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quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Crónica - o Douro de anteontem

O nosso rio era caudaloso no Inverno e sereno do findar da Primavera ao findar do Outono. Sempre alegre e corredio, o Douro era um potro à solta entre as margens. Vieram depois as barragens meter-lhe o freio e o bridão. Fizeram dele um amestrado e pachorrento cavalo de circo.

Muito lucramos com esta sucessão de enormes espelhos de água, permitindo um desporto e um turismo impensáveis no lombo de um potro irrequieto. Mas também muito perdemos...

O estrujão, o sável e a lampreia, de tanto marrarem contra o cimento das barragens, acabaram por desistir de procurar para a desova os rios ainda abertos às suas imperiosas condições de procriação.

Entre nós conhecido por solho, o estrujão foi-se extinguindo. Dele ficou apenas um dito, de que muita gente já não saberá a origem. Dormir como um solho quer dizer dormir profunda e serenamente. A imagem vem do tempo em que esses grandes peixes do nosso rio se deixavam levar pela corrente, muito quietos, como se dormissem à flor da água.

As lampreias também deixaram de se vender pelas ruas da Régua, oferecidas em regadores, ainda vivas, num desespero de pouca água e pouco espaço. Meu pai, médico de muitas caridades, recebia em abundância os mimos de cada época do ano. As lampreias eram, por vezes, tantas que era preciso largá-las no tanque do quintal, para lhes dar vazão. Agarrá-las era depois um alvoroço de gritinhos e fugas precipitadas.

O sável era ainda mais abundante que a lampreia. Por toda a Régua passavam homens e mulheres a apregoá-lo com dois ou três enfiados num vime. O saboroso peixe chegava a todas as casas, à boca do rico e do pobre, frito ou de escabeche.
O Dr. Júlio Vilela falava, a lamber o beiço, de um sável na telha arranjado pelos homens do rio. E descrevia:

- O sável, bem temperado com azeite, alho, pimenta e loureiro, entala-se entre duas telhas. Depois, é só ir virando sobre uma fogueirinha de lenha. Além de ficar delicioso, a espinha desembainha-se como uma espada.

O Dr. Júlio e os seus petiscos...

Um ano, o sável foi tão abundante que chegou a exaltar o homem mais sereno da Régua - José Afonso de Oliveira Soares.
Pintor e poeta de grande mérito, veio a merecer um busto no jardinzinho bem perto da casa onde morou.

Diz, assim, o pedestal:

Talento e bondade
Flor de simpatia
Que nos merecia
Esta saudade.

Também mereceu da Câmara Municipal uma segunda edição da sua História da Vila e Concelho do Peso da Régua.

Pois, um dia, o nosso sereníssimo Afonso Soares, cheio de sável até ao simpático bigode, largou de casa a esbracejar, ao ver que a esposa se preparava para lhe servir ao almoço, mais uma vez, umas postas de sável frito.

Foi do Cruzeiro para os lados da estação a remoer vinganças num grande nuvem de tabaco. Entrou na Pensão Borges e foi sentar-se à mesa mais recolhida. Logo se aproximou, todo mesureiro, o Adelino Gomes.

- Que temos para o almoço, Adelino?

- Para o senhor Soares arranjam-se umas postinhas de sável...

Ao virar do segundo para o terceiro milénio o Douro de anteontem acordou estremunhado do sono telúrico. Tomou o freio nos dentes, soltou-se da corrente e largou à desfilada pelas margens, galgando-as até onde lhe chegou o fôlego. Por quatro vezes, casas e vinhedos lhe sofreram a fúria. A Princesa do Douro ficou irreconhecível por uns dias. Mas, ao sol de Março pôde mirar-se ao espelho do seu rio, outra vez vaidosa e conformada.

- Camilo de Araújo Correia, Villa Regula de Março de 2001
Clique  nas imagens para ampliar. Texto e imagens da atualização cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos. 

