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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Recordando… O incêndio na Casa Viúva Lopes

António Guedes

Quem era, na Régua, que não conhecia o João dos Óculos? João Figueiredo era o seu verdadeiro nome, sendo natural de Vila Pouca de Aguiar. Há meia dúzia de anos atrás alistara-se na Corporação dos Bombeiros Voluntários, da qual era um valioso elemento, de comportamento exemplar.

Era um belo e leal camarada. Tipógrafo de profissão, tinha a particularidade de ser um exímio tocador de gaita de beiços. Tinha arte e jeito para aquilo. Várias vezes tocara para a Emissora Nacional, que transmitia depois, para todo o país, as inúmeras e bem executadas músicas do seu sortido e selecto reportório.

Era míope e, para corrigir essa deficiência, usava uns óculos demasiadamente grandes para a sua estatura, pelo que dava a impressão de que trazia uma bicicleta escarranchada quase na ponta do nariz.

Gostava de passear, segundo me disse. Mas tinha a infelicidade de a escala nunca o contemplar quando se tratava da saída de qualquer piquete de representação para qualquer terra do país. E tão desiludido ficava quando isso acontecia que um dia, no quartel, me falou sobre o assunto.

- Não te aflijas, amigo João. Na primeira ocasião em que eu seja escalado, levo-te comigo, - respondi-lhe.

Até a alma se lhe riu, ao ouvir estas palavras, ficando demoradamente, como era seu gesto habitual, a esfregar as mãos de contentamento.

E um dia, de facto, caiu-lhe a sopa no mel. Fui escalado para, com um piquete, representar a Corporação numa festa qualquer que se realizava em Lisboa.

Um dia antes da partida fui até ao quartel, verificar se tudo estava em ordem e procurar o João, para lhe dar a boa nova.

Lá o encontrei, indolentemente encostado a uma viatura. Dirigindo-me a ele, informei-o de que, desta vez, a «cautela» lhe tinha saído premiada, pois que o levaria comigo, como lhe prometera.

Estou a ver a sua cara, radiante de felicidade. E, num abrir e fechar d’olhos, pôs o capacete e os botões da sua farda a brilhar como diamantes.

Na madrugada do dia imediato, partimos para a capital, levando o João, pequeno e franzino, entre mim e o motorista, visto que a lotação da viatura estava completa.

A viagem correu bem. E em Lisboa, após a parada, destroçámos e, com o Gastão e o Cristiano, fomos a Cascais e, depois, a Cacilhas, onde, como «aperitivo», comemos umas frescas e deliciosas sardinhas assadas. Foi um verdadeiro «magusto».

O João dos Óculos demonstrava a sua satisfação e alegria num constante sorriso, e não se separou de mim um instante, na eventualidade de vir a precisar dos seus serviços.

Não permiti que ele despendesse um centavo, contrariando a sua vontade.

E foi este, afinal, o único passeio que deu, pois que, passados tempos, a importuna sirene convocava-nos para um incêndio na Casa Viúva Lopes desta vila, e ele, - tal como no passeio que deu a Lisboa - para lá seguiu precisamente entre mim e o motorista.

Ao aproximar-me do prédio incendiado verifiquei, com infinito pesar, que já a nada podíamos valer, apesar da rapidez da nossa saída, pois as labaredas, alterosas, saindo por todas as janelas, envolviam totalmente o prédio sinistrado.

Se, como sucedeu, em vez de tentarem apagar o fogo, nos tivessem chamado imediatamente e, entretanto, tivessem desligado o quadro da electricidade, talvez se tivesse feito qualquer coisa proveitosa e não tivéssemos de lamentar, agora, a perda de uma vida preciosa. Mas não sucedeu assim, infelizmente.

À uma hora e meia da manhã, um bombeiro pediu para ser substituído, pois já estava há quatro horas de agulheta em punho.

Mandei chamar outro bombeiro para isso, mas o João, que estava ali próximo, ofereceu-se para substituir o camarada.

O pavimento da casa, naquele lugar, era de cimento, pensávamos nós. Era de cimento, sim, mas este de pouca espessura, aplicado sobre o soalho, o que constituía uma verdadeira e fatal armadilha. Se a derrocada se tivesse dado cerca de vinte minutos antes, lá ficariam o Comandante Lourenço Medeiros e o seu colega Neto, dos Bombeiros de Salvação Pública, de Vila Real, que tinham andado a vistoriar o prédio, interiormente.

O João tomou conta da agulheta, estando, assim como eu, colocados absolutamente como manda o regulamento, ou seja, sobre a soleira da porta e debaixo da sua padieira. O pé do João um pouco mais adiantado, talvez, e a derrocada do sobrado arrastou-o para aquele horrível inferno de labaredas.

Fiquei, eu e dois bombeiros que estavam presentes, envolvidos num mar de fumo, cinza e faúlhas, que quase nos cegavam.

A seguir, ouvi gritos horrorosos do João, não vendo este no lugar que ocupava. Vi a agulheta caída no chão e, então, avaliei o que havia sucedido. Quase às apalpadelas apanhei a agulheta e assestei o seu jacto em volta do João, que divisei, na penumbra, entalado por escombros, em cima de um tonel. Mandei os dois bombeiros buscar um lanço de escadas para tentarmos salvar o nosso camarada. Quando se colocava a escada para o Claudino descer, pois que se ofereceu para isso, com enorme fragor ruiu o pavimento do primeiro andar, cujos escombros, em escassos segundos, sepultaram completamente o pobre do João, cujos gritos deixaram de se ouvir.

Estes eram lancinantes, pavorosos e parece que ainda hoje estou a ouvi-los.

Quando vi baldados todos os nossos esforços para salvarmos o infeliz João, corri à procura do Comandante, para lhe dar parte da terrível tragédia. Mas já alguém se tinha antecipado a fazê-lo, pois que fui encontrá-lo completamente aniquilado. Abraçando-se a mim, chorou e soluçou como uma criança.

E essas lágrimas, sinceras e sentidas que vi deslizar, em catadupas, pelo enrugado rosto do meu bom e velho Comandante, contagiaram-me de tal forma que os soluços me embargaram a voz e as lágrimas me correram também pelo rosto, sujo pela cinza e pelo fumo daquele vulcão infernal, que tirara a vida àquele nosso bom e querido camarada.

