Mostrar mensagens com a etiqueta Ana Ribeiro. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Ana Ribeiro. Mostrar todas as mensagens

sábado, 3 de agosto de 2013

Rostos do humanitarismo

Toda a fotografia é um certificado de presença - Roland Barthes

Num texto publicado neste jornal no já distante ano de 1979, João de Araújo Correia, a coberto do pseudónimo Joaquim Pires, interroga-se sobre o paradeiro de retratos pintados que conheceu, mas que perdeu de vista. Procura pistas sobre um retrato de D. Maria II, de autor desconhecido, e dois do seu filho D. Luís I, ambos de famosos pintores portuenses. Evoca ainda retratos de figuras locais como o Heitorzinho e o Chico Doido, obras de um artista também local, Afonso Soares.

Esta pesquisa reflecte o seu empenho na valorização da sua “pátria pequena”, pois “Não é muito rica, não é nada rica em obras de arte a nossa Régua. Deve acarinhar as poucas que possui”. Por isso as antevê no desejado museu municipal, que “precisará de quadros que o embelezem e enriqueçam”. No seu entusiasmo, vaticina que a estas pinturas outros “retratos de senhora e homem pintados por grandes mestres” se hão-de vir juntar, antecipando assim a criação de um espaço consagrado a retratos. Curiosamente, nesta sua demanda, o nosso contista privilegia critérios estéticos, tendo em mente a criação de uma galeria de arte.

Esta é sem dúvida uma das diversas formas de abordar o retrato, remetendo para segundo plano o retratado e as motivações da sua representação pictórica, aspectos que, a serem considerados, conduziriam à constituição de uma galeria de notáveis como aquela que a Santa Casa da Misericórdia de Peso da Régua depositou no Museu do Douro, que a expôs há alguns meses, explorando uma outra faceta da colecção gratulatória. A pluralidade de abordagens do retrato é por si só um sinal das potencialidades desta forma de representação, a qual, precisamente pelos vários aspectos que nela se cruzam, é definida por Didi-Huberman como um “nó antropológico”.

Género clássico da pintura – foi, aliás, como retrato que a pintura nasceu -, até pela sua ligação a esta arte, o retrato foi durante vários séculos privilégio das classes mais elevadas. Através do retrato pintado, chega-nos não só a imagem de uma pessoa, mas também o poder que essa pessoa tem de se fazer representar e, assim, lutar contra o esquecimento. Cumulativamente ou não, a personalidade imortalizada pelo pincel pode ser alguém que se destaca pelos seus feitos. O retrato continua a ser uma forma de distinção, posta, neste caso, ao serviço de uma homenagem que estende o exemplo da pessoa representada aos vindouros, como sucede com os já referidos retratos da Santa Casa da Misericórdia.

Inicialmente tão elitista como o retrato pintado, a fotografia irá, no entanto, alterar este panorama. Depois do daguerreótipo, processo de fixação duma imagem numa superfície surgido em 1839, desenvolveram-se diversos materiais e equipamentos que conduziram à melhoria da qualidade da imagem e da sua reprodutibilidade, à diminuição dos custos e ao uso da máquina fotográfica em contexto privado. Como consequência, a fotografia tornou o retrato acessível a um público mais vasto, que assim passou também a dispor da possibilidade de se representar e afirmar socialmente. Mas há mais, pois o retrato também é uma espécie de espelho no qual cada um pode contemplar-se e (re)conhecer-se. Daí que o culto romântico do “eu” seja igualmente importante para compreender a apetência oitocentista pelo retrato, que vai encontrar na fotografia uma excelente alternativa à pintura, sem que tal implique, contudo, o abandono do retrato pintado. Mesmo a literatura, cuja matéria-prima é a palavra, não deixa de expressar esta tendência retratista.

Lembremos, a propósito, o famoso soneto em que Bocage se diz “Magro, de olhos azuis, carão moreno”, publicado no início do século XIX.

O retrato serve ainda outros propósitos. Através dele também projectamos uma determinada imagem nossa para os outros, os quais têm no fotógrafo o seu representante primeiro. Para além disto, os retratos são uma espécie de passaporte para a imortalidade, uma vez que perpetuam uma imagem do retratado para além do seu desaparecimento. Retrato e memória são, por isso, amigos íntimos. Tudo isto nos ajuda a compreender porque é que, como diz Fernando de Sousa na apresentação disponível na “net” do Espólio Fotográfico Português, “mais de 90% das fotografias realizadas nas primeiras décadas do século XX, em Portugal, eram retratos”.

É precisamente porque o retrato é esta plataforma entre o presente, o passado e o futuro que hoje podemos recordar um antigo bombeiro e presidente da Associação, falecido há já uns anos. O bombeiro Zé Maria, ou Zé Matano como lhe chamavam os amigos, chegou até nós através de dois retratos ainda do tempo do preto e branco, mas nem por isso menos expressivos. Neles se combinam algumas das variáveis deste tipo de fotografias: um deles, feito em estúdio, é obra de um profissional e centra-se na cabeça e parte superior do tronco, ao passo que o outro, de corpo inteiro, foi tirado ao ar livre, talvez por um fotógrafo não encartado.

Uma vez que, como afirma Margarida Medeiros no seu estudo Fotografia e narcisismo, “o retrato fotográfico partilha com toda a espécie de fotografia esta vertigem da observação, do olhar, a dominância da sensorialidade visual”, um pequeno “zoom” sobre cada um deles dar-nos-á pistas que nos revelarão como um retrato é muito mais do que uma imagem.

Comecemos pela fotografia que representa o busto de Zé Maria sobre um invariável fundo cinzento. Pelo contraste com o escuro da farda, é o rosto, elemento identitário fundamental, que se destaca no retrato.