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Memórias de Coisas Antigas

Abeilard Henriques Vilela

Convidado que fui a escrever sobre os nossos bombeiros, quero desde já alertar que não sou sequer um bom escrevinhador das letras portuguesas e muito menos ainda sou um razoável comentador.

A minha idade avançada - a roçar os 90 anos de idade - não me tem impedido, contudo, de escrever coisas com alguma ousadia, sobre lembranças que perduram na minha memória, as quais sempre pretendi expor com a verdade que defendo e tal como as sinto, aliás, tendo emigrado da Régua quando ainda era um rapazote, apenas guardo lembranças dos velhos tempos, embora consiga guardar, ainda, todo o meu interesse pela terra em que nasci e de que me honro e por toda a região do Douro, a que fiquei ligado por acontecimentos que me e motivaram e por outros menos significativos, mas que me ajudaram a abrir os olhos para à vida.

Lembro-me, por exemplo, das enormes cheias do nosso rio, que, naqueles meus tempos de menino, chegava a levar as suas caudalosas águas até muito escassos metros da rua dos Camilos, trazendo aos nossos bombeiros trabalhos da máxima urbanidade, que os glorificariam para sempre. Eram cheias espectaculares, que amedrontavam mais as gentes ribeirinhas, porque lhes levava os animais que as sustentavam, porque lhes derrubava árvores que faziam parte da sua vida, e levavam com a corrente toda a espécie das suas pequenas riquezas, abatendo-lhes as míseras casas que lhes serviam de habitação. E roubava, por vezes, vidas de gente estimável, como aconteceu ao Dário e ao seu irmão, dois jovens que viram o bote em que se deslocavam ser engolido pelo redemoinho que as águas faziam, ao encontrarem a ponte de pedra, que liga, hoje, os concelhos da Régua e Lamego. Iam os dois irmãos à caça dos patos, que os havia em tal oportunidade... Eram, de facto, impressionantes tais cheias, quando, então, o nosso rio metia medo e respeito.

Estou a lembrar-me também, de uma estranha pergunta que fiz ao meu tio (António Monteiro) sobre os quilómetros de fios que nos passavam sobre as cabeças, estranhando eu na minha insensatez a sua resposta, informando-me que levavam energia eléctrica para a região do Porto. Perguntei-me a mim próprio porque o Porto nos levava a energia, quando nós, na Régua, ainda só tínhamos a luz de carboneto e em muito pouca quantidade... Já, ontem, levavam a nossa electricidade em condições tão precárias, como, hoje, nos levam o vinho do Porto, deixando toda a nossa região coberta com os mantos dos pobres! Injustiças e abandalhamentos, abusos e desprezo para as nossas gentes, que tão dura e dificilmente vivem a vida!...
Mas, referindo-me, agora, aos bombeiros da Régua, guardo uma especial recordação, qual é a de, numa certa manhã - teria eu uns 12 anos, talvez em 1934 - ter visto o meu avô materno (Gaspar Monteiro), face a um princípio de incêndio que se declarara num telhado da casa que habitávamos, subir arrojadamente ao mesmo telhado, através de uma janela e, apesar dos mais de 80 anos que já teria, ter apagado, sozinho, as chamas com um extintor, que ele, antecipadamente, fôra buscar ao aquartelamento dos nossos bombeiros, então situado num exíguo pátio que estava ligado à rua dos Camilos, por um pequeno e estreitíssimo quelho. Admirado com a sua destreza, foi nessa altura que tive conhecimento que ele, o meu avô, fôra pouco tempo antes o comandante da humanitária corporação, o que bem me explicava o seu desusado comportamento, apesar do pedido de todos os seus familiares presentes, que temiam uma queda, um acidente complicado. Aproveito para comparar a estranha colocação do quartel naquele quelho, porquanto qualquer movimentação das viaturas se tornava tremendamente difícil e demorada. Que comentários se fariam hoje?

