quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O Milagre do Cruzeiro

Tenho diante de mim o livrinho - programa referente à estreia da opereta O Milagre do Cruzeiro, com letra e música de meu pai António Rafael Magalhães. Nele se diz que a opereta foi escrita em Abril de 1950 e apresentada ao público em 11 de Novembro do mesmo ano no quartel dos Bombeiros Voluntários da Régua.

Cinco anos antes tinha acabado a II guerra mundial e toda a gente vivia nas benquerenças da paz e duma permanente euforia. Por sugestão do Lourencinho, ao tempo comandante dos bombeiros e também a pedido de meia dúzia de componentes da Orquestra Reguense, meu pai lá se dispôs a escrever e a musicar uma opereta, coisa impensável nos seus horizontes artísticos. Mas, como quem se precata, começou a dar tento dos teatros do mundo que é como quem diz, o quotidiano do seu viver e das suas congeminações… Se nas horas forras do seu comércio de tabacos vinha até à porta da loja, a olhar a rua, o que é que via? Via o chamado Cimo da Régua com um polícia sinaleiro atento ao trânsito e via a novidade dos carros americanos, carros de bom tamanho e bons cromados sendo alguns conduzidos pelo novo-riquismo do volfrâmio. Nas costas do polícia era a sala de estar dos mirones e dos meninos bonitos, todos fazendo horas espreguiçadas e a olharem a tacanhez provinciana do mundo em derredor… E o Rafael Magalhães a dar conta do cenário.
No regresso à casa de Remostias passava junto da cadeia da vila, com seus janelões gradeados e onde se corporizava a responsabilidade de crimes maiores ou menores, sabe-se lá se alguma virtude escondida num corpo injustiçado. As celas escuras e soturnas recebiam uma esmola de luz e aconchego pela tardinha, à hora do sol poente. Seria tudo isto mais um capítulo, um novo cenário dos teatros do mundo? Seria, seria…

Um pouco mais adiante, num encruzamento de caminhos, era o bom dia ou a boa tarde das mulheres do soalheiro, isto se o tempo estivesse de feição e com boa temperança. Meu pai, Rafael Magalhães, respondia à saudação e reparava que elas se catavam umas às outras e espiolhavam o norte e o desnorte de vidas alheias… Se uma fazia meia, outra remendava o cu das calças do seu homem. Mas, todas elas integradas num resumo dos teatros do mundo e meu pai a congeminar até que chegava ao lugar das Fontainhas.

A partir daí não havia casas nem casebres nem sequer um arremedo de comparsas ou figurantes. A estrada de terra batida, ladeada de vinhedos, era chão afeiçoado a um cigarrinho de enrolar e às sementes que iam vicejando no ramalhete de uma história já pensada e já delineada. Disse-me um dia meu pai… Disse-me que as linhas e entrelinhas do enredo se revelavam no caminho das Fontainhas a Remostias, entre vinhedos, numa íntima comunhão com a natureza, como se aquele caminho fosse uma fonte de inspiração.
Chegado a casa, isolava-se na sala grande, sala propícia à leitura, à escrita e à música. Era ali o salão nobre das suas ideias, da sua criatividade e até das impressões que dia-a-dia se iam polarizando no seu cérebro. Havia ali um piano, uma flauta, um violino e um bandolim de quatro cordas. Dedilhava o bandolim e de pronto lançava no papel de música as notas compassadas e dançantes de um bailarico ou os acordes dulcificados de uma Avé Maria, tudo isso destinado ao canto e aos descantes da opereta. O enredo, esse tinha o romantismo tradicional, de mãos dadas com o realismo da época.
Os ensaios eram sucessivos e não se faziam à sobreposse. Faziam-se num ambiente de festa com a juventude e o entusiasmo de todos os figurantes.

A história do Milagre do Cruzeiro foi no dia 18 de Novembro,  no ano santo de 1950 e no quartel dos bombeiros onde se improvisou um palco e uma plateia num salão ainda inacabado. Foi ali que se assistiu ao êxito e ao sucesso de uma opereta que por onze vezes seria representada.

Se meu pai ressurgisse por aí, estou certo de que gostaria de ler e relembrar este memorial e até me dava a sua bênção. Mas isso, só por milagre dos milagres.
-  Manuel Braz de Magalhães, 24-11-12

Clique  nas imagens para ampliar. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Dezembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Texto e imagens originais cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no jornal regional semanário 'O ARRAIS', edição de 12 de Dezembro de 2012. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

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