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sexta-feira, 6 de junho de 2014

Recordações de GODIM


Conheço Godim desde que me conheço. Mas, no tempo em que me criei, não se dizia Godim. Dizia-se Jugueiros.

Ramalho Ortigão, referindo-se com a maior veemência à Ribeira do Rodo, chama-lhe Vale de Jugueiros - risonho e pingue.

Acontece que as terras mudem de nome ou prefiram, de dois ou três, o que melhor lhes cante no ouvido. Lembram meninas do velho Romantismo, que inventavam, para seu uso, a graça que mais lhe agradasse. Houve graciosas Pulquérias que se crismaram, ficando Elviras durante meses e Genovevas nos meses seguintes.

Seja de Godim o nome da freguesia, e Jugueiros, ao pé da igreja, um dos lugares da mesma freguesia.

Faz-se em Jugueiros, vá lá o nome antigo, uma grande festa no dia da Ascen­são, festa móvel que sempre coincide com uma quinta-feira. Quinta-feira da Ascensão…

À parte o biscoito da Teixeira, muito queijo se vende nessa festa. Vende-se o queijo fino e o chamado queijo de batata.

Lembro-me de ver, em urna das festas da Ascensão, a uma e outra banda do caminho, da parte da manhã, entre a Quinta de Santa Maria e o recinto da igreja, duas filas de mendigos horrorosos. Vinham até ali da Idade Média, com repulsivos andrajos, aleijões de toda a qualidade e muita cegueira de olhos estoirados.

Eu tinha-lhes medo. Mas, chegando à igreja, logo esse medo se me desvanecia. Era raro, naquele tempo, que a festa da Ascensão se fizesse sem tumulto ou, como se dizia, barulho. Era o recontro de valentões, que ali convergiam, desafiados, com suas facas, rachas e, se bem me lembro, armas de fogo.

No auge da romaria, rebentava o conflito. Nesse momento, romeiros e romeiras da sangue acomodado começavam a gritar e a fugir.

No ano em que ali me levaram as Senhoras Monteiras, minhas saudosas mes­tras de primeiras letras, a fuga foi tão rápida, que chegámos num ai ao começo do Sal­gueiral. Já ali haveria uma farmácia.

Não tenho saudades de romarias tão perigosas. Mas, muitas vezes me lembro do tempo em que visitava, com minha mãe, o alto Senhor da Misericórdia.

Minha mãe tinha grande devoção com este crucifixo. De tempos a tempos, lembrava-se de o visitar, levando-me como pajem - teria eu nove anos.

Era para mim tocante a devoção de minha mãe. Penso que lhe devia o refrigério de padecimentos morais.

Não herdei a fé que amparou minha mãe. No entanto, posso dizer que herdei da sua santidade o sentimento religioso. Nos primeiros tempos da minha profissão, ia a pé, de vez em quando, até o adro da igreja de Godim e ali me sentava, à sombra de um plátano, recordando as visitas de minha mãe ao alto Senhor da Misericórdia. De vez em quando, dizia eu à minha gente, mulher e filhos, que devia ali uma promessa.

Herdei de meu pai a dedicação ao escritor Vieira da Costa, que penava no Salgueiral a infelicidade do isolamento, da pobreza, da surdez absoluta e da cegueira quase completa.

Muitas vezes o visitei, conversando com ele por meio de sinais - palavras que eu rabiscava, com o dedo, no seu lenço de doente.

Não quero aqui repetir o que tenho escrito sobre Vieira da Costa, hábil roman­cista cedo prejudicado por invalidez. Devo dizer no entanto, uma vez mais, que nem a Régua nem Godim deram ainda, à sua memória, uma luzinha de consideração.

Bem a merecia o escritor malogrado. Deveria ostentar o seu nome a Escola Secundária do Peso da Régua ou a Escola Agrícola do Rodo. Leia-se, para coonestar este preito, quanto escrevi sobre Vieira da Costa.

Foi na Ribeira do Rodo que um dia ouvi, ao amanhecer, uma inesquecível música de passarinhos. Estes defuntos hei-de lembrá-los enquanto me não morrer, no ouvido, a sua recordação. No mundo actual, não os posso ouvir, porque morreram. Matou-os a estupidez humana.

Ribeira do Rodo! Antes de desonrada por construções abusivas, fora de lugar próprio, foi uma das maiores belezas do país. Gozei-a, em rapaz, de uma das varandas da rua de Medreiros. Foi sonho que me não pode esquecer.

A chamada recta do Salgueiral, no tempo em que foi avenida, plantada de viço­sos olmos, foi também um dos encantos da terra portuguesa. Ouvi-o dizer a um senhor de Lisboa.

Não quero pôr ponto neste escrito, das minhas recordações de Godim, sem amaldiçoar, uma vez mais, os inimigos das árvores.

- Texto de João de Araújo Correia, publicado num opúsculo dedicado às Festas da Ascenção de Godim. Colaboração de J A Almeida para "Escritos do Douro 2011". 

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Uma Sineta de Palavras - 4

 
 A presença dos bombeiros na vida e obra  de João de Araújo Correia

“A associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”
João de Araújo Correia


Continuação.
A primeira galera nunca chegou a ser devolvida ao museu então criado. Uma das relíquias que se encontram naquele museu é o famoso Sino de Canelas.


Em “Uma relíquia” (in Pátria Pequena-1956), estão patentes os seus conhecimentos sobre episódios da história portuguesa. Com simplicidade e concisão, narra um acontecimento trágico e violento, as invasões francesas, na sua passagem pelo Douro, nomeadamente por Canelas e Peso da Régua. E, para concluir, demonstra satisfação por os bombeiros terem no seu museu este valioso objecto que, em tempos mais recuados, pertenceu à terra onde nasceu, a freguesia de Canelas do Douro, quando era um concelho.


“Do extinto concelho de Canela existiram, até há bem pouco tempo, três relíquias: a casa da câmara, um livro de actas das sessões camarárias e uma sineta, cujo repique servira ordinariamente para convocar vereadores.
(…)
Das três relíquias, só existe a sineta. Quem quiser ver esse pedaço de bronze deverá subir à cobertura da nossa casa, como quem diz ao telhado do nosso quartel (Bombeiros Voluntários da Régua). Substituirá a sereia quando a sereia emudecer.
(…)
Do antigo foro de Canelas, à parte a rua da Picota, que ainda existe, continua a viver como nova, por ser de bronze, a sineta que alarmou os povos em 1808. Nós, os Bombeiros da Régua, orgulhamo-nos da sua posse. Ao festejarmos os setenta e seis, rica idade, é-nos agradável celebrar uma relíquia que não deslumbra o nosso brasão.”


Durante a sua vida, o escritor teve a oportunidade de conhecer, com excepção de Manuel Maria de Magalhães, todos os comandantes dos bombeiros, com os quais privou de perto e fez amizade.


Sucedeu ao Comandante Manuel Maria de Magalhães uma figura da cultura reguense, o jornalista, o pintor, o escultor, o investigador José Afonso de Oliveira Soares (1892-1927), autor da “História da Vila e do Concelho de Peso da Régua”. João de Araújo Correia foi seu amigo íntimo e ambos escreveram nos jornais que se publicaram na Régua nas primeiras décadas do séc. XX.


