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sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

No regresso de Porto Amélia

“A verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente” - Albert Camus.

Contava com humor fino, numa das suas deliciosas crónicas que publicava no jornal “O Arrais”, que é certo que neste mundo é que elas se pagam…que Deus, na sua finita ironia, o tinha acabado por fazer bombeiro, tendo vindo a ser Presidente da Direcção da AHBV do Peso da Régua (1964-1965) por entusiasmo e crédito de um punhado de amigos.

Estamos a evocar, para quem não teve a sorte de o conhecer de perto, o Dr. Camilo de Araújo Correia. Quem foi ou é leitor das suas fantásticas crónicas, sabe que tinha por hábito historiar episódios passados ou observados ao longo da sua vida.

Pela sua passagem nos bombeiros da Régua deixou-nos interessantes e antológicas memórias que permitem perceber a sua paixão pelos soldados da paz remonta ao tempo da infância ou, como ele diz, à idade dos seus primeiros raciocínios. Desde então, passou a admirar-lhe as suas fardas, o seu esforçado trabalho e, de nas suas histórias, contar casos de pitorescos bombeiros, o que permite reconstituir os seus passos até chegar aos destinos da presidência da prestigiada e secular associação.

A sua primeira entrada no quartel dos bombeiros deveu-se ao Dr. Júlio Vilela e a Alfredo Baptista que o convidaram dirigir a redacção de um pequeno jornal, o “Vida por Vida”. Aceite o desafio, o seu nome apareceu no cabeçalho do título e, no dia 1 Agosto de 1956, começava a regular publicação deste órgão oficial da associação.

Cumpriu religiosamente até meados de 1961 a árdua tarefa de pôr, mensalmente, o jornalzinho dos bombeiros na rua, ao encontro dos associados e dos leitores que soube conquistar. Com colaboradores como o escritor João de Araújo Correia, seu pai, conseguiu conquistar a simpatia e o agrado. O jornal ganhou raízes, reconhecimentos e justas condecorações. Alcançou em pouco tempo um sucesso editorial inédito. Mas, uma mobilização para cumprir serviço militar no Hospital Militar 338, de Porto Amélia, em Moçambique, obrigava-o a deixar a direcção do jornal por algum tempo.

Na hora da partida, o “Vida por Vida” fazia a notícia “com mágoa e júbilo”. Dava conhecimento que eram os “altos deveres que cada cidadão tem com a sua pátria.”. Lamentava que “não são só os bombeiros a sentir a sua falta” mas era a própria terá que lhe servia de berço “que ficava a sentir uma vaga que dificilmente preenche”. Concluía o seu autor, à boa maneira transmontana, com um voto de “boa sorte, Dr. Camilo e até breve. Nós não o esquecemos e todos os meses lhe batemos à porta com o Vida por Vida.”

Assim aconteceu, nos dois anos e meio seguintes, o tempo em que esteve destacado, o jornal “Vida por Vida” passou a ser enviado para a sua residência militar, em Porto Amélia, quase como uma garantia que os laços à terra e aos bombeiros nunca se perderiam.

Os laços afectivos não se perderam como até se fortificaram. Ele fazia questão em manter as suas amizades que deixará nos bombeiros. Lembrava os velhos amigos e não deixava de se corresponder por cara com os mais chegados. Estes quando tinham motivos, por mais pessoais que fossem, faziam questão em noticiá-los nas páginas do jornal. Convencidos da sua importância, não deixaram de publicar em forma notícia, os elogios de um louvor atribuído pelo General Comandante da Região Militar, a distinguir-lhe as suas funções como médico e o seu carácter humano.
Alguns tempos antes de acabar a mobilização militar, os amigos tudo fizeram para que aceitasse presidir à direcção da associação dos bombeiros. A prematura morte do Dr. Júlio Vilela (1964) deixara um enorme vazio, como o seu estatuto social e dinamismo, não se encontrava no meio alguém que o pudesse substituir. Fizeram-lhe o pedido e convenceram-no a dar o seu consentimento. O resto que havia a fazer, concluíram à sua maneira e de acordo com os estatutos, convocando a realização das eleições para os órgãos sociais. Como não se apresentaram candidaturas concorrentes, os resultados não tiveram influência. Apenas, tiveram de contar os dias para o seu desejado regresso à Régua.

Em 4 de Julho de 1963, escrevia uma carta ao seu amigo Alfredo Baptista, reguense apaixonado e influente director dos bombeiros, a dar resposta às amostras do muito apreço que lhe faziam manifestar. Estando para breve o seu regresso, os amigos elaboravam planos para o receber num ambiente de honras militares. Esta proposta era compreensível na largueza da amizade, mas era pouco recomendável para agradar a sua maneira de ser. Sem nenhuma hesitação, de imediato, e ainda à distância, recusou-as com palavras elegantes e de fina ironia.

Há muito perdida nos arquivos, entre os bolorentos relatórios de contas e orçamentos de contas apertadas às necessidades de cada ocasião, encontrava-se uma sua carta, manuscrita numa caligrafia inconfundível, que pelo assunto versado é digna de ser desvenda. Essas suas palavras vão fazer sorrir e pactuar com a sua atitude.
Convenceu e desmobilizou os amigos com uma grande simplicidade. Assim mesmo:

“Meu Caro Baptista: Muito me sensibiliza a vossa ideia de me receberem com honras militares…mas não poso aceitá-las. Imediatamente a seguir ao pousar da mobília em Lisboa me transformo no pobre médico da Régua… que sou! As melhores honras que me podem prestar serão as manifestações de alegria pessoal de cada um ao encontrarem-me como um homem da rua…De mim terão todos a continuação de uma grande estima. Vim aqui conhecer todos os ambientes de bairrismo… Sou pela Régua como muito tipos são pelo Salgueiros! As grandes distâncias dão destas doenças…

Um grande abraço do seu velho e certo amigo Camilo.

