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sábado, 18 de maio de 2013

Retratos

Ninguém me dá relação de um retrato de D. Maria ll, que existiu ou deve ter existido na Câmara Municipal do Peso da Régua. Eu vi-o, lembro-me de o ver, creio que na Câmara, sendo eu pequenino. Recordo-me do saliente busto da rainha, tão saliente, pintado numa tela, que justificaria o cognome de Boa Mãe – aplicado à filha de D. Pedro IV.

Não sei se foi ou não excelente pintura. Não sei a que pintor se atribuiu. Sei que um bacharel idoso, vindo de Lisboa, quis provar, não sei com que razões, que se deveria atribuir a um pincel obscuro. Dava como autor da obra, um parente de apelido Inácio, conhecido por Inácio da Ribeira.

Ponha-se de parte o capricho reivindicativo do bacharel ansião para perguntar: onde pára o retrato de D. Maria II? Se alguém mo souber dizer, tenha a bondade de mo comunicar num postalzinho, embora o postalzinho, nestes belos tempos, lhe possa custar coiro e cabelo.

Passemos a D. Maria II ao seu segundo filho, que veio a ser, por morte do irmão Pedro, rei de Portugal.

Passemos a D. Luís, homem delicado, que patrocinou a fundação do nosso hospital em 1873. Foi seu patrono, é modo de dizer, até há poucos dias. Hoje, o nosso hospital não tem padrinho. Não tem nome. Confunde-se com qualquer outro. Por amor à centralização ou a descentralização? Responda quem souber.

De D. Luís I conheço dois retratos muito bons. Vi-os muitas vezes no chamado Hospital Velho, na casa onde funciona, hoje em dia, o Centro de Saúde. Retratos muito bons…

O de corpo inteiro é um retrato de rei, com botas de montar e outros atributos de soberania.

Pintou-o, para a nossa Régua, o pintor João Correia, que deixou nome no Porto. É esplêndido!

Mas, para meu gosto, melhor retrato é o de meio corpo é mais humano, menos destinado a fascinar. Saiu das mãos de Resende, mestre portuense amigo de Camilo.

Não sei onde se ostentam agora os dois retratos de D. Luís I. Oxalá estejam a bom recado, que mãos inteligentes e precavidas os protejam. Não é muito rica, não é nada rica em obras de arte a nossa Régua. Deve acarinhar as poucas que possui.

Do sempre saudoso reguense José Afonso de Oliveira Soares, homem tão hábil a escrever com a desenhar e pintar, talento disperso em múltiplos talentos, ficaram por aí alguns quadros, no género retrato, dignos de conservação. O retrato do Heitorzinho e do Chico Doido e mais alguns ficaram para sempre na retina de quem pôde ver e admirar. Quem os possuir não deve atirar com eles para um canto.

Se um dia a Régua se dispuser a instalar na Casa Vaz, abandonada pelo instituto do Vinho do Porto, o museu municipal, que muito lhe vai tardando, precisará de quadros que o embelezem e enriqueçam. Nele ficariam a matar os retratos que mencionei e outros, que tenho visto em casas particulares. Se o Museu for bem organizado e bem defendido, não lhe faltarão beneméritos. Muita gente haverá que deseje distinguir-se, oferecendo ao Museu retratos que se podem perder em sucessivas partilhas. Estou a ver e cobiçar, para o Museu, retratos de senhora e homem pintados por grandes mestres.

- João de Araújo Correia. Publicado no jornal O Arrais, de 4 de Maio de 1979, sob o pseudónimo de Joaquim Pires.

- João de Araújo Correia no blogue "Escritos do Douro".

Clique  nas imagens para ampliar. Sugestão de texto do Dr. José Alfredo Almeida (JASA) para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Maio de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

As Velhas são o Diabo

Ninguém case com mulher velha. As velhas, ainda que pareçam santas, são o demónio. Que o diga o Frederico. Tinha feito casa e perdeu-a por via da mulher, mais velha do que ele trinta anos.

Este disparate de idades pareceu acertado ao Frederico no dia em que se casou. Ele era um rapaz doente e pobre. Tinha-se estreado como cavador, mas não provara bem na enxada. Derreou-o a primeira cava para toda a vida. Era um pelém. Desistiu da vinha e fez-se comerciante. Melhor dizendo, fez-se feirão, porque a palavra, comerciante é fina de mais para se aplicar ao modo de vida do Frederico. Feirão, sim, porque o negócio do Frederico era vender na feira porcos de criação. Achou que fez bem, casando com uma velha, porque essa velha tinha alguma coisa de seu. Podia aumentar-lhe o negócio com o dote e dar-lhe respeito à casa com os cabelos brancos. Embora doente, o Frederico era activo e até ambicioso. Madrugava como um pássaro e só adormecia pela noite dentro, depois de ter feito de cabeça as contas do negócio.