A ele dedica a crónica “Configurações” (In Horas Mortas-1968) para elogiar o seu génio de artista. E na crónica “José Afonso Oliveira Soares”, publicada na primeira página do "Jornal da Régua", em 1928, escreve sobre um seu retrato para   lhe gabar  as suas qualidades morais.


“O retrato é mal tirado. Mas a nossa adoração espiritualiza-o. Aos olhos dos devotos não escorrem sangue as feridas mal pintadas dos crucificados? À nossa vista, o Senhor Soares gravado é o Senhor Soares vivo. O fenómeno do riso no octogenário ensilveirado de barbas é um dos encantos do homem que vem, às tardes sentar-se no banco do Zé Pinto, do esteta que procura uma mercearia para espairecer, como há enxovedos que procuram os museus para ressoar. O riso é o triunfo do homem sobre as trivialidades que o circundam. A beleza e fealdade das coisas são reacções interiores. Por isso vemos o Senhor Soares deliciado quando o Afonso Henriques Morrão pesa bacalhau ou o Zé Pinto se põe a esculpir estátuas impressionistas de oiro, com manteiga. Se o amor preleva o senso estético no descobrir em prosa poesia num pelo defumado do cachimbo do Senhor Afonso Soares, veremos o singular indivíduo que vive oitenta anos à sombra de sertanejo campanário, sem prejuízo da harmonia do seu vestir ou pensar. A gravura que encima, esta coluna e, por consequência uma maravilha.
(…)
Não é exacto valerem os homens somente pela obra executada. Os homens valem pelo mundo íntimo que abrigam e vem transparecer à flor do olhar, do gesto, da palavra, que é a maneira de pôr a gravata ou o chapéu. O Senhor Soares vale um tesoiro.Com aquelas barbas chamuscadas de fumo, a moeda romana que lhe orna o peito, vale tanto como se houvesse despedido do lar aos vinte anos, com a sua habilidade e seus pincéis e regressasse pelos oitenta, coroado de espinhos loiros, bem granjeado o nome pomposo de Mestre José Afonso”.


Quanto ao Comandante Joaquim de Sousa Pinto (1927-1930), comerciante estabelecido na Rua dos Camilos, nº 45, no tempo em que havia as mercearias com fartos recheios de produtos do comércio de retalho, homem que também se distinguiu como vereador da autarquia, nos finais da monarquia, foi referenciado na crónica “A Botica do Anastácio”, publicada no jornal “O Arrais”, em 1981.


“A Régua actual, tornemos a dizer, não é muita antiga. Nasceu com a Companhia Velha, cujo edifício e armazém, à beira do nosso rio, são uma espécie de quartel-general do país vinhateiro. Deram à Régua o foro de capital do Douro, região que vai desaparecer – se é certo o que anunciam os jornais portugueses. Caso para gritar: aqui del-rei, que matam o Douro!
Mas, por hoje, vamos lá recordar a botica do Anastácio, situada na Rua dos Camilos, defronte da antiga loja do Valente Novo. Loja que mudou de nome português para nome francês, mudando o proprietário. Deus lhe perdoe.
A botica do Anastácio! Já toda a gente lhe chamava farmácia. Mas, o meu pai, amigo de termos velhos ainda lhe chamava botica. Assim como chamava Rua da Bandeira à Rua dos Camilos, porque os terrenos, por ali situados, tinham pertencido aos Portocarreiros, fidalgos da Bandeirinha, lá em baixo, na cidade do Porto.
A Régua não é muito antiga. Mas, já se pode ir falando da Régua de ontem aos actuais reguenses. Como tudo quanto nasceu, também, a Régua vai envelhecendo.
A botica do Anastácio é de ontem. É do tempo em que não havia clubes ou só havia um clube. É do tempo em que os mentideiros, os soalheiros, os centros de cavaco, eram as farmácias ou mercearias. Memorável ponto de reunião foi a botica do Anastácio - como lhe chamava meu pai. Memorável clube improvisado.
Anastácio, de pé, do lado de dentro do mostrador, deitava aos contertúlios, de vez em quando, uma palavra mansa.
Era homem calmo, correcto, farmacêutico limpo e honesto como não havia segundo. Receita aviada por ele saía das suas mãos como obra-prima em forma de garrafa, hóstias ou pomada. Morreu bastante novo, com uma diabete quase fulminante.
Contertúlios reunidos à noite eram aí meia dúzia. Além de meu pai, conto o Dr. Vasques Osório, mais conhecido por Doutor Galego, por ser filho de Domingos, galego de nação; Joaquim Lopes da Silva, homem de grande tino comercial, uma energia oriundo de Ovar; Cardoso Mirandela, então ajudante de notário, homem esperto e positivo; Joaquim de Sousa Pinto, merceeiro bem disposto, dedicado comandante de bombeiros; Joaquim Penhor, a quem chamavam o Tio Rico, e outros.
Conversavam sobre a política do tempo, contavam anedotas recessas, etc.
Tio Rico morava lá em cima, no Poeiro, numa casa que veio a ser residência paroquial. Creio que vivia com mulher e cunhadas. E, como não tivesse filhos, deixou a casa ao Cardoso Mirandela, sobrinho dele por afinidade.
A Régua não é muito antiga. Mas, como se vê, começa a ter que contar”.


Do Comandante Camilo Guedes Castelo Branco (1930-1949), ajudante de notário de profissão, jornalista em jornais de índole republicana, distinto poeta, com uma obra publicada – “Farternalis Dolor” -  e muita  dispersa, o escritor  insere  no seu livro “Lira Familiar”,  o fragmento poético Instantâneo VI, que aquele tinha assinado com o pseudónimo de Gil Vaz, no “Jornal da Régua”, em1937. Em nota final, nessa sua obra, elogia-lhe o talento de poeta e aconselha que se reúna num livro a sua poesia dispersa.


“Poeta lírico de altíssimo talento, pedem colectânea há muito, os seus dispersos.Com ele se poderia formar um dedicado ramo de flores”.


O Comandante Lourenço de Almeida Medeiros (1949-1959), faleceu em 12 de Dezembro de 1959. Destacou-se pelos seus 63 anos de serviço nos bombeiros, o que foi reconhecido com uma alta condecoração do Estado, a comenda de Cavaleiro da Ordem da Benemerência.


Na crónica intitulada “Delicadeza” (In Pátria Pequena -1959) escreveu um “in memoriam” a um homem delicado, carinhosamente tratado pelo “Lourenchinho”.