Mas não pretendo falar da acção do meu irmão, do Dr. Júlio Vilela, como presidente dos nossos bombeiros, porque me parece que muito pouco poderia acrescentar para mais lhe acrescentar na boa memória de que continua a gozar, apesar dos muitos anos passados sobre o seu inesperado falecimento. Sei que deu toda a sua fôrça e inteligência, que pôs ao serviço dos seus conterrâneos e, naturalmente, da corporação a que teve a honra de presidir. Advinho quanto o meu irmão apreciaria o reconhecimento das pessoas pelos serviços que, também voluntariamente, lhes prestou.
Para finalizar, pretendo, ainda, aproveitar esta oportunidade para lembrar a figura benquista de Carlos Cardoso dos Santos, de quem fui amigo do coração. Conhecemo-nos como alunos do Colégio de Lamego, para onde eu fui transferido inesperadamente, por morte de meu pai. A partir daqui, fomos, na juventude, companheiros de todos os dias e, quando na Régua, gostávamos de percorrer quilómetros e quilómetros de estrada, conversando horas seguidas, ou fazendo desvios pela margem esquerda do nosso rio, tomando banhocas à revelia das nossas famílias, que temiam as muitas ratoeiras que, traiçoeiramente, uma vez por outra, vitimavam outros rapazes. As conversas que todos mantínhamos, uns com outros, forjavam sólidas amizades, que se manteriam pela vida em fora. Eram uma prática que foi caindo em desuso, tornando mais frágeis os laços sociais, para o que terá contribuído em muito o aparecimento da televisão, dos bares e outras actividades afins, talvez menos canseirosas e exigentes. O Carlos Cardoso foi dos poucos jovens do meu tempo que se fixaram na Régua, onde, então, veio a exercer destacadas missões de carácter humanitário, como foram as prestadas na Misericórdia e, principalmente, nos bombeiros, de que, por anos e anos, foi seu inestimável comandante.


Lembro-o com saudade, como lembro outros bons companheiros da minha juventude, guardando uma especial referência para o Rogério, abatido dos vivos pela assassina tuberculose, que, então, todos receávamos, porque ainda não tinha chegado o tempo dos anti-bióticos, descobertos posteriormente, e que constituíram uma verdadeira revolução para a medicina. A morte do Rogério, com 32 anos de idade, foi um golpe para todos nós, que o víamos como um extraordinário jogador de futebol, além de que era também uma excelente pessoa e um estimável companheiro. Eu e o Carlos Cardoso, um pouco mais novos do que ele, olhávamo-lo como nosso especial conselheiro, que o era de facto. Enfim, tempos que não voltam mais, mas que, uma vez por outra, relembro com muita saudade, e que fôram os da minha primeira formação, aquela que me manteve sempre ligado à minha região, ao Douro, ao nosso rio, aos nossos costumes tradicionais, aos montes e vinhas, que, tudo considerado, me transformaram no homem que sou, nas suas qualidades e defeitos.

Eram outros tempos, mas, como foi bom vivê-los!

Nota - O nosso muito obrigada, mais uma vez, ao senhor Abeilard Henriques Viela pela sua generosa partilha no Arquivo dos Bombeiros da Régua de tão preciosas e fiéis memórias que, numa saudável nostalgia, evocam com muita ternura e admiração grandes e inesquecíveis figuras da história da Associação. A saber e a gravar o seu nome em letras de ouro: Gaspar Henriques Monteiro, um bombeiro da velha guarda; Dr. Júlio Vilela, um dos melhores Presidentes de Direcção de sempre e o saudoso Comandante Carlos Cardoso.

- Colaboração de texto e imagens do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro". Clique nas imagens acima para ampliar.
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Memórias de Coisas Antigas
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 23 de Junho de 2011
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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

LOURENCINHO

Nas velhas de caixas de madeira, onde se guardam os documentos da AHBV do Peso da Régua encontramos, por mero acaso, uma carta com a alusão de particular, datada de 18 de Agosto de 1959, endereçada ao Lourencinho, como era conhecido pelos amigos, o Comandante Lourenço Pinto de Almeida Medeiros que, desde 1949, estava a comandar os Bombeiros da Régua.