Lágrimas destas não envergonham um homem.

Continuaram duas agulhetas a lançar água a jorros sobre o local em que se encontrava o franzino corpo do João, a fim de evitar que ficasse carbonizado, o que se conseguiu.

E só às seis da manhã, - já de dia - foi possível arrancar o seu pequeno corpo, sem vida, daquele funesto lugar.

Pobre e infeliz João! Como eu senti a morte daquele pequeno e grande amigo!

Pequeno e franzino como era, tinha no entanto uma alma de gigante.

Deu-nos um heróico e assombroso exemplo de abnegação, valentia e sacrifício.

O seu amolgado capacete ficou religiosamente guardado, no quartel, para figurar no nosso sonhado museu.
NOTA: Quem quiser conhecer a história dos bombeiros Régua terá ler as Memórias desde antigo Chefe dos Bombeiros da Régua (ocupou ainda o lugar de segundo comandante), já desaparecido do mundo dos vivos e que era filho do ilustre Comandante Camilo Guedes Castelo Branco. Este seu texto, faz parte de uma série que escreveu, com o título de Recordando… (já que o subtítulo é da responsabilidade exclusiva de quem faz este arquivo) evoca um dos maiores incêndios na Régua e, comovidamente, a personalidade singular do cidadão e do bombeiro João Figueiredo, o João dos Óculos, que vi morrer queimado nesse fogo quando estavam a combatê-lo, foi publicado no jornal Arrais, na sua edição de 25/01/1979.

Clique  nas imagens para ampliar. Imagens e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editados para este blogue. Edição e atualização de texto e imagens de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

O incêndio na Casa Viúva Lopes “Foi um dos maiores incêndios…”


A firma Silvano & Cunhados marcou na vila da Régua o primeiro lugar. Em 9 de Agosto de 1953, fomos vítimas de um incêndio. Nesse dia, estávamos eu e meus filhos no terraço da minha casa, eram ceram de 9 e meia da noite, ainda quase dia. Uma das minhas filhas, disse-me: - “Ó Paisinho, cheira-me aqui a chamusco”. Fiquei inquieto. Mandei à moagem, onde andavam carpinteiros a trabalhar que há pouco tempo tinham saído do serviço, e uma criada veio dizer:- “ É nas águas furtadas e vi roupas das criadas a arder.”

Os populares invadiram a casa, chamaram-se os Bombeiros que demoraram quase uma hora, e desprovidos de uma escada grande, com fracas mangueiras e também a falta de água, que nessa altura se fazia sentir, o fogo tomou grandes proporções, de forma que em pouco tempo o prédio estava todo em chamas.

Ainda a marcar mais esta grande desgraça, houve a infelicidade de no incêndio ter morrido um bombeiro da Régua, o infeliz João dos Óculos, bom rapaz e destemido bombeiro que perdeu a vida na sua dedicada profissão. A nossa casa mandou entregar aos filhos do bombeiro morto 3 contos, mas às diferentes corporações de Bombeiros que vieram de outros concelhos também se entregaram alguns contos, pois que embora a casa ardesse por completo houvera boa vontade de todos os bombeiros, e até mesmo do público, que ajudou a fazer os salvados, embora com esses salvados a nossa casa nada lucrasse, pois reverteram em favor das Companhias de Seguros, que abateram 200 contos nos géneros salvados e outros 200 contos nas paredes do prédio que ficaram direitas.

Foi um dos maiores incêndios que se deram há muitos anos nesta região, onde arderam em poucas horas muitos milhares de contos. As companhias de Seguros cumpriram bem os valores seguros, mas a nossa casa perdeu à sua conta mil e tal contos, pois os valores não estarem actualizados, ainda com a agravante de só em arroz estarem 600 sacos, muito açúcar, centenas de fardos de bacalhau, enfim, todos os andares da casa estavam repletos de mercadoria para a próxima vindima, daí a pouco mais de um mês.

Quando se deu o incêndio, as mercadorias salvas foram colocadas no cais da estação do caminho-de-ferro, que o digníssimo Inspector Sr. Adelino Monteiro nos franqueou e ainda outros inspectores, Chefe da Estação, guardadas, carregadores, enfim todos foram de uma amabilidade grande, ajudando uns, dando ordens outros, para que os salvados fossem guardados. A todos e para todos os nossos agradecimentos.

Os pequenos valores particulares que se salvaram foram guardados na Companhia União Fabril e na fábrica de moagem da firma Carneiro & C.ª, Limitada, que o seu gerente, Sr. Silva, igualmente pôs à nossa disposição. Para todos os nossos amigos e vizinhos vão os nossos agradecimentos mais sinceros, pois nas horas críticas é que se conhecem os amigos.

Logo em seguida aos dias do incêndio, pedimos para que a nossa casa pudesse ser reconstruída. Tais requerimentos foram indeferidos. A nossa casa não podia ser reconstruída visto que os serviços de urbanização da vila da Régua previam o alargamento de mais cinco metros naquela artéria, onde a estrada é das mais largas da Régua. Incomodámos dezenas de amigos, nada se conseguiu, e o casarão da Casa Silvano & Cunhados continua por reconstruir, exposto às agruras dos ventos e chuvas e está neste belo gosto há 16 meses, sem haver quem resolva este grande mal. Mais parece que vivemos no Marrocos francês do que na vila da Régua.

(…)

Aos meus fornecedores e aos fregueses e amigos desejo que Deus lhe dê saúde e as maiores felicidades; igual sorte desejo aos meus colaboradores e empregados da extinta firma Silvano & Cunhados, a todos oferecendo o meu fraco préstimo na Quinta da Vacaria, Régua, ou na minha nova casa comercial na rua João de Lemos, 41 a 49, em frente à Capela do Cruzeiro.

- Fevereiro de 1955, in MEMÓRIAS DE UM PROFISSIONAL DO COMÉRCIO, de Silvano Vitorino Machado, editado pela Imprensa do Douro, Régua-1955.