“Faleceu a 12 do corrente, nos subúrbios desta vila, um homem delicado. Melhor dizendo, faleceu a 12 do corrente, nos subúrbios desta vila, um homem que exerceu, durante mais de oitenta anos, a delicada arte de ser delicado.
Parece que o exercício dessa função espiritual o conservou moço até ao limiar da cova. Tinha oitenta anos como se tivesse apenas cinquenta, mas, direitos e elegantes como guias de salgueiro.
Toda a gente sabe ou adivinha que o nosso morto é o Lourenço de Almeida Pinto Medeiros, o Lourenchinho, como lhe chamávamos todos, consoante o uso no Norte. O inho, entre nós, não é mau signo de equívoca personalidade, é tributo que se paga em moeda de afectivo respeito, a um homem que o mereça.
O Lourenchinho, reguense nato, inteligência circunscrita a ideias intramuros, coração transbordante de paixões locais, Bombeiros e Festas do Socorro, foi excepção na Régua devido à sua ingénita delicadeza.
Por esse motivo, além de outros, faz imensa falta a este burgo comercial, tão atarefado, que não considerou que cortesia é sinal de civilização.
Terra que não saiba cumprimentar, que não perdoe pequenas fraquezas a naturais e estranhos, que não dissolva mesquinhos ressentimentos, não vença a iníqua antipatia que lhe inspiram os melhores filhos, é terra de esboço colonial de provável povoação.
É tempo de a Régua se orgulhar de cidadãos polidos como o Lourenchinho. Ele e poucos mais, que felizmente por aí ficaram, uns ricamente vestidos, outros pobremente vestidos, provam que a Régua não é árida de cortesia como a pintam os seus hóspedes mais sensíveis.
O Lourenchinho, foi fidalgo de natureza, que é maneira menos falível de ser fidalgo”.


Por volta de 1958, os bombeiros necessitaram de ajuda da população para comprar uma nova ambulância, a auto-maca de que tinham falta para transportar os doentes para os hospitais do Porto. Mais uma vez, o escritor reguense, que conhecia bem as dificuldades que vivia a Associação, mostra as suas qualidades cívicas.


O escritor sabia que os seus textos eram lidos com atenção e respeitados. Em tom dramático, mas repleto de humor, na crónica “Socorro!” (In Pátria Pequena-1958) faz um apelo à generosidade dos reguenses. Deve dizer-se que, no ano seguinte, os bombeiros juntaram a verba para compararem a necessitada ambulância.


“É indispensável e até urgente que os nossos bombeiros adquiram uma ambulância nova! A que aí têm é ainda um bom carro, foge que voa pela estrada fora e trepa ao cimo dos nossos montes como um gato, mas é inóspita para doentes e pessoas que os acompanham. Não tem defesa contra o frio e calor externos. Em viagens longas, consoante a estação, é frigorífico ou crematório.
(…)
Tornou-se angustiosa a necessidade de se adquirir nova auto-maca. A velha ficará para serviço rápido, subir a Poiares ou a Sedielos num rufo, suprir ou auxiliar veículo novo em caso de necessidade. Para levar um doente à Misericórdia do Porto, aos hospitais de Coimbra ou Lisboa, pôr-se-á a caminho ordinariamente uma ambulância capaz de o agasalhar e proteger com o maior carinho e o menor dispêndio.
De todos os fogos, o que lavra no corpo ferido ou doente é o mais credor de imediato socorro. Não há casa que valha uma vida humana. Levar a uma enfermaria o semelhante é acudir-lhe com o coração guiado pelo espírito. É um acto que transcende da simples caridade. Deixar morrer é matarmo-nos. O bem comum mais precioso é o homem. Como quem diz: somos nós todos. No caso de auxiliarmos os Bombeiros, na compra da auto-maca, o que lhe dermos será economia nossa que vamos pôr a juros. Imaginemos, à nossa vontade, que somos beneméritos. O que seremos, em boa análise, é egoístas. O óbolo que sair do nosso bolso é um seguro de vida. Reverterá, quando mal nos precatarmos, a nosso próprio favor. Ninguém dirá, vendo passar a auto-maca: de ti, estou eu livre.”


Em 8 de Agosto de 1953, o bombeiro João Gomes de Figueiredo - conhecido por João dos Óculos - morreu no combate ao  incêndio  na Casa Viúva Lopes. A sua morte causou enorme a dor e mágoa aos reguenses que não deixaram de expressar os sentimentos, quer à sua família de sangue – deixava a viúva e três filhos menores na miséria –, quer à do seu coração, ao Corpo de Bombeiros.


Nesse dia fatídico, o escritor que, por sinal, era um seus dos patrões, já que era um dos sócios da Imprensa do Douro, onde o malogrado bombeiro trabalhava como tipógrafo, dirigiu um telegrama à Exma Direcção dos Bombeiros Voluntários, a manifestar os seus “Sentidos pêsames - trágico falecimento dedicado  Bombeiro e Homem de Bem Joaquim Figueiredo”.
Nas páginas do Boletim das Bodas de Diamante da Associação (1955), escreveu um soneto em memória daquele bombeiro. Para ele, este malogrado bombeiro que morria aos 33 anos de idade, era o símbolo que não podia ser ignorado, como exemplo verdadeiro de que, muitas vezes, estes “soldados da paz” dão a sua própria vida para salvar a do seu semelhante.


O João dos Óculos nasceu bombeiro
Embora fosse pálido e franzino,
Cumpriu até o fim o seu destino
Com impoluta alma de guerreiro.


Nenhuns braços lhe foram cativeiro
Mal da sereia ouvisse o som mofino…
Em uma noite de luar divino
Foi encontrar a morte num braseiro.


A sua associação - cândida amante -
Celebra hoje as Bodas de Diamante…
-Quase cem anos de existência honesta.


Um bom diante, sócios, é carvão.
Ide buscar o coração do João
E fazei dele o símbolo da festa.”
Em 28 de Novembro de 1980, quando a associação festejava o primeiro centenário e os bombeiros  estavam encarregados da  organização do 24º Congresso Nacional dos Bombeiros Portugueses, escreveu no Boletim do Centenário (1980) o inédito “História de um Soneto”, para lembrar os “versos de cegos” – na opinião de seu filho Camilo - que tinha escrito em memória  do abnegado jovem bombeiro João dos Óculos,  tragicamente falecido no combate a um  incêndio.


“Tive muita pena do João dos Óculos, falecido em 1953. Quando, em 1955, festejou as bodas de diamante a benemérita ASSOCIAÇÃO DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DO PESO DA RÉGUA, lembrei-me dele e da sua trágica morte E, vai daí, andando a passear no meu quarto, improvisei um soneto à sua memória. Digo improvisei, porque me apareceu, no cérebro, desde a primeira à última palavra. Nasceu-me, de mais a mais, a conversar com um dos meus filhos, o Camilo, que não é nada tolo como toda a gente sabe.
Por ele não ser tolo, recitei-lhe o soneto antes de o escrever.
Mas, que má impressão lhe causei! Premiou-me os catorze versos com uma coroa de espinhos. Disse-me que eram versos de cego.
Versos de cego, em 1955 eram uma versalhada, que os ceguinhos entoavam na rua, ao som da viola, violão ou outro instrumento de corda, para apurar tostões. Levavam de terra em terra, tocando e cantando, o noticiário de grandes casos. Eram quase sempre, eco de grandes crimes, principalmente crimes passionais.
Estou a ouvi-los entoar a versalhada, que, na opinião do meu filho, era mãe do meu soneto.
Embora… Publiquei os meus catorze versos numa folha ilustrada, comemorativa dos setenta e cinco anos dos nossos bombeiros.
(…)
Mal chegou a Lisboa o sonetito, encontrou no Dr. Nuno Simões carinhoso acolhimento. Depois de o ler na folha única, não se conteve o ilustre publicista. Comunicou o seu entusiasmo à Associação dos Bombeiros.
Isto de críticos… Se todos pensassem o mesmo, a respeito de qualquer obra, tombava o mundo para uma banda, correria o risco de se perder na imensidade.
Todos os conselhos ouvirás e o teu não deixarás – reza o prolóquio. Todas as críticas ouvirás e a tua não deixarás – digo eu antes e depois de publicar os meus escritos. Sei ou suponho que sei até que ponto merecem ser publicados”.