Se a carta fosse correspondência particular, como sugere o seu cabeçalho, ou revelasse segredos privados e de foro íntimo da privacidade dos destinatários, não teria interesse em dar conta da sua existência nem sequer em divulgar o seu assunto.

Nada disso está em causa nesta invulgar carta que o tempo não esqueceu. O que se escreve nela é um tema ainda actual. A direcção, como órgão social da administração da Associação, tem a obrigação de escolher o comandante entre as pessoas mais qualificadas, assim como o pode substituir e exonerar, dentro de critérios aceitáveis e justos.

Ora, o assunto abordado, com a máxima cordialidade, diz respeito as relações entre a direcção e o quadro de comando dos bombeiros. Como matéria da gestão da Associação não deixa de ter um interesse público e, sobretudo, um valor histórico. Documento de rigor e maior precisão dos factos, esta carta pode ajudar a entender as vicissitudes de uma determinada época, a mentalidade e capacidade dos dirigentes e dos seus bombeiros, as soluções encontradas para resolverem um dos problema mais complicados, como é o processo de nomeação de pessoas no cargo de comandante. O assunto desta carta estava relacionado com uma difícil e atribulada sucessão de um comandante, que apesar dos seus 80 anos de idade, não queria abdicar das suas funções.

Quem escreveu esta missiva, num registo penoso e sofrido, pensada nas palavras e nas ideias, não assinou a cópia que zelosamente um funcionário administrativo arquivou. Lendo-a com atenção, a correcção e urbanidade do seu estilo, a cordialidade, pensada para não melindrar vontades, denuncia ser o Dr. Júlio Vilela, distinto advogado, o seu autor, que era o presidente da direcção. As suas palavras são o retrato de um dirigente inteligente que, com diplomacia procurava uma saída que não magoasse o comandante Lourencinho, que não queria não ver que o seu tempo tinha acabado. Ela testemunha um caso, onde prevaleceu o bom senso, pelo que vale a pena fazer a sua completa transcrição:

“PARTICULAR - 18 Agosto 59

Meu Caro Lourencinho:

Há já mais de três anos que o Inspector de Incêndios da Zona Norte insiste com a Direcção da Associação no sentido de o meu Ex.mo Amigo passar ao quadro honorário.
Como sabe, nunca diligenciei junto de si dar execução a esse desejo, pois sempre procurei poupar-lhe qualquer incómodo.
Como o Inspector tivesse dado conta de que não me propunha tomar uma iniciativa dessa natureza, acabou por nos negar, no ano presente, a concessão de qualquer subsídio, invocando para tanto a circunstância de nos termos recusado a realizar a sua substituição.
É claro que, ante uma medida tão altamente prejudicial para os interesses da Associação, procurei avistar-me pessoalmente com ele e, após demorada entrevista propôs-se ele convidar o meu Ex.mo Amigo a ingressar no quadro honorário, no que, segundo, afirmou, cumpria as directrizes dimanadas do Conselho Nacional do Serviço de Incêndios.
E assim, no dia 8 do mês corrente recebi um ofício do Inspector que acompanhava a cópia de um outro dirigido ao Lourencinho e tendente à sua passagem voluntária ao quadro honorário.
Durante alguns dias aguardei o recebimento da petição respeitante a essa passagem, mas, até ao presente, nenhuma comunicação me foi sequer dirigida.
A pressa com que aguardava esse recebimento filia-se na esperança de que o Inspector, efectuado o seu ingresso no quadro honorário, desse satisfação ao subsidio por nós solicitado.
Como o tempo passou e me cabe a responsabilidade de velar pelos interesses da Associação, decidi convocar reunião extraordinária da Direcção, afim de o caso ser, apreciado e ter uma solução adequada.
No decorrer desta reunião, alvitrei que ela se suspensa, pois pretendia dirigir-me ao meu amigo e contudo o que aqui deixo relatado, no propósito de me auxiliar a resolver um assunto tão delicado.
Duas atitudes poderia tomar a Direcção substitui-lo ou demitir-se.
Mais facilmente ela optaria pela segunda, não certo é que a nenhum de nós anima o propósito de praticar qualquer acto que por si possa ser como traduzindo menor estima e respeito.
Quais as consequências, porém, a que conduziriam a nossa decisão sabendo que teríamos de expor as razões que a ditavam?
Por outro lado, onde iríamos desencantar as pessoas, cientes de antemão que lhes seria negado qualquer subsídio enquanto o Comando permanecesse o mesmo, estariam prontas a gerir os destinos da Associação?
O Lourencinho - o que dos dois é bem sabido – vota à Associação um carinho e uma dedicação que os seus 63 anos de serviço ilustram escancaradamente.
Não deseja, certamente, que ele venha a ser prejudicado pela forma que os factos claramente patenteiam.
Por isso mesmo, e com os olhos sempre postos na defesa dos seus interesses e no seu engrandecimento, peço-lhe embora recalcando a amargura que o deve tomar, que satisfaça o convite que pelo Inspector lhe foi dirigido, isto é, me enviar seu pedido de passagem ao quadro honorário, poupando-me assim a um desgosto sem par na minha vida.
Agradeço-lhe que me faça tal envio até ao próximo sábado, dia 22.
Entretanto, aceite os protestos de muita estima e consideração do….”