Clique nas imagens para ampliar

Notas: “O Autor deste pequeno livro, que resolveu oferecer gratuito aos seus amigos, chama-se Silvano Vitorino Machado, natural da freguesia de Louza, concelho de Moncorvo, distrito de Bragança. Nasceu em 26 de Dezembro de 1884; tem pois, ao fazer este livrinho, 70 anos.” (citado do mesmo). Ele foi, certamente, um dos maiores comerciantes da sua geração. Foi ele e que geriu o maior e estabelecimento comercial da Régua, a Casa Viúva Lopes, destruído pelo violento incêndio de 1955, que ele não deixou de recordar no livro das suas memórias, intitulado “Memórias de um Profissional de Comércio”.

O comentário que fez sobre a acção que tiveram os Bombeiros da Régua no fatídico incêndio, nomeadamente a demora que ocorreu no combate ao sinistro, mereceu reparos de desagrado da então Direcção da Associação, que o entendeu como uma crítica injusta. Mais tarde, numa carta de 8 de Março de Março de 1955, o comerciante veio explicar o sentido das suas palavras, onde é patente o seu carácter e o seu respeito pelos bombeiros da sua terra: “Estando eu certo, como está toda a gente moradora nesta vila, que esta respeitável e humanitária corporação tem prestado grandes e desinteressados serviços à vila do Peso da Régua e à sua população.” O tempo encarrega-se sempre de fazer justiça aos grandes Homens, incompreendidos no seu tempo e, sobretudo, ao trabalho abnegado e corajoso dos bombeiros, que viram morrer queimado João Figueiredo, com 33 anos, neste incêndio, um dos maiores de sempre na Régua.
Texto e imagens cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida e editados para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012. Atualizado em Outubro de 2012. Também publicado no semanário regional "O ARRAIS" edição de 25 de Outubro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos. 

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

OS BOMBEIROS DA RÉGUA - O meu testemunho

Desde muito novo que os Bombeiros me fascinam, toda a panóplia de fardas, equipamentos, viaturas, sirenes, movimentações mais ou menos militarizadas e saber que estão ali para nos acudir, marcaram no meu espírito um sentimento de admiração e inveja por não fazer parte, mais tarde, pela intersecção que a minha vida teve com a corporação da minha terra, também a gratidão pelo seu trabalho veio ao de cima. Mesmo em dias como os de hoje, onde tantos valores nos começam a fugir por entre o quotidiano da vida, para mim, o Bombeiro Voluntário da Régua é um caso à parte.

E a primeira lembrança que tenho dos Bombeiros da Régua é a de um desfile de Carnaval, em plena rua dos Camilos, era eu muito miúdo, teria talvez 4, no máximo 5 anos, recordo, já na fase final do desfile, alguns Bombeiros pendurados no carro que, ainda recentemente, fazia de viatura funerária, com artefactos pirotécnicos a iluminarem o ambiente. Localiza-os no momento em que entravam no antigo quartel, ainda na rua dos Camilos.

Se calhar, como muita gente da minha geração, nunca me esquecerei do pavoroso incêndio que, a 8 de Agosto de 1953, deflagrou nos antigos armazéns da Viúva Lopes. Com 9 anos vivi este incêndio como pouca gente, aí morreu um Bombeiro que era amigo da minha família, o João dos Óculos, João Figueiredo de seu nome. Conhecia-o pessoalmente desde tenra idade e pelo seu feitio alegre e divertido, tocava muito bem gaita-de-beiços, granjeou a minha amizade.

Este incêndio foi dos maiores incêndios urbanos que vi, de minha casa na Lousada viam-se as labaredas nos referidos armazéns que ficavam em frente ao Cais Coberto da Estação da Régua. Muitos dos materiais aí armazenados eram inflamáveis e a construção do edifício era parcialmente de madeira, particularmente a nível do 1º andar e no telhado. A sua extinção foi muito difícil, durou três dias, só o nível de qualidade do comando de então e a coragem e a determinação de todo o Corpo Activo evitou que o fogo alastrasse à moagem aí existente. É evidente que este incêndio foi uma autêntica romaria para a Região, julgo que levado pela minha família passei por lá todos os dias e mais do que uma vez.

A Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Peso da Régua foi, e é, uma instituição incontornável ao longo da minha vida já bem longa. Dos 11 aos 16 anos era rara a semana em que não passasse pelo salão de jogos existente no Quartel Delfim Ferreira para jogar uma partida de bilhar. No Carnaval, e não só, sempre que os Bombeiros da Régua organizavam bailes para angariação de fundos, raramente faltei.

Sem poder precisar a data, mas seguramente em finais da década de 80, numa bela manhã de Agosto, por altura das festas da cidade, quando me deslocava para o meu local de trabalho, constato que a sebe feita de silvas e marmeleiros de uma propriedade minha estava queimada numa extensão de mais 100 metros. Preocupado ao ver o desastre, conclui que dormi toda a noite tranquilo enquanto os Bombeiros me apagaram o fogo da sebe. Evitaram que quase 9.000 m2 de vinha ardessem, a vinha tinha levado herbicida recentemente e era muito possível que não escapasse se não fosse a intervenção dos nossos Bombeiros.

Mais recentemente, a 27 de Novembro de 2007, num prédio urbano que tenho na Lousada com 4 habitações contíguas, uma braseira mal cuidada de uma inquilina pegou fogo á sua habitação tendo esta ardido totalmente. O prédio é de construção antiga, e ainda que em toda a zona exterior as paredes sejam em blocos de cimento as divisões interiores são de taipa revestida com cal hidráulica e gesso, o forro e toda a armação do telhado são em madeira, o que significa que facilmente todo o prédio poderia ter ficado destruído. Excelentemente comandados, os bombeiros presentes seguraram o fogo e impediram a sua propagação ao resto do prédio. Quando vi as chamas a consumirem as traves e a madeira do telhado, fiquei convencido que iria tudo pelo ar. Do mal, o menos, só ardeu a referida habitação.