Em carta dirigida ao Secretário da Direcção dos Bombeiros do Peso da Régua, encontrada nos arquivos da Associação, João de Araújo Correia pedia o máximo cuidado na revisão dos seus textos. Era um cultor rigoroso da língua portuguesa e temia os erros e as gralhas tipográficas estragassem a qualidade literária dos seus escritos.


“Para corresponder ao amável convite de V. Excia, para colaborar num livro comemorativo do centenário da sua Associação, tive a honra de lhe remeter, pelo Sr. António Luís Pinto, empregado da Imprensa do Douro, três originais.
Trata-se de uma crónica inédita, intitulada História dum Soneto, e de dois artiguinhos que devem ser agora republicados.
Suponho que nenhum dos meus escritos, enviados a V. Excia pelo Sr. António, destoarão da índole do livro. Todos aludem a tempos idos da Associação.
Como tenho tido medo a gralhas tipográficas, não dispensarei a revisão de provas. Podem estas ser enviadas pelo dito Sr. António Luís Pinto – seja qual for a tipografia que imprima o livro”.


O certo é que nesse Boletim só foi publicado o inédito. Nenhuns dos seus dois artiguinhos “dos tempos idos da Associação” foram republicados.


E foi pena… Em vez dele, publicaram uma sua poesia alusiva à data histórica, que intitulou de “Centenário dos Bombeiros”.


Em 28 de Novembro de 1980, os bombeiros da Régua celebravam 100 anos de vida, com sinais de vitalidade, força e grande determinação. Uma vez mais, mostram estar actuantes na sociedade e os seus valores de generosidade provavam que estavam preparados para assumir mais  desafios no futuro. Como sempre, os bombeiros olham em frente, marcham em direcção a um novo horizonte, sempre com uma intenção: fazer mais e melhor, estando ao serviço da sua comunidade.
A longevidade da Associação fez reflectir mais o escritor, para quem os seus homens tinham uma certa condição de imortalidade: “Bombeiros não envelhecem/Nem sequer podem morrer/Como qualquer outro ser/Bombeiros não envelhecem/Nem sequer pode morrer”.


Por outras palavras, o escritor João de Araújo Correia imortalizou os bombeiros da sua terra não como heróis, mas como seres de elevados princípios humanistas.


Ao longo de mais 130 anos de missão, os bombeiros souberam construir uma a história colectiva de uma instituição nascida para servir e ajudar as pessoas, erigindo uma grande casa para fazer o Bem, como o seu primeiro um ideal, mas também para ser útil social e culturalmente.


No início de novo século, apostarão na modernidade, no conhecimento, na formação e na inovação, mas serão testemunhas privilegiadas dos valores e dos princípios de humanismo, de altruísmo e de filantropia, que pretendem manter firmes e perenes, sem nunca esmorecer os ideais dos seus fundadores.


Porque os bombeiros merecem admiração e respeito de cada um de nós, temos de repetir o que deles afirmou o escritor João de Araújo Correia: “Um homem de luvas brancas, com machado de prata às ordens e a cabeça adornada com um elmo de ouro, não é um homem. É um semi-deus”.

- Colaboração de J. A. Almeida - Régua para "Escritos do Douro".
João de Araújo Correia na "Infopédia"
João de Araújo Correia na "Wikipédia"

segunda-feira, 28 de março de 2011

Uma Sineta de Palavras - 3

 A presença dos bombeiros na vida e obra  de João de Araújo Correia

“A associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”
João de Araújo Correia

Continuação.
O mundo dos bombeiros tem uma magia muito especial para todos os seres humanos, muito em especial quando crianças, que é imutável mesmo que mudem as cores das fardas, os pronto-socorros sejam mais potentes e equipados com material sofisticado e os sinais de incêndios tenham outras formas de alertar os bombeiras. De uma época para outra, a modernidade traz algumas alterações na forma como os bombeiros actuam e desempenham a sua missão. Umas são mais notórias e caem em desuso, mas provam que se verifica também uma evolução na sua missão de socorro.


A partir de certa altura, os sinais de incêndios que só os velhos bombeiros aprenderam caíram também em desuso. Antigamente eram usados para saberem em que ruas da Régua andava o fogo, mas hoje os bombeiros não assim chamados, mas pelo toque de uma sirene que, começa já começou a dar lugar a um novo aviso, as mensagens difundidas pelos modernos telemóveis.

Em “Sinais de Incêndios”, crónica publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, João de Araújo Correia evoca o tempo em os fogos metiam mais medo e os bombeiros eram chamados pelos diferentes toques do sino da Capela do Cruzeiro.

“Estou a ver, no quarto de meu pai, dentro de um caixilho, uma espécie de registo intitulado Sinais de Incêndio. Mas em ortografia antiga… Os Sinais rezam como Signaes.
Pela ortografia se poderá avaliar a idade do registo. Idade antiga, embora posterior a Gregos e Romanos…
Pendia o registo com a sua moldura, sobre a mesinha de cabeceira de meu pai. Era uma espécie de semideus lareiro. De noite ou de dia, se o sino do Cruzeiro tocasse a fogo, aqui na Régua, o benemérito registo indicava a meu pai o sítio em que lavraria ponta de incêndio capaz de destruir a Régua.
No tempo de meu pai, havia mais medo a fogos do que hoje. Se havia confiança nos bombeiros, haveria menos confiança no material que então usavam. Hoje, tanto se confia na bomba como no bombeiro. O munícipe sossega.
Também havia, no tempo de meu pai, maior curiosidade ou possibilidade de saber onde era o fogo. Hoje, não o diz a ninguém a lúgubre sereia. O morador desiste de ser curioso ou sai à rua a perguntar: onde é o incêndio?
Graças à pagela, pendurada no quarto de meu pai, sabia ele a qualquer hora, diurna ou nocturna, se havia fogo e em que bairro andaria ele ateado.
Como de facto. A tabela rezava assim:
  • 4 badaladas – Souto, Boa Morte, Calvário, Quebra Costas, Rua das Árvores, Estrada Nova, Eiró, S. Pedro, S. João, Eirinha.
  • 5 badaladas – Fontainhas, Cruz das Almas, Rua do Passo, Carreira, Fundo de Vila, Azenha, Ferrans (?), Rua de S. José, Vila Franca.
  • 6 badaladas – Rua Serpa Pinto, Bordalo, Americano.
  • 7 badaladas – Ameixieira, Senhor dos Aflitos, Rua Custódio José Vieira, Cais de Baixo, Passeio Alegre, Rua João de Lemos, Rua Nova.
  • 8 badaladas – Rua dos Camilos à Ponte, Rua da Alegria, Rua 1.º de Dezembro, Guindais, Midão.
  • 9  badaladas – Fora de Vila
  • Para parar - 5 badaladas.
Copiei a lista de exemplar velhinho e esbotenado. Copiei-a, acertando-lhe a ortografia pelo cânone actual. Mas, tão velho é o espécime, que duvido do topónimo Ferrans – tanto ou quanto safado. Se alguém me quiser tirar dúvidas…
É curiosa a lista de badaladas. Fala-nos de ruas velhas, ruas que mudaram de nome ou o perderam – como a do Passo. Fala-nos da Régua de nossos pais que se pode considerar antiga.
Muito estimaria que alguém me oferecesse um exemplar perfeito dos SIGNAES DE INCÊNDIO. O que possuo não pertenceu a meu pai. Deu-mo um amigo. Mas, tão gasto, que mal o posso ler. É pena… Como folha velha, teria mais poesia se fosse mais legível.