Não sabemos se esta carta chegou às mãos do Lourencinho. O mais seguro foi que a tenha recebido amarguradamente, e mais por estima e consideração, aceitava o conselho amigo para apresentar o seu pedido de passagem ao quadro honorário. Informava o jornal “Noticias do Douro”, de 30 de Agosto 1959, que a Direcção o tinha louvado e “que assim lhe quis prestar as suas sinceras homenagens, manifestando o seu desgosto por tal afastamento, só devidos a motivos de saúde”. A comandar os bombeiros ficava interinamente o Chefe Claudino Clemente, depois do 2º Comandante António Guedes ter recusado o convite de substituir o seu amigo Lourencinho.

A verdade, como agora se sabe, não era a que saía em forma de noticia para o público. O que era verdade, é que terminava ciclo e outro ia começar no comando dos bombeiros da Régua. O velho comandante não tinha preparado um sucessor para o seu lugar. A direcção procurava nomear um comandante que fosse “Comandante”, e não uma figura histórica. Em 3 de Outubro de 1959, com o visto do Inspector de Incêndios, o jovem Comandante Carlos Cardoso, com 35 anos de idade, tomava posse como comandante e, a partir daí, tudo ou quase tudo mudava, com novos métodos na formação e mais equipamentos de combate a fogos e de transporte de doentes.

O Lourencinho não teve tempo para ver as mudanças do seu sucessor. Morria triste e magoado, em 12 de Dezembro de 1959. Mas morria com a sua paixão pelos bombeiros. Se o tivessem deixado, o fim da sua vida seria numa camarata do quartel, ao lado dos bombeiros, que foram a sua grande família, a quem devotamente se dedicou ao longo de 63 anos.

O Lourencinho tinha alma de bombeiro, alistado em 1896, ainda no tempo da monarquia, tinha sido voluntário com alguns dos fundadores da corporação. A sua dedicação e carinho aos bombeiros fizeram acreditar que podia a ser um comandante para a vida inteira.

O velho comandante foi vítima de um sistema perverso. Se a intenção do Inspector de Incêndios de quer um novo comandante na corporação da Régua não se podia censurar, já o mesmo não se pode dizer do seu método para atingir esse fim, esse sem dúvida muito reprovável. A Associação merecia ser tratada como mais respeito. Dificilmente se entendia – mesmo ainda hoje – que Inspector de Incêndios tenha decidido, inexplicavelmente, não atribuir os devidos subsídios enquanto o comandante se recusasse a ser substituído. Como também, não devia ter ignorado os 63 anos de voluntariado do Lourencinho, a sua folha notável de serviços, onde sobressaía uma das mais altas condecoração do Estado, Cavaleiro da Ordem da Benemerência.
Foi isso que disse, por outras palavras, o escritor João de Araújo Correia ao evocá-lo num dos seus escritos do livro “Pátria Pequena”: “O Lourencinho, reguense nato, inteligência circunscrita a ideias intramuros, coração transbordante de paixões locais, Bombeiros e Festas do Socorro, foi excepção na Régua devido à sua ingénita delicadeza”.
- Colaboração de J. A. Almeida* para "Escritos do Douro" em Dezembro de 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.
  • *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua.
Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 17 de Dezembro de 2010
LOURENCINHO
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LOURENCINHO