Por tudo isto, aqui fica neste meu testemunho o que de mais importante me parece ser: o meu sentimento de gratidão para com os Bombeiros da Régua. Julgo que serei sempre um homem em dívida.
- Miguel Macedo





Clique nas imagens para ampliar. Imagens e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012. Também publicado no semanário regional "O ARRAIS" edição de 30 de Agosto de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue somente com a citação da origem/autores/créditos.

sábado, 14 de maio de 2011

MEMÓRIAS DOS NOSSOS BOMBEIROS

                                                                                                   M. Nogueira Borges

I- «Era ainda pequenino, acabado de nascer», mas lembro-me, no meio de alguma sombra, do primeiro fogo que vi. Eu brincava, com o Aires e o Manel, no quintal da casa onde nasci ; seria Verão, e no entardecer,  porque o meu Avô, ao fundo, sentado num cesto vindimo, vestia colete e embrulhava um cigarro de tabaco de onça. O ar tinha uma calma de convento e só os crianças algaraviavam nos caminhos. Corríamos com os arcos, que descarrilavam dos ganchos, perdendo-se nos bardos de um calço rente ao muro. De repente, o meu Avô pegou na bengala que o ataque lhe impusera, levantou-se a gesticular, mandou-nos parar, e gritou pelo Alberto que dava palha ao Castanho. Minha Mãe também acorreu, pois quando o Pai se alterava toda a estirpe desassossegava.

Em Santo Estevão, no caminho alto que dá para o Rodo, uma chama, logo espalhada em contágio descontrolável, começava a devorar uma casa e outras anexas. Quase todas tinham muita madeira na sua feitura e o incêndio alastrou com a rapidez de um roubo. O povo despertou num clamor de tragédia. Mulheres, de canecos à cabeça, corriam a despejar a água colhida numa fonte escassa, situada no fundo da rampa; os homens, de sacholas e pás, lançavam a terra que arranhavam no caminho. Eu e os meus amigos largamos tudo e fomos para o pé do meu Avô a quem faltou a saliva para colar a mortalha. Batia com a bengala no chão e dizia para o Alberto: «Depressa! Chama o carro de praça para ir avisar os bombeiros!» Lembrei-me do inferno e dos pecadores. Jurei que iria ser sempre «um rapaz muito bem comportado», pois se as chamas infernais eram assim, então a minha Mãe tinha razão quando me dizia para comer a sopa toda.

Mal o carro vermelho, tocando a sineta, chegou ao Fial parece que as labaredas amainaram em respeito. Mas alegria tivemos nós quando o vimos a fazer a curva da árvore queimada, capacetes e machados reluzentes de homens que vinham «acabar com o fogo». Vários, aos gritos, se lhes dirigiram, ensinando o atalho onde o carro não cabia. Em desafio, pareceu, as chamas alteraram-se como se tivessem encontrado restos de papel. Correndo, os bombeiros lançaram-se àquele inferno verdadeiro, espalhando instruções, clamando ânimos, recusando desfalecimentos. Ainda hoje, ao escrever estas linhas, me emociono com o recordativo. Quando, no final, vencido o abrasamento, eles, descompostos e afogueados, desceram para a Régua, deixaram atrás de si o triunfo cantado no agradecimento dos atormentados, que, varrendo as cinzas da sua amargura, sonhavam com casas de cantaria.

Fiquei sempre com essa impressão juvenil de reverência e carinho pelo sacrifício e solidariedade dos nossos bombeiros, consolidada vida fora, algumas vezes lembrada quando as peripécias da vida, muitas vezes, me esbofeteiam com a surpresa.

II- A sirene dos Bombeiros ouvia-se no alto de S. Gonçalo. Era um chamado que afligia. Começava por um grito de desespero, de quem é atacado à falsa fé, seguido por prolongado gemido de sofrimento, esperando uma ajuda caridosa. Repetido, como se ninguém acudisse, esse apelo sonoro, num eco estendido pelos montes e vales, dilacerava as almas e escurecia a natureza. Os homens suspendiam as fainas, soerguiam-se, olhavam em redor, lançavam o olhar para Avões ou São Domingos, firmavam-se em Remostias ou no cimo do Peso; queriam ver onde se elevava o fumo, se era dentro ou fora da “vila”. Tiradas as “teimas” e assente a origem, debruçavam-se, de novo, para a terra que lhes dava o suor do sustento.

Os tempos de que trato eram de necessidade, em que uma sardinha de barrica dava para três, comia-se cebola com sal e broa com azeitonas, mas havia uma enorme riqueza de solidariedade. As gentes sofriam com o mal alheio, gostavam de ajudar e sentiam como suas as lágrimas vizinhas. A escassez irmanava no relevo dos gestos. Ser bombeiro era fazer parte dessa honra, ditada pelo falar popular, soldados da paz e serventes da humanidade, voluntários do mundo e escravos da lida contra o infortúnio, corpos fardados e almas civis.

III- As noites do Douro, nesse Agosto de 53, eram mais escuras do que hoje. A sua claridade vinha da lua, dos faróis de carro que, de quando em vez, alumiavam o silêncio dos vinhedos, um ou outro poste, de longe em longe, plantado pela boa vontade da Chenop, o petromax de quem levava a recolher a ebriedade, que esquecia nas tabernas as injustiças da sua sorte  desajustada na sua contabilidade doméstica.
Foi numa dessas noites que a Régua se cobriu com o clarão da tragédia. A Casa Viúva Lopes, forte estabelecimento comercial da época, ardia diante do pasmo assustado da terra, tolhida pelo sobressalto e pelo dó. Nem o rio ali ao pé nem o clamor da população segurou o recheio ou as traves que o defendia. Bem lutaram os bombeiros; lutaram até ao fim e até à morte. Lá ficou o Senhor Figueiredo, imortalizado pela pena do nosso Escritor, também ele imortal, João de Araújo Correia, como o João dos Óculos, que ganhava a vida a desenhar palavras no chumbo tipográfico. Lá ficou, queimado pelo seu voluntarismo, pela dedicação e amor ao próximo.

Na nossa Região, os Bombeiros Voluntários da Régua sempre foram uma referência. Associação humanitária a dar «vida por vida», num ditame nunca contestado, servindo, sem olhar a quem, nas dificuldades físicas e morais, na vida e na doença, na esperança e na morte. Mais uma vez se comprovara, bem duramente, a tradição e a lenda da sua história.