Com a cabeça posicionada a ¾ , o olhar tímido de Zé Maria não enfrenta a câmara, antes parece perdido em busca de algo distante. Absorto em algum pensamento, o nosso retratado não ostenta o semblante risonho de quem “olha o passarinho”. Enquanto o rosto torna bem patente a sua juventude, o seu trajar não deixa dúvida quanto aos ideais que perfilha. Uma vez que a fotografia revela a importância de uma coisa para alguém e, ao mesmo tempo, lhe confere relevância também, ao envergar o uniforme de bombeiro, Zé Maria manifesta a sua identificação com o elevado ideal humanitário dos soldados da paz, mostrando um precoce e exemplar sentido de serviço ao próximo. Os diversos anos que dedicou ao bem comum demonstram que não se tratou de generosidade apenas inspirada pelo idealismo típico da idade. O altruísmo, tão afivelado a si como o capacete à volta da sua face, fazia parte da sua natureza.

Embora seja a imagem que prende o nosso olhar, não podemos esquecer que uma fotografia também é um acontecimento, pelo que as circunstâncias de que resulta permitem vê-la a uma outra luz. De facto, a opção por um fotógrafo profissional, a deslocação propositada ao seu estúdio e a submissão às suas directivas, a cuidadosa selecção da indumentária, indiciam que não se trata de um retrato qualquer. Todo o cerimonial subjacente a este tipo de fotografias resulta do desejo de eternizar a melhor imagem do retratado, entendida no sentido daquela que melhor o representa. Essa imagem, captada num instante preciso, surge cristalizada no que podemos considerar o seu retrato oficial, destinado a constar num “altar de família” ou a servir de penhor de afectos. Era, pois, na pele de bombeiro que Zé Maria se sentia no seu elemento, dando fé não só da sua filantropia, mas também fornecendo um sinal para a posteridade sobre a forma como pretendia ser recordado. Se através do retrato, como antes foi dito, se procura vencer a morte, era como um jovem e convicto bombeiro que ele gostaria de permanecer vivo.

Numa altura em que a fotografia não era tão comum como hoje, Zé Maria fez-se representar como bombeiro ainda uma outra vez, reafirmando a sua ligação à causa humanitária. Em relação a este retrato, é difícil reconstituirmos o contexto que lhe deu origem: não sabemos se foi iniciativa do fotógrafo ou do fotografado, que tipo de fotógrafo é o seu autor e se resultou dum encontro casual entre ambos ou foi previamente combinado. Limitamo-nos por isso ao que nos dizem os nossos olhos. O desmaiado cenário de estúdio deu lugar a um ambiente de exterior cujo pano de fundo se divide quase igualitariamente entre o branco de uma parede iluminada pelo sol e o negro de uma porta. Entre elas, Zé Maria em corpo inteiro. É como se o nosso bombeiro saísse de um quadro para entrar na vida real. Apesar de serem só duas, as molas da roupa que flanqueiam a porta e uma janela que se anuncia lá estão como sinais do quotidiano. São elas os únicos adereços nesta tela despojada. Ainda por cima, o traje de cerimónia do retrato oficial foi substituído pela roupa de trabalho, indiciando o que na vida de bombeiro existe para além de desfiles ou ocasiões solenes. Se é verdade, como sustentam diversos estudiosos, que as fotografias são repositórios das coisas agradáveis da vida, não há dúvida que Zé Maria encarava com prazer a labuta em prol do seu semelhante.

Quanto à sua figura, ela surge bem no meio do retrato, suscitando a nossa atenção. Na cabeça ligeiramente inclinada sobre o lado direito, o rosto, embora esteja de frente, fica em grande parte encoberto pela sombra.

Mesmo assim, é possível vislumbrar uma expressão séria. A face perde o protagonismo e não temos a certeza de estar perante um jovem. Agora é o corpo no seu todo que representa o retratado, alguém que continua a definir-se como bombeiro quase da cabeça aos pés. Na verdade, no corpo descontraído, com as pernas afastadas e um pouco flectidas, sobressaem as mãos firmemente agarradas ao que aparenta ser um cinto, equipamento que, tal como o capacete, remete para as funções de bombeiro, ao mesmo tempo que o identifica. Só faltam as botas para termos perante nós alguém pronto a entrar em acção e auxiliar o seu próximo.

Diz a epígrafe que as fotografias não mentem. Pedaços de papel que guardam fragmentos de uma vida “para mais tarde recordar”, os retratos revelam-nos muito sobre quem através deles sobrevive. Neste caso concreto, qualquer uma das fotografias, mais do que de presença, fala-nos da entrega de Zé Maria a um ideal de solidariedade e fraternidade, graças ao qual a sua história individual se cruza com a história dos bombeiros de Peso da Régua. Aliás, os quase cento e trinta e três anos desta corporação não se entenderiam sem pessoas como Zé Maria. A passagem do tempo pode apagar o nome deles, mas terão sempre numa fotografia um monumento ao seu contributo e ao seu exemplo.
Ana Ribeiro

Clique na imagem para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2013. Texo e imagem cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

terça-feira, 30 de abril de 2013

As atribulações de um benfeitor

É célebre o verso segundo o qual “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. A história de Raimundo, no entanto, pode deitar por terra esta harmónica sequência, pois a obra com que sonhou não chegou a ver a luz do dia. Talvez tivesse faltado a colaboração divina... Como, se os seus propósitos eram elevados? Então, em que muro embateram os desígnios de Raimundo?

Antes de esclarecer o mistério, apresentemos o dono deste nome. Ele é a personagem principal de “As desilusões do brasileiro Raimundo”, conto que João de Araújo Correia incluiu na sua Terra ingrata, publicada em 1946. Quando o conhecemos, o nosso protagonista tem cinquenta anos e está de volta ao seu torrão natal, onde nada mudou desde que o deixou. É, pois, mais uma figura de brasileiro que vem juntar-se a uma extensa galeria para a qual contribuíram autores como Camilo, Eça, Fialho, Trindade Coelho, Torga, entre muitos outros.