Esta labuta, em vez de o enfraquecer, fazia-o homem. O ar livre, respirado de costas direitas e independente, por feiras e caminhos, abria-lhe o apetite. Não tinha cor, mas, de ano para ano,. ia-se tornando menos seco e mais robusto. Quando casou, já não era o rapazinho débil que a primeira cava derreara. As moças, quando o viram na igreja receber-se com uma velha, exclamaram: mal empregado!

Não há dúvida que o casório do Frederico foi interesseiro. A velha tinha de seu uma casa ampla, situada fora do povo, mas o quintal... era o melhor pedaço de chão da freguesia. De todas as vezes que o Frederico por ali passava a caminho das feiras, namorava a casa e namorava a cerca. Parecia-lhe que as lojas subjacentes ao prédio e aquele gordo torrão ali ao pé seriam boa cama e refeitório farto para o seu gado. Antes de casar com a proprietária, enamorou-se da propriedade.

Que, valha a verdade, a dona de tão bela regalia – casa e quintal – tinha também seu préstimo. Vivia sozinha e sozinha se desembaraçava de toda a sua lida, que não era pequena. Cavava a horta por suas mãos, fazia de comer, lavava os manachos, ia à lenha, ponteava as meias, remendava as saias e cuidava do vivo como ninguém.

O vivo é o porco ou porcos que habitam uma corte. É a biologia sagrada de uma vivenda. O vivo! Significa o ser vivo por excelência. Ora, em sete freguesias pegadas, ninguém cuidava melhor dos entes que grunhem e não vêem o céu do que aquela mulher. O Frederico mercava-lhe as criações a olhos fechados.

Da admiração da obra à admiração da autora mediou um passo. Mulher que tão asseados bichos criava em sua loja merecia que um homem olhasse para ela. Viva! A senhora Aninhas – chamava-se Aninhas – era mulher perfeita.

Destes cumprimentos, destas exclamações sinceras, até ao casamento foi outro passo. A casa, o quintal e a corte passaram por encanto à categoria de empório comercial do Frederico. A loja, povoada de buliçosos bácoros muito limpos, sempre a coinchar com saudades da mama ou fome de lavagem, parecia uma creche de criancinhas ruças. No meio deles, com uma vide na mão, a senhora Aninhas figurava como ama sem touca, mas, com uma habilidade, um dedo para aquilo, que espantava o negociante. Com dois ou três monossílabos e umas cócegas feitas com a vide no serro dos inocentes – assim os comandava.

Era manifesta a prosperidade do Frederico em bens comprados ao redor da casa – hoje uma leira, amanhã uma vinha, depois uma mata. Davam-lhe os vizinhos, em suas avaliações mentais um pouco invejosas, para cima de cem contos. Como o vissem assim, tão aumentado de teres, começaram a chamar-lhe Tio Frederico e até senhor Frederico. Tanto tens tanto vales.

É raro que o homem sofra mais do que uma paixão. A paixão do Frederico era o negócio. Amava a mulher como auxiliar da sua prosperidade. Punha-a, no que é consideração, acima do cavalo que o levava à feira. Extasiar-se, só se extasiava diante dos bácoros, que representavam dinheiro. Chamava-os – bicá, bicá – com ternura utilitária.

A mulher não era assim. Vivia para o marido. Solteira até aos cinquenta anos, delirou quando se viu casada... e casada com um rapaz novo! Cheia de lágrimas de júbilo na face arregoada pelos anos, arrumava a casa e fazia o jantar do marido. Por amor dele, tornou-se avarenta – sem deixar de ser limpa. Queria-lhe como filho e como esposo. Sabendo-o de compleição delicada, alimentava-o a preceito com ovinhos crus furados com uma navalhinha. Obrigava-o a bebê-los assim, que era, na opinião dela, como faziam melhor. À noite, como o sentisse exausto das jornadas, não se punha a maçá-lo com candonguices. Deixava-o adormecer a contemplá-lo como as mães contemplam os filhos adormecidos no colo.

