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quinta-feira, 27 de setembro de 2012

MEMÓRIA

Naquele tempo podia-se sonhar. O sonho era a ingenuidade de criança, poesia de um quotidiano que não se esgotava nem se rejeitava nele. Os limites eram imprecisos por desconhecidos ou não sentidos. Os sorrisos das pessoas “pareciam” sinceros e honestos. Não via neles nem ambição, nem inveja, nem ódio. Até os que zaragateavam nas tardes de domingo não se me antipatizavam como se tudo fizesse parte da naturalidade da vida. Aqueles de quem um dia me separava não  os inimizava nem disso necessitava. O que hoje se apresenta como sentimentalismo fácil, daquele tempo nascia sem segundas intenções e espontâneo.

O Verão era a época desejada do ciclo” estacional”. Os vinhedos tinham a cor da alegria e da esperança; ornamentados de verde e os bagos “pintavam-se” prenhes e fecundos. A minha terra tinha a beleza duma gestação sem dor. O céu assemelhava-se a uma gigantesca “ clarabóia” sob a qual se poderia dormir iluminado pelas estrelas e acordar, ao outro dia, com o sol acariciando-nos. Mas os homens da minha aldeia também arrastavam as grilhetas da angústia e traziam nos olhos a perturbação dum fatalismo irremediável. Eles viviam uns para os outros. Tivessem, ou não, terra esta era o fruto de que se alimentavam. Uns com mais, outros com menos ou com nada, eu dizia várias vezes que tinham de ser mais iguais e havia quem se espantasse. Os homens não eram maus, a realidade do ser levava-os, porventura, à repulsa do visionado.

Naquele tempo o viver não se projectava no cálculo geométrico dos gestos e a saudade era o desejo de estar onde não se estava… As palavras proibidas haviam-se fixado nos tempos de escola com os dois “retratos” lá no fundo a ladearem a grande lousa preta, onde os algarismos se escreviam debaixo da “vigilância” daqueles quatro olhos que nos infundiam o respeito das coisas intocáveis. Eles eram os “chefes”, os todo poderosos, perante quem o mais ligeiro altear da voz se tornava criminoso. E, no fim da tabuada e da redacção, a merenda, das uvas com broa, tinha um dobrado sabor. Então, estrada fora, sacola às costas, em juvenil algazarra, nos libertávamos sem sabermos de quê, jogando ao “ agarra”, pontapeando a bola ou correndo com o arco. E o sino da Igreja, sinalizando as Avés-Marias, quedava-nos por instantes, olhando os adultos que se “descobriram”.

Naquele tempo eu ia ao monte da minha terra, sentindo prazer no suor que a íngreme subida provocava, picando-me, aqui e além, nas tapagens de silvas, tentando descobrir ninhos no alto das oliveiras, estimulando com uma palha a saída dos grilos das suas loras, imitando com a ajuda das mãos o cantar das perdizes como via fazer aos caçadores...E lá no alto, bem no cimo das fragas, entretinha-me a escutar o eco dos meus brados – notas de satisfação duma forte impressão de liberdade. Sentado, via o Douro lá no fundo, superfície silenciosa de toda uma façanha de barqueiros, descobridores do caminho fluvial para a foz. Porque haveria homens assim? Fazendo trabalho tão duro com simplicidade quase complacente? E porque eram “eles” e não outros? O que determinava, afinal, a condição das pessoas? Seria a “sorte” uma aquisição irrevogável do nascer? Ou uma imagem de cada ser humano um modelo único sem hipótese de alteração? Homens havia que davam tudo e acabavam no esquecimento, que entregavam as energias da sua vitalidade à construção dum amanhã de crescimento e se viam de repente, com a brutalidade dum imprevisto estúpido transformados em anátemas. Mas as perguntas passavam, como a brisa por entre eucaliptos, para um posterior regresso interrogativo que nada conseguia evitar.