PS - Mais lhe agradeço que faça uma distribuição de abraços a todos os amigos.”

Dito e feito, os amigos desistiram de lhe fazer as honras militares. A sua opinião não mereceu desrespeito. Ficaram então de organizar uma excursão com os carros dos bombeiros, para o irem esperar a Coimbra. De maneira arrebatada e comovida conseguiram mostrar-lhe uma especial dedicação e amizade, reforçada pelo tempo da sua ausência.

As marcas do reencontro não mais se lhe apagaram das suas memórias. Estas não se fixavam em glórias ou brilhos pessoais. A sua primazia era para os elementos pitorescos, humorísticos e humanos que se sucediam no seu dia a dia. Sem nunca o dizer, ele era naquele momento o presidente de direcção dos bombeiros da Régua. Faltava-lhe apenas tomar posse no cargo, o que aconteceria no dia 12 de Agosto de 1964.

A cerimónia da posse, reconhecendo-a como importante, não a valorizou em demasiada. Assumiu o cargo como um exercício natural de cidadania e com uma preocupação de não ter tempo que a medicina lhe absorvia. Adivinhava-se que na cerimónia da posse, a posse como presidente da direcção dos bombeiros, não fosse um dos momento da sua vida escolhido para ser evocado na cerimónia de uma homenagem promovida, em Julho de 2007, pela Câmara Municipal da Régua.

No majestoso Salão Nobre da Casa do Douro, depois de recordar as muitas voltas e reviravoltas do seu labor de médico e escritor nas horas vagas, foi buscar ao museu das sua memórias, com ternura e indisfarçado humor, o episódio da recepção amistosa dos bombeiros, a meio da sua longa viagem de regresso à Régua.

Do seu belo discurso de agradecimento, mais tarde publicado no jornal “O Arrais”, com o metafórico título “De flor ao peito”, destacamos essa inesquecível passagem:

“Já depois de escrever estas linhas me saltou na memória um episódio que não resisto a contar, nesta hora de fraternidade entre os reguenses.

Faz este Maio 43 anos que regressei de Moçambique, depois de cumprir dois alargados anos de mobilização. Foram de grande reconforto os abraços, beijos e as mil perguntas dos familiares que me foram esperar ao barco que me trouxe.

Não menos reconfortante foi a surpresa que um grupo dos nossos bombeiros me fez, indo me esperar a Coimbra. Foram tão calosos os nossos abraços, que nunca me pareceram tão reluzentes os metais e tão vermelho o carro que os levou. Era, tão efusivos os seus cumprimentos de boas-vindas que cheguei a recear que tocasse a sirene.

Os carros da família e dos bombeiros logo organizaram uma pequena caravana que veio por aí acima, a contar as curvas e as contracurvas de uma estrada do princípio de Portugal.

Entre Moimenta e Lamego, novo e simpático encontro me surpreendeu num dos trechos mais ermos da estrada, esperavam-me um grupo de funcionários do nosso Hospital, onde sobressaíam duas freiras de hábitos a esvoaçar. Por momentos, senti que estava a Régua toda.

Afinal, o ermo em que se deu este encontro, não era assim tão ermo. Quando nos dispúnhamos a partir, demos conta de um homem a gatinhar pelo talude da estrada. Mal Chegou acima, tirou o chapéu, limpou a testa e perguntou espavorido:

-O que foi?!!...O que foi?!!...

Partimos, depois de o sossegarmos com uma breve explicação. O homem lá ficou na beira da estrada, a rodar o chapéu encardido nas mãos que nunca perdem o jeito da enxada.

Apesar de conhecer bem as razões das honrosas presenças neste sempre acolhedor Salão Nobre da Casa do Douro, não resisto a imitar o cavador da estrada de Moimenta:

-O que foi?!!...O que foi?!!...”

Como o seu sentido de humor sempre presente, fez para os presentes, na grande maioria seus velhos amigos, um pequeno esboço do seu auto-retrato. As honras e as homenagens eram o menos importante, não cabiam na dimensão da sua generosidade e no seu feitio humilde, de todo igual à simplicidade do pobre cavador, que o fez sentir-se um homem realizado e feliz até ao fim da vida.

A tempo, a Régua soube agradecer-lhe pelo que fez como médico que tratou e salvou vidas, como escritor de magistrais crónicas, contos e memórias de grandes momentos do Douro, a região demarcada, o rio antes e depois de ser navegável, os seus queridos barcos rabelos em viagens reais e imaginadas com o velho arrais Passarada ao leme, e como um cidadão que serviu voluntariamente a mais nobre das causas humanitárias.

Os bombeiros da Régua, podem dizer com orgulho, que foi um deles, mesmo sem apagar fogos…! Esteja onde estiver, junto Deus, só pode estar acompanhado dos seus velhos amigos bombeiros e dos heróicos e ilustres comandantes, consagrados pelos ideais do altruísmo, caminhando entre o infinito azul e a luz da Eternidade.

No caso de voltarem a precisar da sua ajuda, os bombeiros sabem que responderá imediatamente: -Presente!
- Peso da Régua, Janeiro de 2010, J. A. Almeida.
(Clique nas imagens acima para ampliar)