IV- Conheci-o em Moçambique, para onde fora mobilizado, no ano de sessenta e oito. Mais concretamente, foi em Porto Amélia que começou uma das minhas mais lindas amizades. O Jaime Ferraz Gabão – é dele que se trata – deixara um dia a sua Régua em busca de outros horizontes que lhe desse, e aos seus, novo sentido à vida. Pertenceu a essa plêiade de cabouqueiros que em África assegurou a sobrevivência sem chibatas, antes com suor repartido entre brancos e negros, respeitando as gentes, pois há sempre uma alma para dar a Deus. Ofereceu-me a sua mesa e as suas palavras nas noites em que brilhavam as acácias rubras sob os candeeiros escurecidos pelos mosquitos. Sentia-lhe a saudade pelo regresso, mas, também, receio de um dia ter que abandonar tudo - por pouco que fosse – depois de anos de sacrifício. Colaborámos, na distância – ele há tempos e com melhor saber – nos semanários regionalistas da nossa terra, cada qual na sua independência e companheirismo. Eu regressei e ele ficou.

Um dia abraçámo-nos na Rua dos Camilos. Ele viera nessa leva, inventada por uma qualquer pejorativa mente, de “retornados“. Ainda tentara ficar, mas a onda de oportunismo e adesão cobarde aos valores nunca professados, não lhe sossegavam as entranhas. Chegou de olhos tristes e coração despedaçado. Depois de alguns anos de aptidões reconquistadas, o Jaime adoeceu no corpo, que no espírito nunca sarou. Prolongou a doença o mais que pôde, mas quando ela chegou ao fim não encontrou grande resistência: ele já se cansara de lutar, de andar de abrigo em abrigo em busca da serenidade.

Foi numa tarde de Junho, quando a Régua é um inferno de calor, que ele subiu para o Peso onde descansa eternamente. Foram os nossos bombeiros  que o levaram, associado que era. Atrás, com os seus familiares e amigos, eu recordava-o numa mistura confusa, em que cabiam as memórias dos meus mortos, dos fogos e das cinzas, mas, também os carinhos dispensados aos vivos, ajudando, até, a nascer muitos que perpetuam o nosso mundo.

Agora que vem aí o Verão, estação para algumas descomposturas e traições humanas, ofensivas da natureza e dos socorros dos soldados da paz, que não falte o apoio e a boa fé de quem manda, mesmo neste tempo de desgosto e baixeza moral.

Abril 2011

Nota: Agradecemos ao escritor M. Nogueira Borges, natural do concelho de S. Marta de Penaguião, por ter escrito para o Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua este brilhante texto sobre as suas memórias dos bombeiros e, em especial, sobre os da Régua. O nosso muito obrigado por ter evocado factos e figuras que ainda hoje são inesquecíveis na longa história dos Bombeiros da Régua.
- Matéria cedida por M. Nogueira Borges e J. Alfredo Almeida para Escritos do Douro em Maio de 2011. Clique nas imagens ilustrativas do texto acima para ampliar.
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Memórias dos Nossos Bombeiros - 1
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 28 de Abril de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
MEMÓRIAS DOS NOSSOS BOMBEIROS
Memórias dos Nossos Bombeiros - 2
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 5 de Maio de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
MEMÓRIAS DOS NOSSOS BOMBEIROS - 2

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Relendo: "História de um soneto" por João de Araújo Correia