Nota do Autor: Diz-me pessoa amiga que a Rua do Passo, no Peso, é a que vai da Cruz das Almas, em linha recta, às Rua da Carreira. Abre para essa rua a propriedade a que chamam de Gama. Esta informação, que muito agradeço, completa o artigo que intitulei de Sinais de Incêndio”.

Os temas sobre as crónicas dos bombeiros são fragmentos essenciais para completar a história colectiva do seu remoto passado. São pedaços de memórias que permitem refazer com rigor e verdade quem foram os homens e os seus momentos decisivos que revelaram uma determinação e fé inabalável em manter em funcionamento esta maravilhosa obra de ajuda a quem precisa.

Em 1938, no seu primeiro livro publicado, intitulado “Sem Método”, o escritor na Nota XXIX, reconhece a importância social dos soldados da paz da sua terra, ao expressar o seguinte:

“Despedi-me do doutor Feliciano com um abraço amargurado. É que me lembrei desta desventurada terra chamada Régua, tão desenfeliz que nem água tem para beber. Que não tem uma escola. Que não tem um hospital. Que, tirante os bombeiros, não tem coisa nenhuma útil ao comum.”

Mais tarde, o elogio aos bombeiros e à Associação repete-se em “Biblioteca Maximiano de Lemos” (in Pátria Pequena-1963) para fazer um louvor à instituição que revelava dinamismo e uma frescura “física”, em cada aniversário que comemorava.

“Na Régua, é tradição que falhem todas as iniciativas. Falharam as touradas, as exposições fotográficas, o teatro de amadores, o orfeão, a parada agrícola, os desportos náuticos e até o carnaval inventado pelo Chico Pulga. Tudo falhou, menos a Associação dos Bombeiros Voluntários, fundada em 1880, e de ano para ano, mais florescente”.

Na crónica “Uma velha Estante”, publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, o escritor volta à sua infância -  quando teria onze ou doze anos de idade – para reviver o fascínio  das  salas recreativas do primeiro quartel,  onde  reparou  numa velha estante os   livros que nunca mais esqueceu.

“Quando o quartel dos bombeiros funcionou modestamente numa casa situada no actual Largo dos Aviadores, frequentei-lhe as salas recreativas com o meu pai - era eu rapazinho.
Na sala dos jogos, inofensivos jogos de cartas, dominó e quino, lembro-me de ver, encostada a uma parede, uma alta e larga estante de madeira rica, toda envidraçada e repleta de livros.
Creio que ninguém lhes tocava. Quem se entretinha com a sueca, o dominó e o quino talvez nem reparasse na volumosa estante, abarrotada de livros.
Reparava eu... E o meu regalo seria abrir aquela estante e colher de lá um livro para o folhear e ler antes de me deitar. Assim eu o percebesse. Era ainda tão novo… Teria onze, doze anos.
Os meus encantos, naquele clube, eram aquela estante. Mas, sempre fechada e muda. Até que uma noite, e em noites seguidas, a vi abrir. Um senhor, que usava óculos, ia retirando e colocando de novo, no seu lugar, rimas de volumes. Arrecadava-os depois de lhes escriturar os títulos num grande livro de papel almaço.
Livros que nunca mais esqueci. Quando, depois de instalados os bombeiros no quartel novo, alguém me disse que todos esses volumes estavam à matroca, empilhados num monte, sem o mínimo vislumbre de arrumação, caiu-me a alma aos pés. E assim, esteve, de rastos uma porção de anos.
Até que ontem, dia que marquei com uma pedra, vim a saber que os livros já estão arrumadinhos na estante – bela estante de mogno.”

Os bombeiros da Régua fazem mais do que apagar os incêndios. Desde o seu início constituíram uma organização social e humanitária. O seu quartel não guarda só os equipamentos e fardamentos, mas serve como um centro convívio social da comunidade reguense. De acordo com o estabelecido nos estatutos da Associação, os sócios fundadores propuseram-se criar uma biblioteca, desde que os fundos o permitissem. Se assim o pensaram e desejaram, depressa o conseguiram realizar, com a ajuda de Afonso Soares e de muitos beneméritos.

No tema “Primórdios” (in Pátria Pequena - 1963) volta a falar da criação da biblioteca dos bombeiros, criada em 1885, pelo  sócio contribuinte Afonso Soares que, por modéstia, não quis que o seu nome fosse revelado.

“Pena é que o saudoso historiador da nossa vila e concelho mão tenha nomeado o sócio contribuinte, que tanto desejou ver o nosso quartel espiritualizado com uma livraria. Dizemos tanto desejou, porque o seu desejo moveu a vontade do Dr. Joaquim Correia Cardoso Monteiro.
Devemos a um anónimo a fundação, em 1885, da nossa Biblioteca. Se soubéssemos o nome dele, seria obrigação perpetuar-lhe a memória com algum voto condigno. Como não se sabe, imagine-se que foi o humilde benemérito. Algum obscuro artista, amigo da Instrução…
Obscuro não deve ter sido o Dr. Joaquim Correia Cardoso Monteiro, propulsor da luminosa ideia do sócio contribuinte. Inscreva-se-lhe o nome numa lápide se não pudermos eternizar-lhe o retrato entre os nossos livros. Devemos gratidão a esse antepassado.
As coisas são como os rios. Têm origem que, embora tímida, nunca é desprezível. A nossa Biblioteca nasceu em 1885. Ninguém esqueça essa data.
Nascida em 1885, só em 1960, em pleno século actual, veio a ser baptizada. Na província, a marcha de qualquer intuição é sempre lenta.”
(Clique na imagem para ampliar)

Aquela biblioteca foi ainda tema para mais duas crónicas, todas incluídas no livro Pátria Pequena: “Dr. Maximiano de Lemos (in Pátria Pequena-1960), “Alvíssaras” (in Pátria Pequena-1960) “Biblioteca Maximiano de Lemos” (in Pátria Pequena-1963).

Em 1960, a velha biblioteca era enriquecida com a instalação de uma biblioteca fixa da Fundação Calouste Gulbenkian. Os bombeiros passaram a garantir serviço público. Esta biblioteca, a única que existiu na Régua durante muitos anos, passava a ser procurada e frequentada pelos jovens.

