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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Uma carta do Sr. Dr. Mário Bernardes Pereira


Quando da celebração, recente, da passagem do 70.º aniversário da sua fundação, a Associação de Bombeiros Voluntários desta vila expediu vários telegramas de saudação e agradecimento por benefícios recebidos. Entre eles, um ao Sr. Mário Bernardes Pereira, à Câmara de cuja presidência ela ficou devendo valiosíssimos serviços, como a oferta do terreno para a edificação do seu novo quartel (ainda e infelizmente incompleto) e a actualização do subsídio que vinha recebendo.

Decorridos cerca de 20 anos, os bombeiros, em cujos peitos espontaneamente desabrocham dois dos sentimentos que nos nossos dias menos se cultivam e menos se apreciam, - o do amor ao próximo e o da gratidão, - vieram relembrar o facto e significar ao Sr. Dr. Mário Pereira a simpatia e a consideração que lhe tributam e que não podem ser mais elevadas. E que esse nosso prezado e distintíssimo conterrâneo e os de mais membros da Câmara a que presidia, não se limitaram a fazer à encanecida Associação promessas animadoras, ou reiteradas e espaventosas afirmações de simpatia como tantas, afinal, lhe têm sido feitas, e das quais com frequência se usa e abusa, - porque não acarretam encargos, nem responsabilidades ou compromissos, e mascaram até, porventura e em certos casos, a indiferença ou o desprezo absoluto pela acção que ela desenvolve, pelos serviços relevantíssimos que ela presta, pela luta em que permanentemente anda empenhada para poder assegurar a sua existência.

O Sr. Dr. Mário Pereira e os seus e nossos amigos (todos ainda vivos graças a Deus) não se limitaram, pois a essas frias e platónicas promessas, a essas afirmações de simpatia, mas definiram-nas, concretizaram-nas, pela forma eloquente e generosa que deixamos exposta.

Não esqueceu a Associação de Bombeiros essas provas de amizade e boa vontade, jamais se esquecerá.

E à saudação dessa Associação, servida por gente humilde é certo, toda muito humilde, mas que nem pelo facto de o ser deixa de ter sentimentos nobres e altivos, porque não se roja, não se curva, não adula, porque passe a consciência exacta do que vale, a noção perfeita da missão que desempenha, respondeu o Sr. Dr. Mário Bernardes Pereira com a carta que a seguir e com imenso prazer transcrevo:

“…Sr. Presidente da Direcção da Associação de Bombeiros:
Só a carência de saúde motivou o atrazo com que acuso a recepção do telegrama, tão cativante, que V. me enviou no dia do aniversário da Associação. Emocionaram-me profundamente as palavras que me foram dirigidas. Já vão longe os anos em que, na Câmara, procurei servir o melhor que pude, os interesses da minha terra; não esqueço o entusiasmo com que iniciei a minha cruzada.
Hoje, é igual o amor pela terra em que nasci; a energia, a capacidade de lucta, a saudade física, é que não são iguais. Não esqueço os meus companheiros de então, aqueles que nada queriam para si, nada pediram em troca do seu esforço e da sua dedicação.
Afinal, símbolo desse altruísmo e dessa isenção, é a Associação dos Bombeiros. Passam vereações, sucedem-se facções no comando da política do concelho, renovam-se figuras no tablado administrativo: a Associação mantêm-se indestrutível, sobrevive a todas as modificações, escola de sentimentos humanitários, de abnegação e de civismo. De longe, avalia-se melhor a grandeza dos homens e das colectividades. Quanto mais labuto por aqui, mais sinto, em todos os recantos do meu ser, o sangue afirma-se reguense e duriense; e, ao recordar quanto me afirma o valor da minha terra, vejo sempre sobrepor-se a tudo, como modelo de vitalidade no culto de uma nobreza eterna, de sentimentos, de humanitarismo e de coragem, a Associação de Bombeiros. Passam na minha recordação, dignificadas, as figuras que sucessivamente comandaram o seu corpo activo; passam sempre, com tanta sinceridade na minha admiração, como quando lutei pela Associação antes de ocupar o meu posto na Câmara, e procurei servi lá quando presidia vereação.
Outras lembranças se apagam, á medida que a vida passa, e os anos me curvam, de fadiga. Esbatem-se já as silhuetas de muitos do meu tempo, na imprecisão da memória. Porém, quando sonho dias melhores para a minha terra – os dias que Ela merece – e visualizo a solenidade duma consagração, todos os pormenores ficam indefinidos, mal se esboça a representação de pessoas e organismos; fiel, à frente de toda a figuração, primeira por direito próprio, credora da admiração e da gratidão de todos, vejo sempre, nitidamente, a Corporação dos Bombeiros, capacetes doirados, rodeando um estandarte de honrosas tradições.
Agradeço, comovidamente, á Direcção a que V. preside, o ter-se lembrado duma pessoa apagada que mais não fez do que pretender recordar ao povo da Régua, o muito que deve à Associação dos Bombeiros Voluntários.
Faço votos porque o Destino a engrandeça, como, é natural em presença da dedicação admirável, imensa, daqueles que a servem.
De V. Etc.
(a)Mário Bernardes Pereira 14 -12- 50»