Atualizado. Publicado inicialmente em 29-JUL-2008.
(Clique na imagem para ampliar)
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Na dramática noite do dia 8 de Agosto de 1953 estava em frente à estação da Régua, junto ao muro que dá para o rio Douro, assistindo ao dantesco espetáculo. Com seis anos de idade à época, acompanhava meu saudoso Pai Jaime Ferraz Rodrigues Gabão. Jamais saiu de minha memória a beleza assustadora e dramática das chamas envolvendo o edifício enorme da Casa Viúva Lopes. Experiência que marca até aos dias de hoje, com nitidez impressionante, minhas lembranças.
- J. L. Gabão, Brasil, Julho de 2008.
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O perigo anda de mãos dadas com a vontade de acudir e de servir a todos. A tragédia espreita a cada canto, e por vezes a morte sai a rua. Foi o que aconteceu no dia 8 de Agosto de 1953 com o Bombeiro João Gomes Figueiredo. João de Araújo Correia, homenageou o valente Soldado da Paz como se pode ler no texto abaixo:
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HISTÓRIA DE UM SONETO
- Por João de Araújo Correia
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Quando, em 1953, ardeu por completo, nesta vila, a CASA VIÚVA LOPES, empório de secos e molhados, como se diz no Brasil, morreu no incêndio o bombeiro João Figueiredo, mais conhecido por João dos Óculos.
No dia seguinte ao fogo, vi o cadáver, estendido de costas, do lado de dentro de uma abertura, que tinha sido, poucas horas antes, uma das portas da grande mercearia.
O corpo do João, ligeiramente vestido, como que ostentava, em toda a extensão das partes descobertas, o que se diz em Medicina, queimaduras do primeiro grau.
Não sei se a rápida morte do João foi devida às queimaduras, talvez mais extensas do que as ostentadas, se foi devida a asfixia ou queda. Não li relatório de autópsia nem sei até se o João foi autopsiado. Sei que morreu durantge o incêndio da CASA VIÚVA LOPES.
Era um pouco triste e um pouco frio, no trato, o João dos Óculos. Mas, homem bem comportado, honesto compositor na IMPRENSA DO DOURO. Vi-o trabalhar, muitas vezes, sem erguer os olhos do componedor.
Tive muita pena do desgraçado bombeiro. Tanto mais, que me eram simpáticos os seus padrinhos e pais adoptivos, o já cansado tipógrafo João Monteiro e sua mulher, a Senhora Glorinha, proprietários de uma arcaica tipografia quase morta chamada TRASMONTANA. Tinham descido de Vila Pouca de Aguiar à Régua, com seu prelo, como se tivessem embarcado para o Brasil. A Régua é chamariz de quem precisa de governar a vida.
Tive muita pena do João dos Óculos, falecido em 1953. Quando, em 1955, festejou as bodas de diamante a benemérita ASSOCIAÇÃO DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DO PESO DA RÉGUA, lembrei-me dele e da sua trágica morte. E, vai daí, andando a passear no meu quarto, improvisei um soneto à sua memória. Digo improvisei, porque me apareceu no cérebro, desde a primeira à última palavra. Nasceu-me, de mais a mais, a conversar com um dos meus filhos, o Camilo, que não é nada tolo, como toda a gente sabe.
Por ele não ser tolo, recitei-lhe o soneto antes de o escrever.
Mas que má impressão lhe causei! Premiou-me os catorze versos com uma coroa de catorze espinhos. Disse-me que eram versos de cego.
Versos de cego, em 1955, eram uma versalhada, que os ceguinhos entoavam na rua, ao som da viola, violão ou outro instrumento de corda, para apurar tostões. Levavam de terra em terra, tocando e cantando, o noticiário de grandes casos. Eram, quase sempre, eco de grandes crimes, principalmente crimes passionais.
Estou a ouvi-los entoar a versalhada, que, na opinião de meu filho, era mãe do meu soneto.
Embora... Publiquei os meus catorze versos numa folha ilustrada, comemorativa dos setenta e cinco anos dos nossos Bombeiros.
Aqui reproduzo o soneto como se repetisse a minha oferenda a um quartel que festeja, em 1980, o primeiro centenário. É como segue:
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BODAS DE DIAMANTE
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O João dos Óculos nasceu bombeiro.
Embora fosse pálido e franzino,
Cumpriu até o fim o seu destino
Com impoluta alma de guerreiro.
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Nenhuns braços lhe foram cativeiro
Mal da sereia ouvisse o som mofino...
Em uma noite de luar divino
Foi encontrar a morte num braseiro.
.
A sua Associação, cândida amante,
Celebra hoje as bodas de diamante,
Quase cem anos de exostência honesta.
.
Um bom diamante, sócios, é carvão.
Ide buscar o coração do João
E fazei dele o símbolo da festa.
.
Mal chegou a Lisboa o sonetito, encontrou no Dr. Nuno Simões carinhoso acolhimento. Depois de o ler na folha única, não se conteve o ilustre publicista. Comunicou o seu entusiasmo à Associação dos Bombeiros.
Isto de críticos... Se todos pensassem o mesmo, a respeito de qualquer obra, tombava o mundo para uma banda, correria o risco de se perder na imensidade.
Todos os conselhos ouvirás e o teu não deixarás - reza o prolóquio. Todas as críticas ouvirás e a tua não deixarás - digo eu antes e depois de publicar os meus escritos. Sei ou suponho que sei até que ponto merecem ser publicados.
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Não se ficou somente pelo texto atrás reproduzido, a homenagem do "Mestre de todos nós" ao bombeiro falecido no incêndio da Casa Viúva Lopes...
Foi fatídico esse ano de 1953. A 24 de Dezembro, coube a desdita ao garboso e corajoso Afonso Pinto Monteiro, que acabado de almoçar, ao primeiro toque da sirene veio a correr atá ao Quartel. O incêndio era em Sedielos, e ainda a viatura subia a rua junto à Igreja Matriz de Godim, e já o Bombeiro falecia por indigestão provocada pela pela aflitiva corrida de momentos antes.
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Livro - "Bombeiros Voluntários do Peso da Régua-125 anos da sua História";
Propriedade - Bombeiros Voluntários do Peso da Régua;
Autor - Manuel Igreja;
Fotografia - B. V. do Peso da Régua, Foto Baía, Manuel Igreja;
Paginação, fotolitos e impressão - Imprensa do Douro;
Depósito Legal n. 234957/05;
Tiragem - 2.000 exemplares.

História de um Soneto
João de Araújo Correia
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 27 de Janeiro de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
História de um Soneto

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O João dos Óculos a caminho da Eternidade

Se é muito difícil escrever sobre a morte de um homem é mais complicado escrever sobre a morte de um bombeiro em serviço numa missão de socorro, como sucedeu ao João Gomes de Figueiredo, mais conhecido por João dos Óculos, no violento incêndio ocorrido na Casa Viúva Lopes, na da Régua, no dia 8 de Agosto de 1953.

Quem ainda o conheceu como bombeiro deve saber porquê, mas quem como eu, apenas ouvi-o falar dele, interroga-se se não é absurdo e injusto um jovem homem, como ele era, perder a sua vida quando estava cumprir o dever de ajudar a salvar a vida e os bens do seu semelhante. Dizem que este é o risco de quem escolheu para o seu destino a divisa “vida por vida”. E, que Deus só escolhe e leva para junto si aqueles que mais ama. Se assim é, um deles, o melhor coração que encontrou no nosso seio, foi o do João dos Óculos.

Natural de Vila Pouca de Aguiar, veio cedo para a Régua com seus pais ganhar a vida. Por aqui, ficou até morrer no meio das chamas desse grande incêndio, quando tinha de idade 33 anos. Os companheiros tinham-no como um excelente amigo, apesar de ser um pouco triste e frio. Como o bombeiro nº 14 da associação reguense foi um fiel e dedicado servidor, sempre pronto a aparecer nas horas de perigo e maior aflição. Desempenhava a profissão de tipógrafo na famosa Imprensa Douro e, nos tempos livres, era sua alma artista que mais brilhava. Gostava de cantar e de tocar harmónica de beiços em que era exímio. A antiga Rádio Alto-Douro convidava-o para tocar o vasto reportório de músicas nos seus programas. Fazendo parte do Orfeão Reguense e da Orquestra Diabólica animou muitos espectáculos e festas.

A sua morte foi uma tragédia para todos. A começar pela família, a viúva D. Celeste Correia Figueiredo e os seus três filhos de tenra idade que, como se deve imaginar, lhes fez muita falta no seu sustento. Sabemos que sofreram dificuldades e privações na sua sobrevivência. À sua família valeram as ajudas em bens, alimentos e brinquedos que a direcção do Dr. Júlio Vilela sempre quis prestar, para os proteger da miséria em que ficaram. Os seguros de vida, nesse tempo, como ainda hoje, tinham valores reduzidos para compensar uma vida.
Como o passar dos tempos, a Régua não esqueceu o bombeiro João dos Óculos. A Câmara Municipal, presidida por Renato Aguiar, fez-lhe uma homenagem ao baptizar com o seu nome uma rua da cidade.