O Frederico nunca se comovia com a ternura da esposa. Estimava-a como consorte, mas não lhe retribuía o dízimo do carinho. O fito da sua vida era o negócio. A esposa, a casa, o quintal, a corte, os bácoros, eram instrumentos do seu ganha-pão. Estava satisfeito, não arrependido de se ter casado. A senhora Aninhas, ainda que velha, era o seu braço direito na luta que travara contra a doença e contra a pobreza. Era sua sócia. Prezava-a como tal.

No dia em que a senhora Aninhas percebeu que não passava de sócia do marido, quis morrer. Lembrou-se do pai e da mãe – teve saudades da vida de solteira. Ter-se-ia arrependido de casar se a não cegasse o orgulho de ter casado com um rapaz novo. Toda desvanecida, evocava a cena do casamento, o nó dado na igreja.

Entretido com o negócio, o Frederico não pensava na mulher. Quando ia pelos caminhos fora, no passo travado do cavalicoque, à cata de porcos finos para criação, pensava em porcos. Nem nas feiras, no auge do barulho, a imagem da mulher lhe acudia. Era um feirão. Movia-o a ânsia de feirar.

Hoje uma vinha, amanhã um campo, depois uma tojeira ou um matareco, a pouco e pouco o Frederico ia juntando as peças de um casal formoso. Parecia-lhe, de cada vez que comprava uma propriedade, que aumentava a força física. O desaire sofrido na primeira cava ia vingando. Toda a energia do Frederico se aguçava no faro do dinheiro. Sabendo-o casado com uma velha, algumas raparigas novas, vestidas de seda vegetal, diziam-lhe de soslaio a sua graça quando o viam nas feiras. Sem lhes dizer vade-retro, sorriam-lhe de vontade, mas o sorriso dele era indulgente, não conivente com o intuito das moças.

A senhora Aninhas não acreditava na inocência do Frederico. Não compreendia que rapaz tão novo jejuasse tanto. Ela não acreditava. Sentia-se preterida por outra ou outras mais novas do que ela. Chamava nomes feios a estas rivais imaginárias.

Cheirava a roupa do homem, virava-lhe os bolsos do avesso e inspeccionava-os com minúcia para surpreender qualquer pequena prova de culpa marital. Um dia encontrou um pêlo preto aderente ao colete de pelúcio do marido. Pegou no pêlo, aproximou-o dos olhos do marido e exclamou:

– Está aqui, ladrão! Hei-de pô-lo num relicário até a dona aparecer. Quem ma dera pilhar! Este cabelo é de cigana. Gostas de ciganas, ham?

– Ó mulher, isso não é um cabelo. É uma clina do nosso Mulato, explicou, com vontade de rir, o Frederico.
«Olha, mulher, continuou. O Mulato está na manjadoira. Chega-te a ele e verás que lhe adita a clina.»

A senhora Aninhas, meio sorridente, meio confusa, chegou-se a uma janela e soprou o pêlo. Assim ela varresse para sempre os zelos. Que não varria. Debalde defumava a casa. Debalde mandava às bruxas a camisa do homem para análise. As bruxas davam amiga e que eram precisas rezas e esconjuros: terra de cemitério, sal derramado, sapo cozido, etc. Pobre Aninhas! Cumpria à risca a receita das bruxas.

Debalde! Debalde! O seu coração não se aquietava.

Moeu dinheiro a senhora Aninhas para conseguir o apego carnal do Frederico.

Embora... Foi contraproducente esse dispêndio. Ele, que a princípio lhe tolerava os ciúmes, a pouco e pouco os aborreceu. Tanto os aborreceu, que os repeliu certa noite com meia dúzia de socos vibrados no rosto velho da senhora Aninhas. Daí por diante, deixou de dormir com ela. Passou a dormir numa tarimba, na loja do Mulato, por cima da manjadoira.

A casa do Frederico ressentia-se desta desavença. Casa que fora limpa antes de a senhora Aninhas se casar e durante anos depois do casamento, deixou de ser casa para ser montureira. Na corte, os bácoros, deitados em más camas, emagreciam antes de ser vendidos, à míngua de refeições pontuais. Cortava o coração ouvi-los grunhir de fome.

O Frederico, homem que fora casto e trabalhador, amoleceu no negócio e deixou-se seduzir pelas moças que rondavam as feiras com o corpo metido em seda vegetal. Emagreceu como os bácoros. Perdeu o apetite.