Esta carta é mais uma afirmação do brilhante, do lucidíssimo espírito do seu autor. Lê se e relê-se. Enternece, faz vibrar a sensibilidade de todos quantos à velha Associação veem dedicando os seus incansáveis esforços e os melhores tempos da sua vida, - porque nunca ninguém dela disse tanto e disse tão bem, em termos tão calorosos, tão expressivos e tão repassados de sinceridade. Por isso, ela vai ser impressa em papel especial e afixada nos seus 2 quartéis, a fim de que aos bombeiros, aos humildes e obscuros bombeiros, sirva de estimulo e de incentivo para que prossigam, como até aqui, no estrénuo cumprimento do seu dever, honrando a farda que envergam e o velho e glorioso estandarte que há 70 anos e num dia de festa brilhante, tocante, como aquela que há pouco se realizou. Pela primeira vez e com o mesmo aprumo e a mesma galhardia, foi empunhado por aqueles seus camaradas que a morte já aceitou.

E essa uma homenagem, que os bombeiros prestam ao Sr. Dr. Mário Pereira, e com a qual lhe querem significar o seu profundo e inalterável reconhecimento por mais essa prova de afecto e de apreço pela sua Associação e do interesse que lhe merecem às coisas da sua terra. Homenagem modesta, apagada talvez, mas muito comovida, e de cuja sinceridade ele não pode duvidar.

… Afastou-se o Senhor Doutor Mário do nosso convívio. Perdeu a nossa terra, e esse prejuízo dia a dia se sente, se afirma cada vez mais dolorosamente.

E os bombeiros sabem e sentem que também perderam muitíssimo.

Jaime Guedes 

Nota: Este artigo foi publicado no jornal de Noticias do Douro, edição de 24 de Dezembro de 1950. O seu autor Jaime Guedes (filho do Comandante Camilo Guedes Castelo Branco e irmão do Chefe António Guedes), ilustre reguense, destacou-se nos anos 30 como vereador na Câmara Municipal da Régua e, a além de outros cargos que exerceu na Associação, foi um empenhado  e dedicado Presidente da Direcção.
 Reúnem-se aqui dois preciosos documentos para a história dos Bombeiros da Régua que revelam alguns factos da construção do Quartel Delfim Ferreira. Os comentários de Jaime Guedes e a divulgação que faz de uma interessante carta de um outro grande Presidente da Direcção da AHBV, o médico Dr. Mário Bernardes Pereira que, como presidente da edilidade reguense, doou a parcela de terreno para ser construído o actual Quarta, obra de arte projectada, a título gratuito, pelo famoso Arq. Oliveira Ferreira.
Aos directores Jaime Guedes (na foto) e ao Dr. Mário Bernardes Pereira devem os Bombeiros da Régua uma singela homenagem, como sinal de reconhecimento e de gratidão.

Clique nas imagens para ampliar. Este texto está também publicado na edição do semanário regional "O Arrais" de 23 de Fevereiro de 2012. Sugestão de J. A. Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Fevereiro 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.