Na primeira crónica que foi dedicada a Maximiano de Lemos, erudito historiador da Medicina Portuguesa, nascido na Régua, em 8 de Agosto de 1860, quando os bombeiros se preparavam para lhe fazer uma homenagem, escreveu:

“Querem os nossos Bombeiros inaugurar quanto antes a sua nova biblioteca, renascida do velho armário repleto de livros sem catalogação, e querem dar-lhe o nome de Maximiano de Lemos, fazendo coincidir o acto inaugural com o centenário natalício do nosso conterrâneo. Dois quereres, qual deles o mais gentil… Que vão por diante é o nosso voto.”

Na crónica seguinte que intitulou de “Alvíssaras” elogiava a iniciativa dos bombeiros, que contribuiriam de forma decisiva para a organização das comemorações do centenário natalício de Maximiano de Lemos e que ela tenha encontrado apoio em mais “boas vontades”.

“Parece que vão por diante, aqui na Régua, as comemorações do primeiro centenário natalício do professor Maximiano de Lemos. À boa vontade dos nossos bombeiros vieram sucessivamente, para esse feito, a boa vontade do senhor Provedor da Santa Casa da Misericórdia e a boa vontade do senhor Presidente da Câmara Municipal. Três boas vontades que, somadas, darão de si inabalável querer no cumprimento de uma obrigação.
No dia 8 de Agosto próximo, ao cumprir dos cem anos sobre o nascimento de quem se distinguiu ao ponto de ser querido dos sábios do seu tempo, inaugurarão os nossos bombeiros a sua nova biblioteca, dando-lhe o nome do reguense ilustre. O grande estudioso, que passou a vida entre livros, sorrirá do outro mundo à carinhosa ideia dos seus conterrâneos. Será capaz de vir ajudá-los na escolha, catalogação, arrumação e defesa de boas espécies bibliográficas.”

Em “Biblioteca Maximiano de Lemos” (in Pátria Pequena, 1963), recorda, com sentido de humor, as duas bibliotecas que coexistiram, durante algum tempo, no último piso do Quartel dos Bombeiros:

“A Biblioteca Maximiano de Lemos, inaugurada em 1960, ao comemorar-se o primeiro centenário do seu ilustre patrono, vai ser enriquecida, no próximo mês de Novembro, com uma valiosa colecção de livros da Fundação Calouste Gulbenkian. Diremos, para ser precisos que vai funcionar, dentro da Biblioteca Maximiano de Lemos umas das bibliotecas fixas da Fundação Gulbenkian.
Queremos que as duas bibliotecas não briguem uma com a outra, antes se auxiliem e completem. A de Maximiano de Lemos pobre e velha livraria, herdeira da primitiva estante dos Bombeiros e acrescida de alguma oferta particular. A da Fundação, constituída por livros em barda e todos em folha, será útil ao comum dos leitores. Será própria para os desbravar e lhe estimular o gosto da leitura.”

“Uma grande lição”, crónica publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, foi mais um pretexto para distinguir a acção cultural, em especial dos bombeiros, nas comemorações do primeiro centenário de uma figura pública reguense, de valor nacional, que ele muito considerava, o Dr. Maximiano de Lemos, insigne médico, professor e historiador da medicina portuguesa.

“Nem sempre a Régua adormeceu em pontos de civismo. A 3 de Dezembro de 1960, deu uma grande lição, comemorando, com solenidade, o primeiro centenário do Dr. Maximiano de Lemos - insigne reguense.
Bombeiros Voluntários, Hospital de D. Luís I e Câmara Municipal colaboraram no sentido de não envergonharem a terra com comemorações.
(…)
Diga-se também que os nossos bombeiros inauguraram o ressurgimento da sua livraria, dando-lhe o nome de Maximiano de Lemos.
(…)
O Dr. Alberto Saavedra, homem de Ciências e Letras produziu um belo discurso na inauguração da Biblioteca. Publicado em fascículo, esse discurso é hoje venerável relíquia”.

Em 1978, na crónica “Uma Galera”, publicada no jornal “O Arrais”, lamentava que os bombeiros não possuíssem uma sala museu para guardarem os antigos materiais usados nos incêndios, as velhas fardas e os documentos de valor. Considera que essa atitude é uma falta grave. Mas incentiva ao aparecimento de um espaço no quartel destinado a um museu dos bombeiros. Aquele texto acaba por ter um efeito pedagógico.

Em 1980, um século depois da fundação, os bombeiros da Régua criavam o seu Museu, numa das salas do quartel que decidiram baptizar o Museu com o nome de Dr. João de Araújo Correia. A ideia por ele desejada, acaba assim por ser concretizada, mas sem que a galera voltasse ao seu destino de origem.

“De uma das vezes que atravessei uma vila risonha, apeei-me da burra, como quem diz do carro, para espreitar uma casinha baixa, de portas abertas para um grande largo. Era um quartel de bombeiros…Mas, tão antigo, em seu material, que era um museu de bombas e capacetes, machados e agulhetas, tudo disposto para acudir a incêndio ateado aí cem anos antes.
Estive, vai não vai, para nele pegar nele e trazê-lo para a Régua, oferece-lo aos bombeiros da minha terra, que tinham quartel novo, no trinque, e não tinham guardado, do quartel velho, grandes recordações. Podiam, em edifício à parte, manter aquele museu como saudade do século passado. Podiam oferece-lo à memória de quem fundou, há cerca de um século, a primeira associação de bombeiros da Régua.
Que resta desse tempo? Uma galera, que andou de jó para já até um dia. Consta-me que foi parar, emprestada que não dada, a um quartel do Porto.
Hoje, que os nossos bombeiros ampliaram o quartel, devem chamá-la a si como relíquia dos seus velhos tempos… Já não lhe falta espaço onde a meter e exibir.
Os bombeiros da Régua, que tanto cabedal fazem da sineta de Canelas, que só a Canelas pertence, devem recolher, quanto antes, a galera que só a eles deve pertencer. Venha para a Régua, quanto antes, a galera que levou a muito incêndio, em tempos idos, os bombeiros da Régua. Tanto mais, que é uma linda galera, muito bem conservada… Parece que acabou de sair de mãos de artista.” 
Continua...

- Colaboração de J. A. Almeida - Régua para "Escritos do Douro".
João de Araújo Correia na "Infopédia"
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quinta-feira, 24 de março de 2011

Uma Sineta de Palavras - 2

 A presença dos bombeiros na vida e obra  de João de Araújo Correia

“A associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”
João de Araújo Correia


Sem abusar da sua confidência, julgo que não alterarei o rigor da sua dedicatória, se acrescentar que o livro “Pátria Pequena” não foi só escrito e como uma homenagem, à “vila e o concelho do Peso da Régua”. Em grande parte esse seu livro, foi – é e será -  também,  um preito aos bombeiros da Régua, em especial aos bombeiros da velha guarda,  a todos os bombeiros do seu tempo,  como a única gente que teima em representar, neste nosso meio, um papel tão nobre, que a distingue da apatia comum”. Da mesma forma, deve ser entendido como o reconhecimento de uma Associação Humanitária que criou raízes no seu meio social e, por assim dizer, se tornou uma força invencível, obstinada em cumprir os ideais legados pelos seus heróicos fundadores.