Raimundo, tal como os seus congéneres literários, regressa rico do Brasil. Distingue-se, no entanto, da maioria deles por trazer “ideias progressistas”, como avisa o narrador logo na abertura. São estas ideias que lhe abrem os olhos para a falta de limpeza e asseio dos seus conterrâneos e que o vão pôr em acção para alterar esta realidade.

Para além de dar esmolas em troca de caras lavadas e de obrigar os lagareiros a lavarem-se antes de pisarem as uvas, decide multiplicar o número de fontes na sua aldeia, de forma a aproximar a água dos seus utentes e, assim, estimular o desejo de limpeza entre os aldeãos. Como a água escasseia na sua terra, dirige-se à Câmara, propondo financiar a sua canalização desde o monte onde abunda até aos fontenários locais, onde ela seria gratuita para todos. Em troca, pretende apenas que o depósito fique instalado num terreno seu que “não tem água para regar uma couve”. O presidente acusa-o de falsa benemerência e pergunta-lhe:

“Que política é a sua?”.

A desconfiança do autarca contrasta com o humanitarismo e civismo de Raimundo:

“- Eu, sior, não tenho política. Minha política é fazer bem. (…) Quiria fazer bem à terra onde nasci”.

Não acreditando nas boas intenções do brasileiro, o presidente, preocupado com o almoço, despede-o, dizendo-lhe para expor o seu plano por escrito à Câmara. Na resposta, esta coloca as seguintes condições para viabilizar o projecto do diligente Raimundo: “feito o abastecimento, a Câmara seria dona e senhora do serviço para o administrar como quisesse. Reservava o direito de negar água de graça a quem a pudesse comprar”. Vendo a edilidade a tentar aproveitar-se do seu empreendimento e a ter que pagar a água que, a expensas suas, chegaria à aldeia, Raimundo desiste da ideia, apesar de a Câmara lhe acenar com uma “sessão solene pelo rasgo de civismo” se aceitasse a proposta apresentada. Honrarias por honrarias, como se vê, não lhe interessam.

Dir-se-ia que o descaso da Câmara pelo bem dos seus munícipes se vê aprovado por aqueles que beneficiariam da obra de Raimundo, como se a Câmara zelasse pelos desinteresses deles. Por isso, em relação a Raimundo, “Todo o poviléu patrício o escarnecia, vendo-o derrotado”. Deve dizer-se que, neste aspecto, o nosso protagonista é vítima de uma reacção comum, na literatura, ao brasileiro. Como refere Guilhermino César no seu estudo O Brasileiro na ficção portuguesa: o direito e o avesso de uma personagem-tipo (1969), “Para os conterrâneos da aldeia, ele era uma avis rara que causava espanto, inveja ou chacota”. Devemos questionar, no entanto, se Raimundo será mesmo conterrâneo dos restantes habitantes da terra onde nasceu. De facto, o seu sotaque, que salpica o conto, as suas ideias inovadoras que rompem com o estabelecido, mesmo a sua benignidade, fazem dele um estrangeiro, alguém com quem a aldeia não se identifica, o que se reflecte em afirmações como “Só quem é brasileiro é que não sabe isto”.

Homem simples e desinteressado, devotado ao bem comum, só depois do imerecido “pontapé aplicado no ponto mais central da sua benemerência” se entrega a um projecto pessoal, o do seu casamento. Antes de falar com a sua eleita, a “elegante, afidalgada filha de um lavrador”, a “única rapariga que se lavava a preceito na aldeia”, “Mandou fazer uma casa de boa cantaria, mobilou-a à moderna e inundou-a de água para banhos em todos os andares”. Também este episódio não vai ter um desfecho favorável a Raimundo, pois Teresa, a flor nascida no meio do lixo por quem o brasileiro se enamorou, recusa o seu pedido de casamento. O desaire amoroso de Raimundo forneceu ao povo mais um motivo de troça, inspirando-lhe “estrofes de rasteiro quilate”. Vê-se, pelo adjectivo “rasteiro”, que o narrador condena o comportamento popular. Ao longo do conto, é ele o único aliado deste “coração singelo, “[d]este bom homem”, que “pensou atiladamente” em várias ocasiões, embora sem sucesso.

Baldado o enlace, o infeliz brasileiro não chega a estrear a habitação que destinara a seu lar. Persistindo no seu sonho de fazer bem ao próximo, decide oferecê-la “ao governo para uma escola”, já que “As aulas, na sua aldeia, funcionavam em míseros cardenhos”. Com base em critérios duvidosos, que certamente nada tinham a ver com a melhoria das condições de trabalho de professores e alunos, um “perito de lunetas” conclui apenas que a casa “estava mal situada e só com grandes obras se poderia adaptar a escola”. Como consequência, “A casa nova ficou entregue aos pássaros. As criancinhas continuaram a frequentar cardenhos em vez de escolas”. Neste mundo às avessas, são os animais que se apropriam de instalações devidas aos humanos, enquanto estes ocupam alojamentos destinados aos animais. Tal como para a Câmara, para esta nova força de bloqueio, o bem comum não é o valor supremo e por isso a aldeia perde mais uma oportunidade de abandonar velhos e prejudiciais hábitos. Resta saber até que ponto não interessava às forças no poder manter inalteradas as condições infra-humanas da vida na aldeia.

Vendo que a sua generosidade não encontrou, novamente, destinatários dignos, Raimundo, “desistiu de fazer bem à terra”. Um relógio para a torre da igreja foi tudo quanto a sua aldeia lhe aceitou. Mesmo este acto, menor quando comparado com tudo o que tentou pôr à disposição dos seus conterrâneos, foi treslido pelo povo, para quem ele foi movido por puro egoísmo, pois “deu-o [ao relógio] para uso próprio. Via as horas da janela do quarto de dormir”. Filho dedicado, como não podia deixar de ser alguém com as características que até agora lhe conhecemos, permaneceu neste meio hostil até à morte da mãe. Depois, mudou-se para o Porto, onde veio a acabar os seus dias.