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Dr. Júlio Vilela: um grande presidente de direcção



O homem que, em 3 de Dezembro de 1955, discursava no restaurante Borrajo, com o velho Comandante Lourenço de Almeida Medeiros, Pôncio Alves Janeiro, um dos proprietários da Garagem Janeiro e o Provedor da Santa Casa da Misericórdia do Peso da Régua, Joaquim Augusto Trindade Rodrigues todos em volta da sua mesa, era o distinto advogado, Dr. Júlio Vilela (1954-1963), um dos melhores presidentes que passou pela Direcção da AHBV do Peso da Régua.

Nesse dia, os bombeiros da Régua festejavam num jantar o 75.º aniversário (Bodas de Diamante) da Associação. O Dr. Júlio Vilela aproveitou a data para na presença dos membros dos órgãos sociais, do comandante Medeiros e seu do corpo activo, onde se destaca o bombeiro Joaquim Sequeira Teles e de alguns beneméritos, fazer um balanço do seu primeiro ano à frente da direcção dos bombeiros.

Na verdade, ele tinha motivos para estar satisfeito com os bons resultados. Abria, na história dos bombeiros da Régua, uma nova página, ao “inaugurar” o novo quartel, que se encontrava inacabado há mais de 25 anos. Realizavam um sonho que muitos não tinham conseguido realizar. Fechava para sempre o velho quartel que, desde 1923, funcionava sem condições numa exígua casa velha no Cimo da Régua. Até então, o edifício-sede estava reduzido a um esqueleto (embora fosse projecto do arquitecto Oliveira Ferreira prometesse uma obra grandiosa) mas, era considerado a forma definitiva de um sonho. A sua determinação conseguiu tornar o sonho numa realidade, ao deixar concluída a actual casa dos bombeiros.

Durante os nove anos que o Dr. Júlio Vilela liderou a direcção, os bombeiros da Régua tiveram uma fase de grande crescimento e de reconhecimento público. Ele, num curto espaço de tempo, conseguiu tornar a Associação cada vez maior e mais eficiente, o que ficou visível pela vasta obra que realizou. E, coube-lhe gerir com cuidado e respeito, a sucessão do velho comandante Lourenço Medeiros, que não foi nada fácil. Escolheu um homem para comandar os bombeiros, Carlos Cardoso (1959), que, com as suas novas ideias, apostou mais na formação dos bombeiros e na modernização dos equipamentos. Infelizmente, o Dr. Júlio Vilela só não fez mais pelos bombeiros porque a morte, de forma abrupta e cruel, lhe acabou aos 52 anos de vida uma brilhante carreira e o seu meritório percurso como um dedicado director associativo.

O Dr. Júlio Vilela foi um cidadão conhecido e respeitado. Quem o conheceu e com ele conviveu admirou-o pelas qualidades morais. Era também um bon vivant, e sobretudo um excepcional advogado, apreciado pelo seu verbo fácil e eloquente. Foi um dos mais famosos do seu tempo, com grande fama na comarca da Régua. Politicamente foi um verdadeiro democrata e um militante activo e envolvido mas causas sociais. Para além, do seu trabalho nos bombeiros colaborou e ajudou a crescer o clube de futebol da sua terra. Admirado pela sociedade do seu tempo, não deixava de conviver com as pessoas mais simples e os pobres, que ouvia atentamente e ajudava. Politicamente foi um verdadeiro democrata. Um desses amigos, era o engraxador “Porrório”, que lhe vendia a cautela da lotaria, entre o contar de anedotas de fazer corar e sorrir e, quando lhe pedia, oferecia-lhe os seus fatos ainda em bom estado e até pares de sapatos.