A senhora Aninhas chorava do coração a magreza do marido. De noite, não dormia. Espreitava-o da janela do quarto para ver se ele saía da cavalariça ou se metia dentro alguma marafona. Os desvarios do Frederico eram perpetrados em Lamego, na Régua e em Vila Real, durante as feiras. Não tinha pacto com vizinha.

Em vão a senhora Aninhas espreitava o Frederico. Nunca o apanhou com a boca na botija, como ela dizia. Uma manhã porém, da janela do quarto, viu-o cavalgar e partir para uma feira. Responsou-o a Santo António como de costume.

Alongou os olhos no rasto do marido. Pôs-se a chorar. Depois olhou indiferente para umas mulheres que passavam debaixo da janela. Provavelmente, iam também à feira. Deixá-las ir... Lá marchava, a rabo delas, sozinho como sempre, o sapateiro da terra. Amigo de passear, ia à vila por cinco réis de nada. Às vezes ia comprar um novelo de fio. Outras vezes, ia comprar meio quilo de sola. Não tinha quem lho comprasse? Farto fosse ele de passear neste mundo e no outro. Atrás do sapateiro, caminhava uma mulher de idade, com o perico do cabelo erecto debaixo de uma mantilha rota. Era a Bártola alcoviteira. Ao lado da Bártola, a olhar para o chão, ia muito melada a Candidinha beata, rapariga linda e bem feita, mas triste como a noite. Que ia ela fazer ao lado de semelhante coira? Não a enojava a sombra de uma coruja? Qual enojava? Olhou a furto para a cavalariça do Mulato, coseu-se com a companheira e lá seguiram ambas por ali abaixo. Ter com quem? No peito da senhora Aninhas, deu-lhe salto o coração. Tate! A sonsa da Candidinha falava com o seu homem.

Ficou a cismar, sem comer nem beber, presa à janela todo o santo dia. Ali ficou até o escurecer. Viu chegar o marido, passar diante da porta do sapateiro, com um rolo de sola debaixo do braço, e, na cauda do cortejo que regressava à aldeia, a sonsa da Candidinha, pisando a sombra da desavergonhada Bártola. Como de manhã, a Candidinha relanceou os olhos à loja do Mulato.

Presa à janela sem comer nem beber, com o peito arfante contra os vidros, a Senhora Aninhas, ali especada, assim passou a noite.

Rompia a manhã quando saiu da janela. Tocou o sino às avé-marias, rezou pelas bentas almas. Deitou água num alguidar e lavou a cara. Depois saiu do quarto, entrou a uma pequena sala e abriu uma gaveta. Fechou-a outra vez e fugiu para a rua pelas traseiras da casa. Fez isto tão subtil, que nem o marido nem os porcos deram fé.

Caminhou para a aldeia. Entrou numa rua estreita, deu meia dúzia de passos e logo se esbarrou com a Candidinha, que ia para a missa. Nem bons dias, nem boas tardes. Levantou a mão direita, que levava escondida debaixo do avental.

À luz matutina, com um brilho azul, cintilou uma navalha na mão da senhora Aninhas. Foi um relâmpago. A Candidinha caiu redonda, dizendo Jesus e deitando um rio de sangue pelo lado esquerdo do peito. Sangrada, ficou branca como uma açucena.

Quando prenderam a senhora Aninhas, quando a levaram à presença do administrador, quando o carcereiro rodou sobre ela a chave da enxovia, ninguém lhe ouviu um lamento, ninguém lhe viu uma lágrima. Encarava as pessoas com expressão alegre. Voava-lhe ao vento a cabeleira branca como um pendão de vitória.

A senhora Aninhas foi condenada a pena maior. Ao ouvir ler a sentença, deu uma grande risada. Recolheu à cadeia, entre duas praças da Guarda, com a cabeleira branca esvoaçante como um pendão de vitória.

Com a justiça, o homem arruinou a casa, já desfalcada antes do crime por amor dos zelos da senhora Aninhas. No dia seguinte ao julgamento, o Frederico foi à cadeia visitara mulher. Mal que o viu, a velha atraiu-o às grades com palavras meigas. Ele aproximou-se confiado e comovido, mas a senhora Aninhas, em vez de lhe fazer festas, escarrou-lhe na cara e ainda por cima lhe chamou porco.

Chamou-lhe porco e riu-se como uma doida.
Quando o Frederico, de volta ao lar deserto, a pé, que vendera o cavalo, se queixou aos amigos de tanta desgraça junta, consolaram-no os amigos, dizendo:

– Olha, Frederico. As velhas são o Diabo!