A história de Raimundo lembra o famoso “Santos da porta …”. Mas há mais. Ao apresentar-nos um brasileiro preocupado com o seu semelhante e dotado de sentimentos altruístas, João de Araújo Correia, como diz Eça de Queirós a propósito de O brasileiro Soares (1886), do naturalista Luís de Magalhães, humanizou uma personagem que o romantismo tinha transformado numa caricatura, cuja imagem de marca eram os joanetes, o materialismo e a palermice. Em contraste com o nosso benemérito desperdiçado, em “As desilusões do brasileiro Raimundo”, são antes as instâncias do poder e a comunidade aldeã que não saem bem no retrato, fazendo pensar que a beneficência só se concretiza em território propício. Afinal, a obra só nasce se todos os homens sonharem.
- Ana Ribeiro.

Clique  na imagem para ampliar. Imagem e texto enviados por Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editadas para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Abril de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quinta-feira, 28 de março de 2013

A “pátria pequena” e os valores humanitários

Ana Ribeiro*
O bem comum mais precioso é o homem. Como quem diz: somos nós. 
João de Araújo Correia em Pátria Pequena.

Em 1977, Pátria pequena veio juntar-se ao já extenso rol de publicações de João de Araújo Correia. Tal designação traz à lembrança títulos como Pátria (1896), de Guerra Junqueiro, ou A minha pátria (1906), de Ana de Castro Osório. Distancia-se deles, no entanto, ao circunscrever um recorte daquela que, por contraste, poderá ser considerada a pátria grande. Esse retalho corresponde, como o autor esclarece na nota introdutória, à “vila e concelho do Peso da Régua”, aos quais também dedica o livro. Num primeiro plano, este título, à semelhança de Terra ingrata ou Montes pintados, fornece a representação de um espaço, cuja exiguidade é várias vezes referida ao longo da obra.

A “pátria pequena” de João de Araújo Correia é, porém, muito mais do que um território, pois esta figuração metafórica expressa sobretudo a relação profunda que o escritor mantém com este local. Quando declara “Aqui nasci, aqui vivo e aqui morrerei sem espírito provinciano”, faz dele uma espécie de casa onde passou a sua vida, convertendo-o num espaço íntimo da maior importância na sua geografia sentimental.

Enraizado no seu torrão natal para a vida e para a morte, nem por isso deixa o autor de o transcender. “Sem espírito provinciano”, ele é um cidadão do mundo fiel às suas origens, mas de vistas alargadas. Somada à sua estreita ligação ao meio onde decorreu a sua existência, esta característica legitima o projecto que desenvolve nos diversos textos coligidos em Pátria pequena. Na nótula de abertura, o autor apresenta-os como “setas de papel disparadas pelo meu arco, sempre insofrido, contra fealdades e vícios de cunho provinciano” que afectam a Régua e arredores. Como dirá na crónica “De boa mente”, onde realiza o balanço de três anos de publicações mensais no Vida por vida, “não mira outro alvo que não seja quanto a deslustre ou prejudique”.

Na identificação desassombrada das males de que a sua terra padece, o escritor reguense parece transferir para a sua “pátria pequena” aquele comportamento tão típico dos portugueses, que, como diz Barry Hatton, “são mais críticos de si mesmos do que os estrangeiros”. No entanto, é a sua afeição por ela e o seu espírito cívico que assim o determinam: “É admissível e até louvável que o natural da Régua diga mal da sua terra por amor, isto é, com o intuito de a corrigir de algum defeito grave ou esvoaçante pecha que a deslustre” (“Pobre Régua”). À semelhança de José Correia de Magalhães, que cita em “Música de Poiares”, João de Araújo Correia pretende “fazer da Régua uma vila perfeita”. Tal aspiração, partilhada “por quem se distingue do barro comum”, não será alheia à responsabilidade associada ao estatuto de capital do Douro, pois, como o escritor recorda em “Escolas técnicas”, “A Régua é o Douro, região com características de autêntica província. É a capital do país vinícola mais célebre do mundo”.

A denúncia com objectivos terapêuticos traduz-se num retrato da Régua no século XX, uma vez que, embora redigidos na segunda metade deste século, os textos não excluem a convocação do passado recente. Note-se, no entanto, que os antecedentes desta actividade remontam ao Sem método (1938), a obra inaugural do autor. De facto, nas “notas críticas de certeiro jacto” de que fala Vergílio Correia no prefácio da 1ª edição, João de Araújo Correia identifica na sua terra chagas como o descaso pela memória, o esquecimento de vultos ilustres que nela nasceram ou viveram, a ausência de estruturas básicas de saúde e de assistência social, o desperdício de potencialidades turísticas e agrícolas, o bairrismo estéril, a descaracterização de hábitos (num prenúncio de globalização) e a fúria arboricida. Cerca de vinte anos depois, estes temas regressam nos textos recolhidos em Pátria pequena. É caso para dizer que se mudam os tempos mas não se mudam as vontades. Daí que, em “Alvitres”, o autor ironize: “Parece-nos a nós […] que os nossos estímulos, a bem do nosso meio, já não têm conta. /O que conta é o efeito que produziram. Matematicamente, é igual a zero. Poderá haver maior consolação?”. No entanto, a indiferença que acolhe as suas sugestões não faz esmorecer o seu zelo, como bem revela uma alusão à “Parábola do semeador” na crónica “De boa mente”: “Que faz porém quem nada mais deseja que ser semeador? Semeia… Se a semente cair em bom terreno, muito bem… se cair em mau terreno, paciência…” . Espécie de Cristo a pregar no deserto, só o amor inquebrantável à sua terra justifica que, entre 1956 e 1974, apesar de algumas interrupções, persista na sua intervenção cívica nas páginas do Vida por vida, o jornal dos Bombeiros locais.

