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quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A terceira vez…

Já cá tinha estado duas vezes, mas não passara de um olhar de relance, que apenas aguçara a minha curiosidade, alimentada pelas múltiplas referências aos Bombeiros da Régua que lera em crónicas de João de Araújo Correia e na monografia de Oliveira Soares.

A primeira vez foi há uns bons quinze anos, atraído pela vontade de conhecer a obra humanitária, movida pelo espírito colectivo de acção cívica, de voluntariado e de solidariedade, para lá da elegância da fachada dos anos trinta, desenhada pelo esquecido arquitecto Oliveira Ferreira, autor de obras notáveis, como os edifícios dos Fenianos e da Brasileira, no Porto, a Câmara de Gaia, o Sanatório de Valadares, o Hotel Astória, em Coimbra, o Monumento à Guerra Peninsular, em Lisboa, e outras. Mas dessa primeira vez, não passei da entrada. Um telefonema urgente desviou-me, contrafeito, para outras prioridades.

A segunda vez, recordo-me bem, foi há quase uma década, nas comemorações do 25 de Abril de 2003, em que tive o prazer de proferir uma conferência intitulada Douro: Património, Democracia e Desenvolvimento, a convite do Dr. José Alfredo Almeida, então vereador da Câmara Municipal de Peso da Régua. Dessa vez, senti vontade de percorrer o edifício e de saber mais sobre os bombeiros da Régua. Mas a circunstância era de festa cívica, com programa oficial a cumprir. A visita teria de ficar para momento mais oportuno.

Passaram quase dez anos. E eu terei passado centenas de vezes por aquele edifício, sempre a correr, com os problemas que me absorviam, nessa altura, todo o tempo de que dispunha. Além disso, a visita que desejava fazer à sede dos Bombeiros da Régua exigia vagar e recolhimento, pouco compatíveis com a vertigem do trabalho no Museu do Douro e as viagens quase diárias ao Porto, para cumprir as minhas obrigações docentes na Universidade do Porto.

Diz o povo que «à terceira é de vez». Foi esse adágio popular que me ocorreu, quando, no Verão passado, consegui, finalmente, fazer a visita desejada às instalações dos Bombeiros Voluntários da Régua, guiado pela amizade do Dr. José Alfredo Almeida, presidente dessa associação benemérita. Tínhamo-nos cruzado, casualmente, à saída do café, com a promessa de voltarmos a encontrar-nos no dia seguinte, com tempo para pormos em dia conversas sempre inacabadas, sobre os problemas do Douro, a Régua, as iniciativas culturais e, claro, a «sua» Associação de Bombeiros, a que tem dedicado uma devoção sem limites. Lá estávamos no dia a seguir. Estendeu-me um livro — É para si. Eram as Memórias dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, que publicara em 2011. Várias vezes me falara desse projecto, que concentrara o seu entusiasmo durante anos a fio, e eu podia antecipar o valor daquelas memórias, repletas de personalidades, acontecimentos, tenacidades e heroísmos. Afinal, o sentido fraterno de humanidade, corporizado numa instituição associativa de voluntariado, em que o lema «vida por vida» congrega a abnegação individual e a força dos laços de comunidade.

Ao folhear as Memórias dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, que entremeiam crónicas, muitas delas publicadas no jornal Arrais, e imagens da longa história da associação com mais de 130 anos, percebe-se que se trata de uma história vivida, essencial para a compreensão não apenas da instituição em que se centra mas também de momentos marcantes na vida da Régua e da região. Lá estão referências às cheias grandes, como a de 1909 ou a de 1962. Ou ao desastre de Caldas de Moledo, de 1904, ao incêndio de Lamego, em Junho de 1911, que destruiu vinte casas da Rua de Almacave, ao incêndio do Asilo Vasques Osório, em 1919, ao incêndio da Câmara da Régua em 1937, à tragédia de Rio Bom, em 1959, e tantos outros acontecimentos em que o lema «vida por vida» mobilizou os bombeiros da Régua. Já conhece a nossa sede? — perguntou-me. Não, ainda não conheço, mas gostava de conhecer — respondi ao Dr. José Alfredo. Se tiver tempo, podemos lá ir agora. E pegou-me pelo braço, já a sair para a Rua dos Camilos: fizemos obras, mas procurámos respeitar o património, temos um pequeno museu e uma biblioteca.

Pelo caminho, apreciámos o modesto edifício que serviu de primeiro quartel dos bombeiros da Régua, no Largo dos Aviadores.

Em pouco tempo, já estávamos a subir a escadaria da torre do edifício da actual sede, ao cimo da Avenida Antão de Carvalho. E passámos lá o resto da manhã, entrando em todas as salas, parando aqui e acolá, porque havia sempre um pormenor — um quadro, um livro, uma condecoração, uma velha mangueira, uma farda antiga, um recorte de jornal… — a evocar histórias, que o Dr. José Alfredo me ia contando. Não podia ter tido melhor cicerone na visita há muito prometida e sempre adiada.

Nessa manhã de Agosto, poucas pessoas se encontravam no edifício. Talvez por isso, à medida que o Dr. José Alfredo ia acompanhando a nossa observação de quadros, objectos e documentos com a evocação de nomes de bombeiros da Régua que fizeram a história secular da instituição, ressuscitassem na minha memória outros rostos e imagens, encarnando os mesmos ideais de heroísmo, abnegação e solidariedade. E rememorava fogos na Mantelinha, há umas boas três décadas, as labaredas altas subindo a encosta, desde a Fraga Ruiva ao cimo do serro, lambendo pinhais e matos, num Agosto quente, a aflição da gente de Covas, imprecações, súplicas a S. Domingos, uma correria desordenada no meio da noite, a aldeia sufocada de fumo. E o povo a subir em magotes pelos caminhos da serra, gritos roucos abafados pelos lenços molhados que confundiam os rostos, a seguir os bombeiros, só eles pareciam serenos naquele combate incerto contra as chamas. Provavelmente, seriam bombeiros do Pinhão ou de Sabrosa, mas isso pouco ou nada importava, se a memória os trazia de regresso àquelas salas da corporação da Régua, onde se acumulavam medalhas de outros heróis e heroísmos…

Afinal, a visita tão adiada ao quartel dos Bombeiros da Régua ultrapassou tudo o que podia imaginar. Bem me dissera o Dr. José Alfredo do seu empenho na preservação do património histórico da associação a que preside. Pude testemunhar o carinho devotado a cada elemento desse património já secular, tanto como a vontade de realizar novos projectos, como a organização da biblioteca, onde se guardam relíquias vindas da Biblioteca de Maximiano Lemos. Por tudo, bem-haja Dr. José Alfredo!

Porto, 28 de Novembro de 2012,
- Gaspar Martins Pereira, professor e historiador do Douro.








Clique  nas imagens para ampliar. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Texto e imagens originais cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no jornal regional semanário 'O ARRAIS', edição de 5 de Dezembro de 2012. Atualização em 6 de Dezembro de 2012. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.