- João de Araújo Correia, in Terra Ingrata, 1946

Clique  na imagem para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Maio de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos. 

terça-feira, 30 de abril de 2013

As atribulações de um benfeitor

É célebre o verso segundo o qual “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. A história de Raimundo, no entanto, pode deitar por terra esta harmónica sequência, pois a obra com que sonhou não chegou a ver a luz do dia. Talvez tivesse faltado a colaboração divina... Como, se os seus propósitos eram elevados? Então, em que muro embateram os desígnios de Raimundo?

Antes de esclarecer o mistério, apresentemos o dono deste nome. Ele é a personagem principal de “As desilusões do brasileiro Raimundo”, conto que João de Araújo Correia incluiu na sua Terra ingrata, publicada em 1946. Quando o conhecemos, o nosso protagonista tem cinquenta anos e está de volta ao seu torrão natal, onde nada mudou desde que o deixou. É, pois, mais uma figura de brasileiro que vem juntar-se a uma extensa galeria para a qual contribuíram autores como Camilo, Eça, Fialho, Trindade Coelho, Torga, entre muitos outros.

Raimundo, tal como os seus congéneres literários, regressa rico do Brasil. Distingue-se, no entanto, da maioria deles por trazer “ideias progressistas”, como avisa o narrador logo na abertura. São estas ideias que lhe abrem os olhos para a falta de limpeza e asseio dos seus conterrâneos e que o vão pôr em acção para alterar esta realidade.

Para além de dar esmolas em troca de caras lavadas e de obrigar os lagareiros a lavarem-se antes de pisarem as uvas, decide multiplicar o número de fontes na sua aldeia, de forma a aproximar a água dos seus utentes e, assim, estimular o desejo de limpeza entre os aldeãos. Como a água escasseia na sua terra, dirige-se à Câmara, propondo financiar a sua canalização desde o monte onde abunda até aos fontenários locais, onde ela seria gratuita para todos. Em troca, pretende apenas que o depósito fique instalado num terreno seu que “não tem água para regar uma couve”. O presidente acusa-o de falsa benemerência e pergunta-lhe:

“Que política é a sua?”.

A desconfiança do autarca contrasta com o humanitarismo e civismo de Raimundo:

“- Eu, sior, não tenho política. Minha política é fazer bem. (…) Quiria fazer bem à terra onde nasci”.

Não acreditando nas boas intenções do brasileiro, o presidente, preocupado com o almoço, despede-o, dizendo-lhe para expor o seu plano por escrito à Câmara. Na resposta, esta coloca as seguintes condições para viabilizar o projecto do diligente Raimundo: “feito o abastecimento, a Câmara seria dona e senhora do serviço para o administrar como quisesse. Reservava o direito de negar água de graça a quem a pudesse comprar”. Vendo a edilidade a tentar aproveitar-se do seu empreendimento e a ter que pagar a água que, a expensas suas, chegaria à aldeia, Raimundo desiste da ideia, apesar de a Câmara lhe acenar com uma “sessão solene pelo rasgo de civismo” se aceitasse a proposta apresentada. Honrarias por honrarias, como se vê, não lhe interessam.

Dir-se-ia que o descaso da Câmara pelo bem dos seus munícipes se vê aprovado por aqueles que beneficiariam da obra de Raimundo, como se a Câmara zelasse pelos desinteresses deles. Por isso, em relação a Raimundo, “Todo o poviléu patrício o escarnecia, vendo-o derrotado”. Deve dizer-se que, neste aspecto, o nosso protagonista é vítima de uma reacção comum, na literatura, ao brasileiro. Como refere Guilhermino César no seu estudo O Brasileiro na ficção portuguesa: o direito e o avesso de uma personagem-tipo (1969), “Para os conterrâneos da aldeia, ele era uma avis rara que causava espanto, inveja ou chacota”. Devemos questionar, no entanto, se Raimundo será mesmo conterrâneo dos restantes habitantes da terra onde nasceu. De facto, o seu sotaque, que salpica o conto, as suas ideias inovadoras que rompem com o estabelecido, mesmo a sua benignidade, fazem dele um estrangeiro, alguém com quem a aldeia não se identifica, o que se reflecte em afirmações como “Só quem é brasileiro é que não sabe isto”.