Por outro lado, diz também muito do meio que o envolve o facto de, durante quase vinte anos, nele continuar o escritor a encontrar motivos que justificam a sua acção pedagógica, reincidindo até em alguns, como a defesa das árvores e a imperiosa necessidade de criar espaços verdes na Régua, a inaceitável decadência das termas do Moledo, a urgência de preservar os miradouros e de os tornar lugares convidativos à contemplação da paisagem, o resgate do esquecimento de reguenses de vulto como Vieira da Costa e Maximiano de Lemos e a falta de educação e de civismo que afecta alguns dos seus conterrâneos.

Não quer isto dizer, no entanto, que a pena de João de Araújo Correia seja atraída apenas pelo lado negro da sua terra. Como afirma em “Pobre Régua”, “Criticar é apreciar, é distinguir, na coisa criticada, os valores negativos e positivos”. Por isso se revolta, na mesma crónica, contra aqueles que, munidos de critérios desajustados, deixam escapar aquilo que torna um local único, conferindo-lhe uma identidade própria: “Quem sai da cidade sem nada na cabeça, mas com a bitola do Porto ou de Lisboa, diz mal da Régua como diz mal de Mirandela. Diz mal das terras pequenas, porque não são grandes. Do gracioso e do pitoresco não cura. Só lhe praz o colossal”. Mais uma vez, a “pátria pequena” inspira ao autor dos Contos bárbaros um patriotismo idêntico ao dos portugueses pelo seu país natal, os quais, no dizer de Barry Hatton, “são facilmente susceptíveis a estrangeiros desaprovadores”.

Pequena, mas não desprezível, a pátria de João de Araújo Correia detém, pois, potencialidades que deve explorar sem, contudo, se descaracterizar. É neste sentido que vão as sugestões do autor, as quais, numa dialéctica entre tradição e inovação, pretendem abrir caminho para um futuro alternativo a um presente pouco auspicioso.

Tal como ele a vê em meados do século passado, a sua pátria carece de atractivos quer para os naturais, quer para quem a visite: não tem um parque, não tem vida cultural, não tem monumentos, não tem locais de onde se possa desfrutar a bela paisagem envolvente, não tem escolas que possam contribuir para o desenvolvimento da região, não tem asseio nem maneiras, não tem uma rede local de transportes públicos, não oferece espaços agradáveis de alojamento e restauração, é barulhenta, tem muitos carros e condutores incumpridores...

Nada há de fatal, no entanto, neste cenário, pois, na óptica do escritor, não faltam recursos ao concelho da Régua para mudar de rumo. A começar pelas condições naturais, propícias ao turismo e à floricultura, por exemplo. Para além da natureza, também o passado é apresentado, sem contradição, como uma fonte de renovação. A ele se hão-de ir recuperar iniciativas como a parada agrícola, a tourada, as bandas de música ou os grupos de teatro, ou seja, aspectos que fazem da terra do nosso contista mais do que um entreposto vinícola. Ela pode também embelezar-se recuperando trechos como a estrada do Rodo, com as suas amoreiras. Desse passado fecundo, do qual se traça um retrato eufórico, deverá manter-se ainda a tradição dos queijinhos e do requeijão fornecidos pelas aldeias vizinhas, e ícones como o barco rabelo e o carro de bois, “relíquias da nossa terra ameaçadas de morte”. A memória e identidade locais também não podem dispensar os “reguenses ilustres”, imortalizados em nomes de ruas ou em monumentos. O antigo jornal diário também deve ser ressuscitado, para “defesa e ilustração” da capital do Douro. Enfim, a criação de escolas técnicas e o exemplo de outras terras são alguns dos estímulos para que a Régua deixe de ser uma “princesa indolente”.
Se criticar, como vimos acima, é também apontar os aspectos positivos, os Bombeiros Voluntários do Peso da Régua cabem certamente nesta categoria. Oriundos desse pretérito glorioso, não tiveram o mesmo destino efémero de muitas criações de outrora. Na sua crónica “Biblioteca de Maximiano Lemos”, João de Araújo Correia assinala precisamente a excepcionalidade da sobrevivência da corporação local de Bombeiros entre fracassos de diversa ordem: “Na Régua é tradição que falhem todas as iniciativas. Falharam as touradas, as exposições fotográficas, o teatro de amadores, o orfeão, a parada agrícola, os desportos fluviais e até o carnaval inventado pelo Chico Pulga. Tudo falhou, menos a Associação dos Bombeiros Voluntários, fundada em 1880 e, de ano para ano, mais florescente”. Ao perdurar vigorosamente, a corporação de bombeiros poderá constituir um exemplo a seguir, demonstrando que o sucesso é possível.

A vitalidade desta instituição está bem patente nos textos que inspira a este seu admirador e entusiasta apoiante. Diga-se a propósito que logo a segunda crónica de Pátria pequena, “Uma relíquia”, de 1956, os traz à liça. O mesmo sucede numa das últimas, “O pelourinho de Canelas”, de 1971, o que sugere uma certa continuidade da presença deste tema ao longo dos anos. Registe-se ainda que, se a primeira crónica assinala os setenta e seis anos da corporação, a segunda evoca o aniversário do seu jornal, o Vida por vida.

Também as crónicas “Novembro” e “Bombeiros da velha guarda”, de 1963 e 1965, respectivamente, celebram natalícios dos Bombeiros. Constituem, por isso, atestados da robustez do corpo de Bombeiros, ao mesmo tempo que expressam o regozijo do autor com tal efeméride.