Naquele tempo, ainda muitos dormiam a sesta breve dum Verão encalorado que antecedia as vindimas, íamos de passo apressado para o adro da Capela romper os sapatos (os que os tinham) em jogos de futebol de mudar aos seis e acabar aos doze…Eram tardes de pó e suor, de ralhos e de “juras”, de nos “esfarrapar” para vencer aqueles Portos-Benficas da rapaziada da minha aldeia. Eram tardes de sol a pino e de correrias sem doseamento com ligeiras tréguas para deixarmos passar as mulheres que, de bacias à cabeça, regressavam do rio com a roupa lavada ou para ouvir as advertências do “guardador”, não fosse o entusiasmo dum pontapé mais forte levar a bola à vinha e esborrachar um cacho…

Era já com o sol a morrer e as mães em casa preparando as “contas”, que voltávamos, molhados e satisfeitos, discutindo os golos perdidos e combinando a desforra. A noite iria ser o interlúdio dum amanhã novo.
- *M. Nogueira Borges in Noticias do Douro de 21 de Junho de 1975
  
*Manuel Coutinho Nogueira Borges  é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial miliciano e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
  • Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue
Clique nas imagens para ampliar. Texto cedido pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição e imagem de Manuel Coutinho Nogueira Borges de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Retalhos da net: CONTOS SOMBRIOS de Mónica Baldaque

Livro de uma escritora da RÉGUA

Transcrição de "O Fio de Ariadne" (Zilda Cardoso) - Quinta-feira, 14 de Julho de 2011

Mónica Baldaque acabou de publicar um belíssimo livro que intitulou Contos Sombrios. Contos inspirados nas memórias de alguém que sabe dizer o que a tocou fundo e a relacionou com o mundo. E isto está escrito no livro do princípio ao fim com estas palavras e com outras.

Os contos são muito bons - são histórias de despedidas, diz-se na contra-capa. Trata-se fundamentalmente de se afastar de uma casa que vai ser vendida e que se tornou um espaço de memórias e de histórias de personagens que ali viveram, que a narradora conheceu e agora evoca. Talvez tenham acontecido, talvez não. A autora conta essas histórias "cheias de lacunas e de abismos" como se as tivesse ouvido a essas personagens no lugar mítico, na casa da Quinta do Douro, onde podiam ter acontecido.

Elas marcam também para a narradora, talvez autora, a despedida de uma época da sua vida que não se vai repetir e de que possivelmente lhe ficaram saudades.

Comovem-me sempre estas histórias não apenas por serem de despedida mas por se inspirarem em memórias de infância, em episódios que a narradora viveu ou que testemunhou ou com que sonhou. O que evoca é a época, o ambiente, a casa, as pessoas e os fantasmas que ali viveram – fez de tudo personagens com os seus conflitos, as misérias, os seus desejos, as sombras, as ruínas…

O que admiro na autora é a sua extrema sensibilidade para as coisas do mundo ou de certo mundo, a riqueza da sua solidão tão produtiva, o silêncio que aprecia e a concentração que alcança na procura do caminho do sagrado em si e naquilo que a rodeia. Admiro os seus conhecimentos, a sabedoria, os seus gostos requintados, a sua arte.

Porém, não esqueço que, ao estar desperta e a prestar atenção à sua voz interior, ao questionar e ao procurar a verdade em cada coisa e em cada acontecimento, ao meditar ou ao reflectir sobre isso, ela está a aproximar-se de Deus pelo caminho da espiritualidade. E está, nos seus contos, a convidar-nos para esse caminho de encontro e de transcendência.

“Há muitas coisas de que não me lembro. Outras, lembro-me de as lembrar. Outras, essas ficam bem nítidas, umas aqui, outras além, e são todas essas que tecem as minhas memórias.

Desde muito pequena que o sei: a minha força, o meu mundo interior nunca ultrapassou os lugares do meu imaginário. Nem vai ultrapassar. Por mais viagens que eu faça, por mais encontros que eu tenha, há um tempo inalterável. E desde criança que lá está tudo, intacto, como um embrulho de raízes.

O som mais longínquo de que tenho memória é o da voz da minha mãe a chamar “mãe”!

Rolava o som pela casa como uma nuvenzinha de partículas frágeis, transparentes, prontas a desagregar-se contra os estores de pano-cru queimados do sol. O som abria-se no quarto do mirante, junto à minha cama, batia na caliça da parede e saía ligeiro pela porta…”

É assim que principia A caveira da tia Assunção. Mónica fala de outros sons – o dos passos, o do vento e o do silêncio das tardes. Este último é o mais excitante dos silêncios.