Homem simples e desinteressado, devotado ao bem comum, só depois do imerecido “pontapé aplicado no ponto mais central da sua benemerência” se entrega a um projecto pessoal, o do seu casamento. Antes de falar com a sua eleita, a “elegante, afidalgada filha de um lavrador”, a “única rapariga que se lavava a preceito na aldeia”, “Mandou fazer uma casa de boa cantaria, mobilou-a à moderna e inundou-a de água para banhos em todos os andares”. Também este episódio não vai ter um desfecho favorável a Raimundo, pois Teresa, a flor nascida no meio do lixo por quem o brasileiro se enamorou, recusa o seu pedido de casamento. O desaire amoroso de Raimundo forneceu ao povo mais um motivo de troça, inspirando-lhe “estrofes de rasteiro quilate”. Vê-se, pelo adjectivo “rasteiro”, que o narrador condena o comportamento popular. Ao longo do conto, é ele o único aliado deste “coração singelo, “[d]este bom homem”, que “pensou atiladamente” em várias ocasiões, embora sem sucesso.

Baldado o enlace, o infeliz brasileiro não chega a estrear a habitação que destinara a seu lar. Persistindo no seu sonho de fazer bem ao próximo, decide oferecê-la “ao governo para uma escola”, já que “As aulas, na sua aldeia, funcionavam em míseros cardenhos”. Com base em critérios duvidosos, que certamente nada tinham a ver com a melhoria das condições de trabalho de professores e alunos, um “perito de lunetas” conclui apenas que a casa “estava mal situada e só com grandes obras se poderia adaptar a escola”. Como consequência, “A casa nova ficou entregue aos pássaros. As criancinhas continuaram a frequentar cardenhos em vez de escolas”. Neste mundo às avessas, são os animais que se apropriam de instalações devidas aos humanos, enquanto estes ocupam alojamentos destinados aos animais. Tal como para a Câmara, para esta nova força de bloqueio, o bem comum não é o valor supremo e por isso a aldeia perde mais uma oportunidade de abandonar velhos e prejudiciais hábitos. Resta saber até que ponto não interessava às forças no poder manter inalteradas as condições infra-humanas da vida na aldeia.

Vendo que a sua generosidade não encontrou, novamente, destinatários dignos, Raimundo, “desistiu de fazer bem à terra”. Um relógio para a torre da igreja foi tudo quanto a sua aldeia lhe aceitou. Mesmo este acto, menor quando comparado com tudo o que tentou pôr à disposição dos seus conterrâneos, foi treslido pelo povo, para quem ele foi movido por puro egoísmo, pois “deu-o [ao relógio] para uso próprio. Via as horas da janela do quarto de dormir”. Filho dedicado, como não podia deixar de ser alguém com as características que até agora lhe conhecemos, permaneceu neste meio hostil até à morte da mãe. Depois, mudou-se para o Porto, onde veio a acabar os seus dias.

A história de Raimundo lembra o famoso “Santos da porta …”. Mas há mais. Ao apresentar-nos um brasileiro preocupado com o seu semelhante e dotado de sentimentos altruístas, João de Araújo Correia, como diz Eça de Queirós a propósito de O brasileiro Soares (1886), do naturalista Luís de Magalhães, humanizou uma personagem que o romantismo tinha transformado numa caricatura, cuja imagem de marca eram os joanetes, o materialismo e a palermice. Em contraste com o nosso benemérito desperdiçado, em “As desilusões do brasileiro Raimundo”, são antes as instâncias do poder e a comunidade aldeã que não saem bem no retrato, fazendo pensar que a beneficência só se concretiza em território propício. Afinal, a obra só nasce se todos os homens sonharem.
- Ana Ribeiro.

Clique  na imagem para ampliar. Imagem e texto enviados por Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editadas para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Abril de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Beleza de Inverno

(Clique na imagem para ampliar)

A neve é sorrateira. Deslumbra todas as pétalas, mas inquieta a maior parte das almas. Cai entre silêncios absolutos, que só o de morte ou o de caos lhe dará rosto. Faz parte da Terra um sepulcro ou um regresso à primitiva luz. Cala e obriga a calar-se o mundo que sepulta. Mas se o homem alguma vez sonhou modificar o seu ninho com um grande sonho, foi a neve que lho realizou. A terra, ninho do homem, deixou de ser terra depois de uma nevada. E, para além do súbito abalo, um país ideal. É o reino da brancura.”

- De João de Araújo Correia, da crónica “Beleza de inverno”, do livro Ecos do País (1969) - Colaboração de J A Almeida para "Escritos do Douro 2011".