Certamente que contar a história dos bombeiros da Régua não foi uma tarefa pensada ou imaginada pelo escritor, no sentido de que desejasse narrar os factos e os acontecimentos com uma ordem cronológica, como se fosse mestre de história. Mas, os temas tratados nas crónicas são uma grande parte da história dos bombeiros. Se nelas há muito das sua memórias também está também retratada a sua relação de amizade com os velhos bombeiros os directores. O escritor de memória em memória, de retrato em retrato e de acontecimento para acontecimento faz enobrecer a grandeza de homens bons e enaltece os seus ideais humanitários.


João de Araújo Correia, nas crónicas que dedica aos bombeiros consegue reconstruir uma parte do passado, obscuro e desconhecido, com génio, humanismo e até ternura por figuras humanas que já se tornaram imortais, em momentos que testemunhou, directa ou indirectamente, da existência uma instituição modelar, no que ela tem de sonho e de paixão, abnegação e heroísmo, grandioso e nobre, mas também de sofrimentos, desânimos, e tragédias que fizeram perder a própria vida a homens, que cumpriram ao extremo o lema do voluntariado: “Vida por Vida”.


Desde o projecto organizado por Manuel Maria de Magalhães, o líder escolhido para comandar o movimento associativo, os bombeiros aparecem referenciados nas inúmeras crónicas que o escritor publicou quer em livros quer em jornais, até ao fim da sua vida, encontrando-se as últimas no jornal O Arrais. Sempre com uma indisfarçável paixão, descreveu os bombeiros da sua terra como uma força invencível, uma força ao serviço de causas com uma dimensão moral e ética, que sempre apoiou.


Com os bombeiros, João de Araújo Correia manteve também uma ligação de sócio contribuinte. Era assim que o dizia na sua correspondência que encontramos arquivada nos bombeiros. Curiosamente, contribuinte era a classificação dos associados, definida nos primeiros estatutos, os que pagavam uma quota fixa em dinheiro para ajudar. Esta classe de associados, onde já se incluiu a D. Antónia Adelaide Ferreira, a famosa Ferreirinha, que se inscreveu como a sócia numero um, foram sempre muito importantes pelos seus contributos generosos nos momentos de maiores dificuldades económicas.


Como já se disse, João de Araújo Correia foi um dos colaboradores literários nas páginas do boletim “Vida por Vida”, folha informativa da Associação. Teve como primeiro director o seu filho Camilo de Araújo Correia que, durante um mandato de dois anos, exerceu as funções de Presidente da Direcção da Associação. Mas o escritor, sempre que lhe foi pedida a sua colaboração literária, respondeu de forma positiva. Escreveu textos e memórias relacionados com os bombeiros para os dois boletins comemorativos que a Associação editou, em 1955 e 1980, datas em que, respectivamente, comemorou as “Bodas de Diamante” e o seu primeiro centenário.


Perante os sacrifícios dos bombeiros, o escritor dizia numa carta que enviou  num dos aniversários da Associação que “a associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”.


Quando nasceu João de Araújo Correia, em 1 de Janeiro de 1899, a Associação dos Bombeiros da Régua tinha perto de dez anos de existência. Das mais antigas do país, encontrava-se numa fase em que havia muita boa vontade e determinação dos seus homens e um sentido de manter, apesar de todos os sacrifícios, um corpo de bombeiros voluntários capazes de cumprirem uma tarefa de protecção civil, então da responsabilidade da Autarquia.


Na história dos bombeiros rezavam a proeza e feitos, agraciados com medalhas e reconhecimentos públicos pelos relevantes serviços prestados às populações da Régua e dos concelhos vizinhos, onde não havia nenhuma corporação, como seja em Santa Marta de Penaguião, Armamar e Mesão Frio.


Em 1882 foi atribuído aos bombeiros da Régua, o título de “Real” , que estes passaram a usar na bandeira desenhada pelo Comandante José Afonso de Oliveira Soares.


Havia também falecido, em finais de 1892, de doença, na sua residência na Rua Serpa Pinto, com a idade de 47 anos, o principal fundador e o primeiro comandante Manuel Maria de Magalhães, o decidido impulsionador da criação dos bombeiros da Régua. Presidiu a uma Comissão Instaladora que depressa redigiu os estatutos da benemérita Associação e o regulamento para o bombeiro, com colaboração do advogado e então Presidente de Câmara, Dr. Joaquim Claudino de Morais, o qual prometeu a ajuda pessoal e da autarquia.


Na crónica “Bons e Maus Exemplos”, publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, -  assinada com o pseudónimo Joaquim Pires -  o escritor evoca um  pormenor da vida pessoal do primeiro comandante, natural de Bragança, mas que viveu e trabalhou na Régua, onde exerceu no Tribunal Judicial, então localizado no rés-do-chão do edifício da Câmara Municipal, as funções de escrivão de direito.


“Contavam os antigos reguenses que o Rei D. Luís, dando o título de Real à associação dos nossos bombeiros, em 1882, se relacionou, amistosamente, com o fundador e primeiro comandante da corporação Manuel Maria de Magalhães.
Contavam também que D. Luís se carteava com ele. Apesar de rei, não se desdenhava corresponder-se com um escrivão. Creio que foi escrivão o Comandante Manuel Maria de Magalhães”.   


O escritor não conheceu pessoalmente o primeiro comandante dos bombeiros da Régua, mas na crónica “Bombeiros da Velha Guarda” (in Pátria Pequena, 1965) confessa a sua admiração pelos primeiros bombeiros alistados, com os quais se relacionou e conviveu, não para lhes bendizer feitos heróicos, mas para retratar os seus exemplos de altruísmo.


“Fim de Novembro, fazem anos os Bombeiros da Régua. Contam oitenta e cinco, mas parece que nasceram ontem. Nem uma ruga, nem um cabelo branco, nem um desalento…Garbosos até no capacete, fazem do seu garbo agilidade, frescura e força. Que milagre!
Confraternizam, em cada aniversário, os Bombeiros da Régua. Depois das cerimónias piedosas e do desfile nas ruas, sentam-se à mesa e comem. Comem bem e gracejam…Mas talvez que nenhum se lembre, nem bombeiros nem contribuintes, de sócios e bombeiros antigos, que também se sentaram, em ágape semelhante para comer e gracejar.
Quem vai contando anos, dos que já fazem mossa, não dos bombeiris, que rejuvenescem, lembra-se da velha bomba e de quem a movia e sustentava.
Lembra-se de Afonso Soares, com a sua barba branca; do poeta Camilo Guedes, de gravata à La Vallière; do José Avelino, que comia um boi por uma perna; do José Ruço, que pertencia ao grupo auxiliar; do Joaquim Maria Leite, o Riço, que pertencia ao corpo activo com alma de criança e alma de bombeiro. Mas, de quantos se não lembra ainda? Justino Lopes Nogueira, o Justino, daria um livro de inocentes recordações alegres.
O quartel dos Bombeiros, situado ali em baixo, na Chafarica, largo dos Aviadores, como hoje se diz, era o clube da terra. Havia outro, mas, aristocrático, presidido pelo monóculo do Dr. Costa Pinto. Clube, ponto de reunião sem preconceitos, era o quartel dos bombeiros. Ali se jogava e conversava à vontade. Ali se davam gargalhadas que faziam estremecer o quartel. Guarda-lhe o eco algum ouvido então adolescente…”.