Este sentimento é indissociável do envolvimento do escritor na missão humanitária daqueles que sempre designa como “os nossos bombeiros”. Se não foi bombeiro como o pai ou presidente da Associação como o filho Camilo, nem por isso deixou de contribuir para o futuro de uma instituição com propósitos tão semelhantes aos da sua profissão. Com a discrição da abelha no seu casulo, foi da escrita que se serviu para fomentar o progresso dos soldados da paz da sua terra. Neste aspecto, a actuação de João de Araújo Correia é talvez única no país, já que nenhum outro dos nossos escritores, ao longo da sua vida, terá dedicado na imprensa tantos textos aos Bombeiros seus conterrâneos. Neles enaltece publicamente a nobre missão dos soldados da paz, iluminando com as suas palavras um recanto da sociedade geralmente deixado na sombra.

Por outro lado, a existência de Pátria pequena é, por si só, bem reveladora da ligação estreita entre o escritor e a corporação dos “nossos bombeiros”. Como explica na nota introdutória a este volume, foi no boletim Vida por vida, “órgão da [então] quase secular Associação dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua”, que surgiram pela primeira vez, raramente identificados com o seu nome, os textos que esta obra reúne e reivindica como seus. Ao alimentar as páginas do órgão da Associação com as suas 121 crónicas, o contista duriense contribuiu certamente para a afirmação e robustecimento de ambos.

O júbilo do autor não decorre apenas de o aniversário dos Bombeiros, à conta de se festejar há muitos anos, se ter tornado em mais uma tradição que, no penúltimo mês do ano, como reflecte em “Novembro”, se veio juntar aos santórios, aos diospiros, aos almanaques e às castanhas assadas. De facto, estas crónicas de comemoração servem ainda para assinalar a invulgar juvenilidade destes Bombeiros com mais de oitenta anos. É que, e ainda segundo esta mesma crónica, eles, “ao contrário de nós, que somos mortais, remoçam com a idade”. Ao salientar este fenómeno, João de Araújo Correia torna patente a cadeia intergeracional através da qual a vida dos Bombeiros se renova, contrariando o esmorecimento do seu projecto humanitário. E assim deve ser, pois, como prossegue, “É objecto que os nossos Bombeiros vivam sem envelhecer”. 

Tanto em “Novembro” como em “Bombeiros da velha guarda”, o autor do Sem método não deixa também de referir a forma como os Bombeiros celebram o seu aniversário. Na primeira destas crónicas chama-lhe “velha tradição”, na qual vemos não só o reflexo de uma existência, ao tempo, quase centenária, mas também um dos suportes da longevidade da instituição. Segundo esta mesma crónica, tal tradição consiste apenas num “jantar fraternal”, associando assim ao jantar os valores que norteiam a actividade dos soldados da paz. Em “Bombeiros da velha guarda”, há um retrato mais completo da forma como os Bombeiros comemoram o seu aniversário: “Depois das cerimónias piedosas e do desfile nas ruas, sentam-se à mesa e comem. Comem bem e gracejam…”. A vida da corporação é, pois, marcada pela jovialidade, pela boa disposição e pela camaradagem. Os valores religiosos também fazem parte do ADN dos Bombeiros, assim como a sua ligação à comunidade, para a qual se exibem em trajes de gala.

Logo pelo seu título, esta crónica apresenta um pendor evocativo que no texto se desenvolve através de recordações várias. Em primeiro lugar, “os sócios e bombeiros antigos” que já participaram neste convívio anual. Numa luta contra o esquecimento e o anonimato, o autor constrói uma espécie de memorial, no qual reúne nomes mais ou menos sonantes, todos eles irmanados numa causa comum: “Lembra-se de Afonso Soares […]; do poeta Camilo Guedes […]; do José Avelino […]; do José Ruço […]; do José Maria Leite, o Riço […]”. Esta mescla de homens de origem social diversa que partilham valores afins torna patente a natureza democrática dos Bombeiros, bem explícita quando João de Araújo Correia afirma: “Clube, ponto de reunião sem preconceito, era o quartel dos Bombeiros”. Sinal desta sã convivência entre escalões sociais diversos são talvez as “gargalhadas que faziam estremecer o quartel”. Aliás, na evocação do autor, é a boa disposição que caracteriza esses bombeiros de outros tempos: “Pelo que nos toca, ou toca aos nossos Bombeiros, recordemos os da velha guarda, tão garbosos como os de agora, mas, muito mais alegres, mais divertidos, mais despreocupados”.

Para além das pessoas, a rememoração do passado da corporação não dispensa a referência às suas antigas instalações “na Chafarica, no largo dos Aviadores, como hoje se diz”, informação que também regista as alterações na onomástica da vila, aspecto que mereceu a atenção do autor em “Nomes de ruas”, incluído no mesmo volume.