O escritor João de Araújo Correia, nas Bodas de Diamante da Associação (1955), lembrou-o assim, neste soneto:

“O João dos Óculos nasceu bombeiro
Embora fosse pálido e franzino,
Cumpriu até o fim o seu destino
Com impoluta alma de guerreiro

Nenhuns braços lhe foram cativeiro
Mal da sereia ouvisse o som mofino…
Em uma noite de luar divino
Foi encontrar a morte num braseiro.

A sua associação -cândida amante -
Celebra hoje as Bodas de Diamante…
-Quase cem anos de existência honesta.

Um bom diante, sócios, é carvão.
Ide buscar o coração do João
E fazei dele o símbolo da festa.”

O triste acontecimento está bem gravado na memória colectiva. E, uma placa de mármore, no meio de uma parede do quartel, assinala em sua memória esse dia fatídico. E aviva o esquecimento do seu nome. Os bombeiros do presente têm um sentido de respeito e solidariedade pelos velhos camaradas. Não esquecem a perda deste homem. O João dos Óculos vive nas suas lembranças e nos seus medos… O seu exemplo de bombeiro sensibiliza-os como uma prova de abnegação, valentia e sacrifício.

O velho Chefe António Guedes nas suas memórias escritas no jornal “O Arrais”, em 25 de Janeiro de 1979, que esteve a combater incêndio com o João do Óculos, descreve-nos, com dor e nostalgia, o instante em que assistiu à sua morte, assim desta maneira:

“Passados tempos, a importuna sirene convoca-nos para um incêndio na Casa Viúva Lopes, desta vila, e ele para lá seguiu entre mim e o motorista.

Ao aproximar-me do prédio incendiado verifiquei, com infinito pesar, que já a nada podíamos valer, apesar da rapidez da nossa saída, pois as labaredas, alterosas, saindo por todas as janelas, envolviam o prédio sinistrado.

À uma hora e meia da manhã um bombeiro pediu-me para ser substituído, pois já estava há quatro horas de agulheta em punho.

Mandei chamar outro bombeiro, para isso, mas o João estava ali próximo ofereceu-se para substituir o camarada.

O pavimento da casa, naquele lugar, era de cimento, pensávamos nós. Era de cimento, sim, mas este, de pouca espessura, aplicado no soalho o que constituía uma verdadeira e fatal armadilha. Se a derrocada se tivesse dado cerca de vinte minutos antes, lá ficariam o Comandante Lourenço Medeiros e o seu colega Neto, dos Bombeiros de Salvação Pública, de Vila Real, que tinham andado a vistoriar o prédio, interiormente.

O João tomou conta da agulheta estando, assim como eu, colocados absolutamente como manda o regulamento, ou seja, sobre a soleira da porta e debaixo da sua padieira. O pé do João um pouco mais adiantado, talvez, e a derrocada do sobrado arrastou-o para aquele horrível inferno de labaredas.

Fiquei, eu e dois bombeiros que estavam presentes, envolvidos num mar de fumo, cinzas, que quase nos cegavam. A seguir, ouvi gritos horrorosos do João, não vendo este no lugar que ocupava. Vi a agulheta caída no chão e então, avaliei o que havia sucedido. Quase às apalpadelas apanhei a agulheta e assestei o seu jacto em volta do João, que divisei, na penumbra entalado por escombros, em cima de um tonel.

Mandei os dois bombeiros buscar um lanço de escadas para tentarmos salvar o nosso camarada. Quando se colocava a escada para o Claudino descer, pois que se ofereceu para isso, com enorme fragor ruiu o pavimento do primeiro andar, cujos escombros, em escassos segundos sepultaram completamente o pobre do João, cujos gritos se deixaram de ouvir. Estes eram lancinantes, pavorosos e parece que ainda hoje estou a ouvi-los.
(…)

Continuaram duas agulhetas a lançar água a jorros sobre o local em que se encontrava o franzino corpo do João, a ficar de evitar que ficasse carbonizado, o que se consegui. E, só as seis da manhã - já de dia - foi possível arrancar o seu pequeno corpo, sem vida, daquele funesto lugar.

Pobre e infeliz João! Como senti a morte daquele pequeno e grande amigo pequeno e franzino, como era, tinha uma alma de gigante. Deu-nos um heróico e assombroso exemplo de abnegação, valentia e sacrifício.”

Nas cerimónias fúnebres, os bombeiros e o povo mostraram sentidas manifestações de desgosto e profundo pesar. As duas dezenas de corporações de soldados da paz, num sentimento de união, vindos de todo o país, associaram à dor e à mágoa dos que mais amavam este bombeiro… da Régua.

O corpo do João dos Óculos foi velado no quartel pela sua família e por uma guarda de honra permanente de bombeiros. Ao meio da tarde, o seu cortejo fúnebre saía em direcção ao cemitério do Peso. Os comerciantes, em sinal de respeito e de luto, encerravam as portas das suas lojas. Ao passar pela Av. Dr. Manuel de Arriaga “formou-se um apinhado de gente que assistia comovida à passagem do cortejo fúnebre”. Escreveram assim nas suas notícias os jornais da terra.

Deste mundo, partia para sempre um ser humano que tivera uma morte penosa a praticar o bem, a quem se dava o último aceno com lágrimas de emoção e de saudade…!

Na inédita fotografia, o João dos Óculos estava ainda a caminho da Eternidade, onde Deus o chamou para voltar a olhar pelas nossas vidas, ganha mais sentido o angustiante silêncio dos bombeiros da Régua, fardados num luto de tristeza, seguindo os passos sagrados e as orações de fé do Padre Avelino Branco.

Afinal, como aqueles bombeiros, é no caminho entre esta e a outra vida intemporal que muitos homens percebem que é ainda possível viver num mundo sem egoísmo.

Aprendam, se querem ter melhores sentimentos, a grande lição de vida e de humanidade que nos deixou o bombeiro João Gomes de Figueiredo, o nosso João dos Óculos.
- Peso da Régua, Outubro de 2009, J. A. Almeida.

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terça-feira, 29 de julho de 2008

História de um soneto.