O escritor lembrou um bombeiro voluntário, o divertido Justino Lopes Nogueira, natural de Santa Marta de Penaguião, que foi conhecido por falar com erros gramaticais. Não se distinguiu não pelas suas proezas heróicas, mas antes pelos seus burlescos e impagáveis comentários.


Em “As anedotas do Justino”, crónica publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, traçou um breve retrato deste humilde 1º patrão – hoje equivalente ao posto de Chefe -  dos bombeiros, à mistura com palavras de ironia e muita  ternura pela sua  humilde figura.


“Bem faz o António Guedes, recordando a Régua do seu tempo. Oxalá o pulso lhe não arrefeça tão cedo para continuar a recordá-la com invejável fluência e graça. Oxalá…
Aqui há tempos, lembrou António Guedes a extraordinária figura do bombeiro Justino. Digo extraordinária, porque não houve quem lhe chegasse aos nós em cretinismo.
Boa figura física tinha o nosso homem. Sólido, com as suas carnes sobre o enxuto, garganta bem timbrada… Mas, não abria a boca sem dizer asneira.


- Comi hoje perdiz com molho de pilão. Soube-me pela vida…
Se disse pilão, quis dizer vilão. Toda a gente sabe que o molho de vilão casa bem com a perdiz.


-Fui à feira. Não estava lá grande coisa. Se não fossem os suíços…
Quis dizer suínos. Mas, coitado disse, suíços.


-Deu-lhe de presente uma apendicite.
Não lhe chegou a língua para dizer pendentif – adorno feminino pendente ao pescoço – por aí pingente.


-Sempre simpatizei com o seu panorama…
Cumprimentou assim um político da época. Mas, em vez de dizer programa, disse panorama. Pouco tempo depois, emendou a mão, chamando programa ao panorama. Que lindo programa!


O Cinema, naquele tempo, oscilava, tremia… Tremia como criança.   Oscilava… Mas, o pobre Justino, que tinha no ouvido, como pulga, o verbo oscilar, deitou cá para fora aperfeiçoado em urcilar.


À gipsófila, que então se pronunciava gipsòflia, planta de flores miudinhas, chamava ele, de modo grandioso… pisgatòfilha!


Não sairíamos daqui hoje se quiséssemos completar o rol de tanta asneira.   Completem-no os velhos, que porventura se lembrem do Justino.
Falta apenas dizer, neste lugar que teve carreira politica, no cargo de regedor, por sua honra, que o atestado supra é pobre.
Homem assim não podia ser só regedor. No declínio da primeira república, subiu de posto. Foi administrador do concelho de Santa Marta de Penaguião. Falta saber se também foi ministro.”


Quem o escritor lembrou de forma comovente na crónica  “Figuras de Barro - Os Bombeiros” (in Manta de Farrapos-1957) foi  o primeiro Capelão dos bombeiros da Régua,  a figura bonacheirona  do Padre Manuel Lacerda de Oliveira Borges e o dia triste do seu funeral, quando  ia  a caminho do cemitério do Peso.


“Perdi a ocasião de ver os bombeiros formados quando morreu o Padre Manuel Lacerda. Passou à minha porta o acompanhamento, a caminho do Cruzeiro, mas não o vi. Se passou de manhã, estaria eu ainda na cama ou andaria para o quintal, onde era vivo e morto nas horas forras das primeiras letras - tinha eu sete anos.
Quem me descreveu o enterro foi minha irmã mais velha, imediata de minha mãe na minha iniciação em espectáculos novos. Disse-me como tinha sido, mas só o fixei, de mo dizer muitas vezes, que o Borrajo levava a bandeira e ia a chorar.
O Padre Manuel Lacerda foi, de todos, o mais benquisto dos reguenses. Morreu de repente, enlutando num pronto a Régua toda. Lembro-me de o ver conversar com meu pai. Que fisionomia! Era uma espécie de coração visto por fora para melhor se adorar. Meu pai, que não era homem de muitas lágrimas, nunca o recordou, pela vida fora, com os olhos absolutamente secos.
Não se pode dizer que o Padre Manuel Lacerda, como padre, tenha sido talhado pelo figurino que os cânones exigem. Mas, como homem, foi um santo homem, um homem alegre, que não podia ver pessoas mal dispostas nem arrenegadas umas com as outras. Onde soubesse que havia desavindos, fazia uma festa, promovia um banquete, fosse lá o que fosse, para os congregar.    Deixou, na Régua, essa tradição benigna.
O Padre Manuel Lacerda foi capelão dos bombeiros. Por isso o acompanharam, de bandeira enlutada, no último passeio. O Borrajo, porta-estandarte, ia a chorar…”


Embora João de Araújo Correia não o tenha confessado, o seu pai António da Silva Correia, solicitador encartado, republicano convicto, nascido nas Caldas do Moledo, foi um dos bombeiros da velha guarda. Tinha pertencido, por algum tempo, ao corpo de bombeiro, mas o seu porte físico não era compatível com a acção exigida a um bombeiro.


Como seu pai deixou guardou a farda de bombeiro e seus adereços no baú das recordações, foi aí que o escritor encontrou a inspiração para o recordar, comovidamente, em “Figuras de Barro - Os bombeiros” (In Manta de Farrapos - 1957),  publicado, originalmente,  no boletim “Vida por Vida”.


“Meu pai tinha sido bombeiro voluntário. Mas, dotado por aí de lenta agilidade, sempre meticulosamente pausado, é crível que as obrigações de bombeiro, subir e descer escadas, de agulheta em punho, em cima de um telhado, fossem incompatíveis com o seu eu, isto é, com o seu físico e o seu moral. Sei que pouco tempo foi bombeiro. Desertou do apito, mas continuou ou fez-se contribuinte. Foi-o até à hora da morte.
Da actividade bombeiril do meu pai, ficou em minha casa, durante algum tempo, uma recordação. Foram os botões, as charlateiras e umas insígnias do uniforme. O que brinquei, com estas maravilhas amarelas, meio oxidadas, só eu sei… O que não sei é como se perderam. Sei que foram, uma após outra, imitando o soldadinho de chumbo do conto prodigioso.
Mas, se o soldadinho de chumbo regressou, para fazer das suas, elas coitadinhas, não regressaram. Vivem apenas na minha memória, isto é, no passado, que se faz presente quando eu o chamo.
Sempre que brincasse com os botões, as charlateiras da farda do meu pai, dizia entre mim: o papá foi bombeiro. Dizia-o como se o tivesse visto fardado, em dia de grande gala, numa formatura resplandecente. Dizia-o por intuição das charlateiras, insígnias e botões meio oxidados, mas ainda áureos bastantes para suscitarem orgulho no cérebro infantil. Se tivesse visto o papá numa parada, com o capacete a arder, numa fogueira de sol, com certeza que a minha vaidade se teria tornado insuportável.
Um homem de luvas brancas, com machado de prata às ordens e a cabeça adornada com um elmo de ouro, não é um homem. É um semi-deus”.
Continua...

- Colaboração de J. A. Almeida - Régua para "Escritos do Douro".
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