bem feito… um… dois... esquerdo... esquerdo… está a alinhar aí ao fundo… esquerdo… todos certinhos…!


O ritmo de voz imposto pelo Ti Carlos, obrigava-os a avançar, esmagando as 15 pipas que se calculavam  estarem no lagar, a contar pelos cestos de uvas que tinham vindo do geio de malvasia fina.


Chegando ao fundo do lagar, davam meia volta e voltavam ao início, e isto 3 vezes, num ritmo sempre forte, cadenciado mas eficaz.


Chegada ao fim a terceira volta, o Ti Carlos solta um grito bem alto:


- Liberdade.


Os homens desfazem o abraço, batem palmas e limpam o suor que lhes escorre pela testa. A ponta da camisa que entretanto saltara dos calções serve muito bem! Dirigem-se então até à beira do lagar. O caseiro já lá está com uma travessa de bacalhau frito, enquanto o Rogador vai dando de beber um pequeno púcaro de água-pé a cada um.


Recebida a posta de bacalhau e bebida a água-pé, começam a deambular pelo lagar, sempre a pisar, levantando bem as pernas e percorrendo todo o espaço.


É a hora do homem da concertina que entretanto chegara, porque a música só podia tocar após o grito da liberdade. Começa então a tocar as modinhas mais conhecidas. Pela porta do fundo entram pessoas da aldeia, que vêm ver a festa da lagarada. Num abrir e fechar de olhos, rapazes e raparigas agarraram-se a dançar, no corredor cimentado que fica na parte debaixo do lagar.


Já não chega o espaço. Afasta-se a bomba do vinho, uma rima de cestos, uma balsa, 2 almudes e até os que só estavam a ver. Os pares vão rodopiando ao som da música, enquanto os homens vão pisando e no intervalo de uma música, o caseiro chama a atenção:


- Ò pessoal, olhai ali aquele canto. Nada de vir só para a borda para verem melhor as meninas. Elas são casadoiras, mas agora não é hora para namoricos.


Chega o patrão, a esposa e os meninos. Ficam todos contentes por ver que tanta gente da aldeia veio ver a lagarada.


- Então, que tal vai isso? O vinho parece que tem boa cor! Já lhe mediste o grau? pergunta o patrão ao caseiro.


- Ainda não! Estou a ver se eles o mexem mais um pouco e depois meço-o.


- Então dá lá mais uma pinga ao pessoal, para os animar.


- Viva o patrão!!!!


Às 10 horas, ouve-se uma algazarra à porta. São as raparigas da Roga que vêm ver e a Manuela e a São de calções enfiados querem, porque querem entrar ao lagar. Ouve-se um sururú vindo de lá do fundo e, à boca pequena, incógnita, sai a pergunta:


- Elas estão em condições? Se estão, que venham elas!


Mas, o caseiro chamou  as raparigas a um canto e vai-lhes dizendo:


- Ò raparigas vós vede lá! Olhai se me estragais 15 pipas de vinho!


- Ò senhor caseiro, esteja sossegado. Não se aflija.


O caseiro coçou a cabeça por baixo do chapéu, porque ainda se não esquecera de há anos atrás, terem de acender fogueiras debaixo do lagar, para a manta do vinho subir. Tinha sido uma aflição!


E a festa continuou até à meia-noite.
- Transcrição de Respingos do Douro - Lagarada à antiga. Clique na imagem acima para ampliar.