Estas recordações fornecem a João de Araújo Correia o ensejo para chamar a atenção para a necessidade de escrever a história dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua: “Tempos simples aqueles! Falta escrever-lhes a história”. Ao longo de Pátria pequena, é recorrente a preocupação do escritor com a preservação do passado. Para além da dos Bombeiros, falta “a história de notabilidades nossas – de raiz ou adoptivas” (“Reguenses ilustres”), “a história dos Artistas da Régua” (“Escolas técnicas”) e mesmo a história do teatro na vila (“Teatro na Régua”), capítulos que viriam completar a História da Vila e Concelho do Peso da Régua (1936-1938), da autoria de Afonso Soares. A causa da insistência na importância do passado encontramo-la em “Primórdios”, onde afirma: “As coisas são como os rios. Têm sua origem, que, embora tímida, nunca é desprezível”. Esta sua cruzada contra o esquecimento dos tempos pretéritos embate na indiferença da sua “pátria pequena”, já que “a Régua não tem amor a velharias, que são o pergaminho das localidades” (“Pobre padre Carminé”). A história dos bombeiros, que dá corpo à sua longa existência, ao permitir tomar consciência de um labor continuado de obreiros vários, torna-se relevante para um melhor conhecimento da instituição e, ao mesmo tempo, da terra onde lançou raízes e se desenvolveu.
Aniversários, tradições e história não teriam razão de ser se não fosse o relevante papel que os Bombeiros desempenham na sociedade, particularmente na “pátria pequena”, a qual, de acordo com o Sem método, “tirante os bombeiros, não tem coisa nenhuma útil ao comum”. É sabido que, após a publicação do livro de estreia de João de Araújo Correia, outras instituições se vieram juntar aos Bombeiros no zelo pelo bem de todos, mas tal libelo mostra bem como os Bombeiros são indispensáveis à colectividade. Mas se é verdade que a comunidade tem nos Bombeiros um dos pilares da sua existência, estes também não sobrevivem sem ela. Isto mesmo se depreende do agudo apelo que João de Araújo Correia dirige aos leitores do Vida por Vida em “Socorro!”. O título não podia ser mais adequado, já que se trata de um pedido de ajuda. No entanto, contrariamente ao habitual, são os Bombeiros que precisam de auxílio para desempenhar da melhor maneira a missão humanitária de transporte de doentes que lhes compete, tarefa para a qual é fundamental a aquisição de uma nova ambulância. Com a sua clarividência habitual, o escritor sublinha que, ao aderir a esta causa comum, é a nós mesmos que estamos a ajudar, pois “Ninguém dirá, vendo passar a auto-maca: de ti, estou eu livre”. Nesta sugestão de que o puro altruísmo não existe parece o nosso escritor ir ao encontro da irónica máxima que Nietzsche apontou no seu Crepúsculo do ídolos: “Ajuda-te a ti mesmo: então todos os outros te ajudarão. Princípio do amor ao próximo”.

À semelhança de “Socorro!”, a crónica “Acudam-lhe”, tal como o título anuncia, também encerra um pedido de auxílio. As atenções voltam-se agora para a Ceia de Cristo existente na igreja matriz, obra de Pedro Alexandrino degradada pelo tempo. Neste caso, os Bombeiros são chamados, como habitualmente, a prestar assistência, mas num domínio bem diferente daquele em que costumam intervir. Entre a Casa do Douro e a Associação dos Bombeiros, o escritor prefere esta última para acolher o painel setecentista depois de recuperado. Com uma certa dose de humor, argumenta que os Bombeiros, “bairristas por excelência, defendê-lo-iam de todos os ultrajes, nomeadamente o fogo”. É o amor deles à “pátria pequena”, comprovativo da ligação profunda que os liga à sua terra, que os torna os melhores guardiães dos tesouros que ela possui e não deve perder. A sua missão humanitária vê-se assim complementada por uma vertente cultural.

A ser aceite a sugestão de João de Araújo Correia, não seria a tela religiosa o primeiro objecto com história a ser albergado pelos Bombeiros. Ela iria juntar-se à “sineta que alarmou os povos em 1808”, “relíquia” exibida, em 1956, pela “cobertura da nossa casa, como quem diz, [n]o telhado do nosso quartel”. Estas mesmas instalações seriam, provavelmente, o destino do “Pelourinho de Canelas”, se o desafio lançado nos quinze anos do Vida por vida desse fruto. Preciosidades provenientes do concelho que, em 1853, foi extinto a favor da Régua, fazem parte da pré-história do novo concelho. Nestas circunstâncias, seriam, pois, os Bombeiros a suprir a inexistência de um Museu da Régua, equipamento cultural que o escritor também antecipa em “Fontainhas”. Neste texto de 1958, João de Araújo Correia acalenta ainda o sonho de “uma bibliotecazinha municipal”. Acudindo mais uma vez a uma carência da vila e do concelho, é precisamente pela sua biblioteca que os Bombeiros se impõem na paisagem cultural reguense da segunda metade do século XX.
Ao longo de Pátria pequena, nenhum outro aspecto da vida da corporação ocupa tanto a atenção do escritor como a biblioteca. Tal traduz certamente o relevo que atribui a esta iniciativa, a qual, segundo o autor, numa crónica não coligida neste volume , visa “provocar o amor à cultura, à instrução, à educação das gerações”. Numa região de “Vocações perdidas” “por falta de cultura e ensino técnico perfeito”, compreende-se o entusiasmo do contista com mais esta actividade humanitária dos Bombeiros.

As crónicas que João de Araújo Correia dedica a este tema dão-nos conta de diversos marcos do historial daquela que designa como “a coqueluche dos Bombeiros”. De acordo com “Primórdios”, a sua origem remonta a 1885, isto é, a cinco anos após a fundação da Associação. Embora se desconheça a paternidade da ideia, a sua existência é bem significativa da apetência pela leitura entre os seus sócios e dos valores que os norteavam. Setenta e cinco anos mais tarde, “o velho armário repleto de livros sem catalogação” dá lugar a uma biblioteca propriamente dita, que os Bombeiros pretendem baptizar com o nome de Maximiano de Lemos, “fazendo coincidir o acto inaugural com o centenário natalício do nosso conterrâneo”. Deste modo, para além de promover a ilustração dos habitantes do concelho, a biblioteca perpetua o nome de um reguense ilustre ameaçado de esquecimento, ajudando a sedimentar a memória colectiva. Saliente-se, a este respeito, que, de acordo com “Alvíssaras”, terão sido os Bombeiros o motor das “comemorações do primeiro centenário natalício do professor Maximiano de Lemos”, pois, seguindo-lhe o exemplo, outras entidades se agregaram a esta homenagem. A actividade cultural dos bombeiros realiza-se, deste modo, de diversas maneiras. Ela vem a ser outra das concretizações do já referido espírito bairrista que, segundo o escritor, anima a corporação.