Espero que apreciem como eu os Contos Sombrios, de Mónica Baldaque.
Por Zilda Cardoso às 16:31
Mónica Baldaque - Nasceu no Douro, no lugar de Ariz, Peso da Régua. O Douro tem uma importância fundamental na sua actividade de pintora, patente em grande parte da sua obra, alguma publicada em livros e catálogos. Profissionalmente está ligada à museologia, sendo conservadora principal de museus. Tem exercido cargos de direcção, estando actualmente nos museus municipais do Porto. Pertence ao conselho directivo da Associação dos Amigos do Museu do Douro e ao conselho cultural da Fundação Eça de Queiroz. Na pintura tem uma vasta obra no retrato e na paisagem. Realizou exposições individuais e participou em exposições colectivas. Integrou o grupo dos artistas convidados pelo Museu do Douro para criarem cinco rótulos para cinco produtores de vinho do Porto. Este é o seu terceiro livro. Filha de Agustina Bessa-Luís.
Bibliografia de Mónica Baldaque no "WOOK"
Clique nas imagens para ampliar. Contos Sombrios de Mónica Baldaque - Edição/reimpressão: 2011 - Páginas: 216; Editor: Ulisseia; ISBN: 9789725686744; Coleção: Ficção; Mónica Baldaque no Google.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Em conversa com Nogueira Borges - Frases...

Clique na imagem para ampliar

- M. Nogueira Borges, 31 de Agosto de 2011
Clique  na imagem acima para ampliar. Imagem de M. Nogueira Borges de autoria de J. L. Gabão. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Julho de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. O texto de M. Nogueira Borges é retirado de parte de missiva dirigida a JASA. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

sábado, 30 de junho de 2012

Em conversa com Nogueira Borges...

"... palavras sobre o homem amigo e o escritor nascido em S. João de Lobrigos, terra simples e de vinhos, para que sua grandeza humanista continue a brilhar no Douro. Uma vez me disse com um espanto infantil: "CARAMBA!!! ISTO É MESMO LINDO!!!!!!...

Hoje, ao anoitecer, fiz estas fotos a ele dedicadas, enquadradas no Céu do Douro lembrando-me que só pode está lá em cima a dizer-me: "CARAMBA!!! ISTO É MESMO LINDO!!!!!!"
- Jasa, Peso da Régua, 29 de Junho de 2012
A MINHA CIDADE
A minha cidade
Tem o visco da saudade
E o nevoeiro do futuro.
A minha cidade
Tem a tristeza do escuro,
Mas, sobretudo,
O brilho da verdade.
- M. Nogueira Borges in "O Lagar da Memória" -

O tempo que passa não passa depressa. O que passa depressa é o tempo que passou.
- Vergílio Ferreira

Clique  nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Junho de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Este artigo contém colaboração de José Alfredo Almeida e pertence ao blogue Escritos do DouroÉ proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

sábado, 24 de setembro de 2011

Meu Douro, meu país…


Camilo de Araújo Correia

Terra brava, convulsiva
Rio de paz e luta
perto e longe os horizontes…

Andou um Deus por aqui
A medir forças
Com o próprio chão.

Madrugadas de cristal
Dias fulvos, irisados
Noites negras de mistério…

Andou um Deus por aqui
A estudar a luz
Com o próprio  sol.

Invernos de purgatório
Primaveras de aguarela
E Outonos de Van Gogh…

Andou um Deus por aqui
A trocar as cores
Com o arco-íris.

Imagem de autoria de Miguel Guedes. Imagem e texto cedidos por Dr. José Alfredo Almeida em Setembro de 2011 para Escritos do Douro. Edição de J. L. Gabão. Camilo de Araújo Correia (Dr.) no Google. Camilo de Araújo Correia (Dr.) neste blogue. Clique na imagem acima para ampliar. J. Luis Gabão no GOOGLE BUZZ

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

VIDAS

As vidas irremediáveis
Não se conhecem.
São inviáveis,
Logo, não acontecem.
Não têm história,
Nem memória.
Banalidades das horas
E fastio da indiferença,
Não merecem demoras,
Nem um voto de esperança.

Há tantas vidas sem solução
A que ninguém deita uma mão.
Distantes,
Negligentes,
Morrem sós
Na hipocrisia do dó,
No egoísmo do eu,
Do tudo meu.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". A imagem ilustrativa acima é recolhida da internet livre. Clique na imagem para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou: Não Matem A Esperança. (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da FonteManuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.