(Clique na imagem para ampliar)
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Na dramática noite do dia 8 de Agosto de 1953 estava em frente à estação da Régua, junto ao muro que dá para o rio Douro, assistindo ao dantesco espetáculo. Com seis anos de idade à época, acompanhava meu saudoso Pai Jaime Ferraz Rodrigues Gabão. Jamais saiu de minha memória a beleza assustadora e dramática das chamas envolvendo o edifício enorme da Casa Viúva Lopes. Foi experiência que marca até aos dias de hoje, com nitidez impressionante, minhas lembranças.
- J. L. Gabão, Brasil, Julho de 2008.
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O perigo anda de mãos dadas com a vontade de acudir e de servir a todos. A tragédia espreita a cada canto, e por vezes a morte sai a rua. Foi o que aconteceu no dia 8 de Agosto de 1953 com o Bombeiro João Gomes Figueiredo. João de Araújo Correia, homenageou o valente Soldado da Paz como se pode ler no texto abaixo:
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HISTÓRIA DE UM SONETO
- Por João de Araújo Correia
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Quando, em 1953, ardeu por completo, nesta vila, a CASA VIÚVA LOPES, empório de secos e molhados, como se diz no Brasil, morreu no incêndio o bombeiro João Figueiredo, mais conhecido por João dos Óculos.
No dia seguinte ao fogo, vi o cadáver, estendido de costas, do lado de dentro de uma abertura, que tinha sido, poucas horas antes, uma das portas da grande mercearia.
O corpo do João, ligeiramente vestido, como que ostentava, em toda a extensão das partes descobertas, o que se diz em Medicina, queimaduras do primeiro grau.
Não sei se a rápida morte do João foi devida às queimaduras, talvez mais extensas do que as ostentadas, se foi devida a asfixia ou queda. Não li relatório de autópsia nem sei até se o João foi autopsiado. Sei que morreu durantge o incêndio da CASA VIÚVA LOPES.
Era um pouco triste e um pouco frio, no trato, o João dos Óculos. Mas, homem bem comportado, honesto compositor na IMPRENSA DO DOURO. Vi-o trabalhar, muitas vezes, sem erguer os olhos do componedor.
Tive muita pena do desgraçado bombeiro. Tanto mais, que me eram simpáticos os seus padrinhos e pais adoptivos, o já cansado tipógrafo João Monteiro e sua mulher, a Senhora Glorinha, proprietários de uma arcaica tipografia quase morta chamada TRASMONTANA. Tinham descido de Vila Pouca de Aguiar à Régua, com seu prelo, como se tivessem embarcado para o Brasil. A Régua é chamariz de quem precisa de governar a vida.
Tive muita pena do João dos Óculos, falecido em 1953. Quando, em 1955, festejou as bodas de diamante a benemérita ASSOCIAÇÃO DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DO PESO DA RÉGUA, lembrei-me dele e da sua trágica morte. E, vai daí, andando a passear no meu quarto, improvisei um soneto à sua memória. Digo improvisei, porque me apareceu no cérebro, desde a primeira à última palavra. Nasceu-me, de mais a mais, a conversar com um dos meus filhos, o Camilo, que não é nada tolo, como toda a gente sabe.
Por ele não ser tolo, recitei-lhe o soneto antes de o escrever.
Mas que má impressão lhe causei! Premiou-me os catorze versos com uma coroa de catorze espinhos. Disse-me que eram versos de cego.
Versos de cego, em 1955, eram uma versalhada, que os ceguinhos entoavam na rua, ao som da viola, violão ou outro instrumento de corda, para apurar tostões. Levavam de terra em terra, tocando e cantando, o noticiário de grandes casos. Eram, quase sempre, eco de grandes crimes, principalmente crimes passionais.
Estou a ouvi-los entoar a versalhada, que, na opinião de meu filho, era mãe do meu soneto.
Embora... Publiquei os meus catorze versos numa folha ilustrada, comemorativa dos setenta e cinco anos dos nossos Bombeiros.
Aqui reproduzo o soneto como se repetisse a minha oferenda a um quartel que festeja, em 1980, o primeiro centenário. É como segue:
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BODAS DE DIAMANTE
.
O João dos Óculos nasceu bombeiro.
Embora fosse pálido e franzino,
Cumpriu até o fim o seu destino
Com impoluta alma de guerreiro.
.
Nenhuns braços lhe foram cativeiro
Mal da sereia ouvisse o som mofino...
Em uma noite de luar divino
Foi encontrar a morte num braseiro.
.
A sua Associação, cândida amante,
Celebra hoje as bodas de diamante,
Quase cem anos de exostência honesta.
.
Um bom diamante, sócios, é carvão.
Ide buscar o coração do João
E fazei dele o símbolo da festa.
.
Mal chegou a Lisboa o sonetito, encontrou no Dr. Nuno Simões carinhoso acolhimento. Depois de o ler na folha única, não se conteve o ilustre publicista. Comunicou o seu entusiasmo à Associação dos Bombeiros.
Isto de críticos... Se todos pensassem o mesmo, a respeito de qualquer obra, tombava o mundo para uma banda, correria o risco de se perder na imensidade.
Todos os conselhos ouvirás e o teu não deixarás - reza o prolóquio. Todas as críticas ouvirás e a tua não deixarás - digo eu antes e depois de publicar os meus escritos. Sei ou suponho que sei até que ponto merecem ser publicados.
.
Não se ficou somente pelo texto atrás reproduzido, a homenagem do "Mestre de todos nós" ao bombeiro falecido no incêndio da Casa Viúva Lopes...
Foi fatídico esse ano de 1953. A 24 de Dezembro, coube a desdita ao garboso e corajoso Afonso Pinto Monteiro, que acabado de almoçar, ao primeiro toque da sirene veio a correr atá ao Quartel. O incêndio era em Sedielos, e ainda a viatura subia a rua junto à Igreja Matriz de Godim, e já o Bombeiro falecia por indigestão provocada pela pela aflitiva corrida de momentos antes.
.
Livro - "Bombeiros Voluntários do Peso da Régua-125 anos da sua História";
Propriedade - Bombeiros Voluntários do Peso da Régua;
Autor - Manuel Igreja;
Fotografia - B. V. do Peso da Régua, Foto Baía, Manuel Igreja;
Paginação, fotolitos e impressão - Imprensa do Douro;
Depósito Legal n. 234957/05;
Tiragem - 2.000 exemplares.

História de um Soneto
João de Araújo Correia
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 27 de Janeiro de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
História de um Soneto