Três anos após a inauguração da Biblioteca Maximiano de Lemos teve lugar outro acontecimento importante da sua história. Nesta altura, recebeu ela “uma valiosa colecção de livros oferecidos pela benemérita Fundação Calouste Gulbenkian”. A biblioteca inaugurada em 1960, constituída sobretudo por espécimes provenientes do antigo armário-estante e por ofertas particulares, vê-se assim ampliada e actualizada. O aumento do acervo bibliográfico e o alcance social desta obra dos Bombeiros tornam manifesta a necessidade de organização, sugerindo o escritor a criação de um regulamento. Tal como a respeito da aquisição da nova ambulância, considera ainda que a Associação dos Bombeiros deve, também neste domínio, ser auxiliada pela sociedade civil. Apela por isso à colaboração dos “reguenses dados à leitura” e propõe a fundação do “Grupo dos Amigos da Biblioteca Maximiano de Lemos”. Esta é uma das múltiplas associações cuja semente lançou ao longo da sua colaboração no Vida por vida, visando acrescentar vida cultural à “vila comercial” que a Régua então era.

Com este repto lançado aos seus conterrâneos terminou João de Araújo Correia a sua batalha nas páginas do boletim da Associação em prol da biblioteca humanitária. Volta, no entanto, a convocar a intervenção dos Bombeiros no texto “Música de Poiares”: “Bombeiros e outros grémios devem apadrinhar a ressurreição da música de Poiares”. Deste modo, a missão cultural dos soldados da paz alargaria consideravelmente o seu âmbito ao estender-se a um domínio artístico específico e a uma aldeia do concelho da Régua. Ao permitir recuperar uma banda que era “a mais antiga, a mais perseverante e, há tantos anos, única música do nosso concelho”, esta parceria entre os Bombeiros e outras entidades impediria o empobrecimento cultural da “pátria pequena”. Se isto não bastasse, os benefícios da Música justificariam só por si o empenho no ressurgimento da banda poiarense: “Não é preciso inculcar a ninguém o valor da Música. Todos o sentimos. Como educadora do povo rude, é inestimável. Desperta-lhe sentimentos bons adormecidos, desvia-a de recreios perigosos. É imprescindível para suavizar índoles bravias”. De novo João de Araújo Correia implica os Bombeiros numa causa “A bem da humanidade”.

Esta viagem pelo Pátria pequena à boleia dos soldados da paz ficaria incompleta sem uma referência ao Vida por vida, não por ser este o depositário original dos textos que deram origem àquela obra, mas por causa do que ele representa. Na pequena nótula introdutória surge a mais extensa referência a este mensário, relativa ao seu historial. Os seus breves dezoito anos de existência expressam talvez a vitalidade da Associação a que dá voz, num período particular. Avançando para o interior do volume, passagens como “folhinha privativa de uma Associação de Bombeiros”, “pequena tribuna”, “cantinho” ou “recanto da Imprensa Portuguesa” colocam a tónica na modéstia do jornal. No entanto, a sua discrição não é sinónimo de inoperância, pois ele é também “luzinha numa espécie de serração espiritual”, “guia” para “espíritos ávidos de claridade”. O humilde periódico ocupa, portanto, um lugar especial no panorama reguense, ao mesmo tempo que confere novas valências à actuação da Associação em proveito da comunidade em que se insere.

É este espírito de serviço ao seu semelhante que subjaz à porfiada colaboração de João de Araújo Correia nas páginas do Vida por vida. Se aponta os males da sua “pátria pequena”, também indica as terapias para os debelar e assim melhorar a vida dos seus conterrâneos. Não será por isso descabido dizer “Ditosa pátria que tal filho teve!”.

O autor de Cinza do lar não tem olhos apenas para as coisas negativas da sua terra. A corporação de Bombeiros merece-lhe particular carinho e atenção, desde logo pela sua resistência num meio onde tudo parece destinado ao fracasso. Enquanto representante dos valores humanitários que eram tão caros ao nosso escritor, procura alargar o âmbito de acção da corporação a domínios de grande relevância para a comunidade. Sublinha, ao mesmo tempo, que o auxílio dos Bombeiros à colectividade depende do apoio que dela receber, mostrando que ambos estão interligados. Afinal, os Bombeiros, como a Régua, dependem da colaboração de todos. Para além de tudo isto, João de Araújo Correia apresenta-nos os Bombeiros por dentro, relatando alguns dos seus hábitos e um ou outro dado da sua história. Se lhe fosse possível regressar ao seu torrão natal, ficaria certamente contente por saber que “os nossos Bombeiros” estão a caminho do seu 133º aniversário, sem perderem o garbo e a juvenilidade que lhes conheceu. Simpatizaria, sem dúvida, com o “Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua” do Arrais, jornal a que, de diversas maneiras, esteve ligado em vida e onde também publicou crónicas sobre os seus Bombeiros.
Agradar-lhe-ia também a notícia de que alguns episódios da longa e proveitosa vida da corporação se encontram já fixados num livro, constituindo a primeira resposta ao seu apelo ao registo escrito da história dos Bombeiros locais. Nada está perdido. Quem sabe de que outras propostas de Pátria pequena não se encarregará o futuro?

1* - Referimo-nos ao texto “A Biblioteca dos Bombeiros”, encontrado pelo Dr. José Alfredo Almeida no Vida por vida de Dezembro de 1960, do qual gentilmente nos forneceu uma cópia. Embora assinado com as iniciais A.D., pelo estilo e pelo ardoroso apelo que encerra, é, sem dúvida, da autoria de João de Araújo Correia.

*Crónica escrita pela drª. Ana Ribeiro, Profª. da Faculdade de Letras da Universidade do Minho em volta do escritor  reguense João de Araújo Correia.
Clique nas imagens para ampliar. Fotos e texto cedidos por Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Março de 2013.  Também publicado no jornal semanário regional "O ARRAIS" edição de 27 de Março de 2013 (1ª parte). É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.