Faleceu há 47 anos, em 5 de Agosto de 1963. Passando estes longos anos, os bombeiros não esquecem o Dr. Júlio Vilela, a quem já prestaram simples homenagens de gratidão. A primeira aconteceu, ainda em 1963, ao ser descerrada uma sua fotografia, que se encontra exposta na sala-museu. A outra deu-se em 2005, ao baptizar-se o carro de incêndios urbanos com o seu nome, em que foi “padrinho” o irmão Abeilard Vilela.

O enaltecimento de seu carácter humano e fraterno está exposto no seu “In Memoriam”, escrito por alguém que só se identificou pelas iniciais A.D. no suplemento do jornal “Vida por Vida”, de Agosto de 1963, que aqui transcrevemos:

“Inesperadamente, sem que nada pudesse supor o trágico desenlace, finou-se o Dr. Júlio Vilela, prestigioso Presidente da Associação dos Bombeiros Voluntários da Régua, distinto causídico e reguense altamente cotado pelos seus dotes de bonomia e inteligência, pela sua modéstia que não conseguia ocultar um espírito brilhante – e pelo bairrismo doseado de sensatez e boa compreensão.

A Régua perdeu um dos seus filhos mais queridos e um dos seus mais votados servidores. Sem alardes, sem vaidades balofas, dentro daquela simplicidade de bon vivant que era apanágio, o Dr. Júlio Vilela tinha dentro de si, bem à vista, a alma de um grande reguense. Manifestou-a sempre. Mas, se outros elementos não houvesse a justificar esta asserção, bastaria considerarmos a sua actuação na presidência dos bombeiros, a sua perseverança, a sua boa vontade, o seu senso directivo, o seu amor à Corporação. Já antes de ser director, o Dr. Júlio era um bom amigo dos bombeiros da sua terra. Das suas palavras, das suas atitudes, ressumava, cristalina, sem pretensões, sempre de forma irrefutável, a sua dedicação. Depois, foram nove anos de efectivo esforço, numa colaboração íntima com os seus companheiros de direcção, e durante esse tempo a Corporação conseguiu uma posição brilhante nunca atingida, que a classificou entre as primeiras do país, dentro da sua esfera de acção.

Bastava isto para justificar a gratidão e amizade que lhe devotam os reguenses. Mas nem só isto valia; nem o mais que o Dr. Júlio Vilela tenha feito por qualquer forma, a favor da sua terá. A alma do povo, desde povo rude, humilde e chão, tem rasgos de perspicácia e de compreensão que se não encontra em todas as esferas. E o povo da Régua admirava no Dr. Júlio Vilela o homem probo e simples, inteligente e bom amigo, que tinha uma palavra suasória ou dito de espírito para animar quem quer que fosse – ou um gesto de solidariedade para auxiliar um desventurado.”

Os homens passam e as instituições ficam… mas ficam as marcas dos homens. As marcas do Dr. Júlio Vilela são notórias. Aquele elogio, pode parecer um louvor de circunstância, mas a simplicidade e autenticidade daquelas palavras correspondem à sua personalidade. Em boa verdade, só podem pecar por defeito, isto é, não desvendarem a verdadeira grandeza do homem que foi, sobretudo, um advogado de boas causas...! Aquelas que mais fizeram prosperar a sociedade reguense.

Para os bombeiros da Régua, a memória do Dr. Júlio Vilela está viva. Não dizemos isto só por dizer…! O Dr. Júlio Vilela fará sempre parte de uma obra constante e colectiva, erguida para o bem da Régua. E do seu povo…! Mas, só é possível, como ele dizia, fazer mais e melhor com a soma de todos.     
- Peso da Régua, Outubro de 2009, José Alfredo Almeida. Revisto e atualizado em Outubro  de 2010. 

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