terça-feira, 13 de julho de 2010

Benemérita dos Bombeiros da Régua - D. Branca Martinho

Por: Padre Avelino Branco

Nesta revista, que se publica apenas uma vez por ano, queremos arquivar e apreciar os acontecimentos dignos de registo, ocorridos na nossa terra, durante esse lapso de tempo.

Um deles, dos maiores, não de gáudio mas de luto foi a morte da Senhora D. Branca Martinho, em 31 de Janeiro de 1964. Neste caso, mais que registar um facto, um óbito, “Princesa do Douro” quer prestar homenagem a uma nobre figura de mulher, que deixou atrás de si um rasto brilhante de virtudes e benemerências, inequívoco exemplo de esposa, dona de casa, mãe...cristianismo vivido em sua pureza integral.

Não quer a modesta revista que tens nas mãos, caro leitor, incorrer na falta, que o “Transmontano”, antigo jornal da Régua, em artigo publicado a 2 de Julho de 1922, precisamente com o mesmo título deste. Verberava nos seguintes termos: - “...Porque é reparável (sic) e profundamente triste que os jornais que tamanho ruído fazem em volta de casos sem importância e pessoas de méritos suspeitos, se quedem petrificados, num silêncio irreverente, perante uma alma esplêndida, que passa serenamente deixando através da vida um rasto luminoso de actos de caridade e altruísmo”.

E neste ano de graça de 1964, para chorar o desaparecimento da Senhora D. Branca Martinho, vestir-se-ia de lutuosos crepes; para realçar suas virtudes, cantar seus feitos memoráveis, veste-se de gala, só lhe doendo sua modéstia de estilo e forma, esta pobreza que mais lhe não permite que lançar pequenino grão de incenso no turíbulo de hosanas, aceso no coração de todos os reguenses.

De todos os reguenses, sim, porque, na homenagem póstuma do seu funeral. Não houve rico nem pobre, velho ou criança que não estivesse presente, de olhos humedecidos e coração a sangrar. Foi um penhor de saudade e gratidão, pelo agradável que era conviver-se com Senhora tão simpática e pelos benefícios espirituais e materiais profusamente repartidos por suas generosos mãos.

Nasceu a 2 de Janeiro de 1891. Ali na casa da R. dos Camilos, num lar profundamente cristão.

É ela própria que faz do seu Pai a seguinte apreciação: “Homem modesto e honesto, perfeito modelo de cristão”.

A casa dos pais é a escola dos filhos, é a primeira universidade, a que na marca o rumo, que pela vida fora, havemos de seguir; só em jardim bem cultivado podia desabrochar tão mimosa e colorida flor.

Da sua infância evoco apenas o seguinte episódio, contado por ela própria, numa das páginas do seu diário: “Na escola, todos os anos vestíamos criancinhas pobres. Condiscípulas nossas, o que me dava já muito prazer. Era um dia de grande alegria naquela casa. Quase sempre no dia um de Maio. Às contempladas dava-se um lanche que nós cozinhávamos sob a direcção duma professora” .

Enfim, o que o berço dá a tumba o tira. Vinha-lhe do berço este geito de repartir, de sentar à mesa da alegria os menos protegidos da sorte.

Deus tinha-a predestinado para o exercício da caridade em grande estilo.

E visto que falei na escola, acrescento: no capitulo de instrução, apesar de se ter revelado inteligente, viva e atenta, o que se podia chamar uma boa estudante segundo o testemunho da sua competente mestra, não fez estudos médios ou superiores, como hoje se diz, porque não estava em moda naqueles tempos. Apenas teve cursos de aperfeiçoamento em português e piano.

Todavia, os que com ela privaram pela vida fora, puderam apreciar a sua vasta cultura, e sobretudo a lucidez, precisão e profundeza dos seus conhecimentos religiosos. Era senhora dum humanismo cristão do mais fino quilate.

Uma grossa e bem seleccionada literatura serviu de pábulo à sua inteligência invulgar.

Aí colheu uma estrutura de pensamento, uma justeza de critérios, que lhe permitiam pesar com exactidão escritos de literatos, os mais ilustres, acontecimentos e factos ocorrentes na vida, os mais intrincados.

Casou aos 20 anos de idade, em 6 de Agosto de 1913, com o Senhor Artur Gonçalves Martinho.

O que mais tarde escrevia sobre a festa do seu casamento, é uma de tantas provas da sinceridade, franqueza, humildade, que exornavam sua nobilíssima alma. Tinha o dom de ver claro e ler em si própria como em livro aberto, o que, por vezes, é tão difícil.

Quem há que não admire este passo das suas memórias? - “Não foi com os olhos em Vós, Senhor, que contraí casamento, mas porque me diziam - é um bom partido, e um bom rapaz. Na véspera fui com uma irmã receber Nosso Senhor e confessar-me. Se fosse hoje!... como não iria lavada toda e purificada em Vós, Senhor! Compreendia pouco o que ia fazer e as responsabilidades que cairiam sobre os meus ombros”.

Mas a verdade é que deu sobejas provas de compreender bem o que fez e das responsabilidades que assumiu.

Se tinha sido modelo de rapariga solteira, não o foi menos de esposa, mãe e dona de casa.

Pelo que aos nossos ouvidos chegou. Sabemos que a sua juventude foi marcada pelo recolhimento, modéstia, piedade. Era duma alegria transbordante e duma inocência sem mácula.

Aos seus ouvidos soou um dia esta frase: “A Senhora nunca foi tocada pela maldade”. Não reagiu, apesar da sua modéstia, porque a consciência de facto a não acusava. Mas reagia e impacientava-se quando lhe faziam elogios.

O seu retrato de esposa, fê-lo ela própria no seu diário íntimo, na folha de 5 de Julho de 1929, nestas memoráveis palavras: “Muitas vezes me aflige a ideia de que não faço bem a vontade do meu marido; e como eu desejaria adivinhar-lha... Mas a minha pobre cabeça não o compreende muito bem”.

Aqui está delineado o programa duma boa esposa: fazer feliz o seu marido, na ordem temporal e eterna.
Apesar de que esta preocupação de fazer os outros felizes era um dom todo seu, que lhe conhecemos de sobejo. Dom de simpatia, hábil em descobrir motivos de satisfação para os outros, sempre pronta a louvar, a felicitar, a servir, a dar. Este era o maior prazer da sua vida, e bem o exprimiu nestas linhas das suas memórias: “Quando penso em tantos benefícios que me dais, tanta fartura, tanto com que me cobrir, tantas e tantas consolações...que não mereço... Permiti que nunca me aborreça de dar e sempre tenha com que minorar o sofrimento de quantos se me dirijam, e o faça generosamente”.

Era admirável nesta alma o sentido dos outros.

Se recebia um favor, uma atenção, uma delicadeza, ficava confundida. Nada recebia em vão, com indiferença, ou deixava sem agradecimento. O seu agradecimento, porém, não era mera cortesia. Era deste teor: “Meu Deus abençoai todos aqueles que são bondosos e delicados para convosco”. Assim reza uma das páginas do seu diário.

Também preferia chamar a si todas as amarguras e sofrimentos dos outros. Muitas vezes o pudemos apreciar, e bem se revela este timbre da sua alma na seguinte passagem escrita só para si: “São 11 horas da noite. Que fim de tarde eu passei tão tristonho! Uma angústia enorme me oprimia, sem saber a razão, pois só tenho motivos para estar satisfeita e agradecer. Pedi há dias ao Senhor, quando vi minha mãe aflita e a chorar, que me desse a mim toda a saudade, e a ela a deixasse mais serena”.

Era deste sentido dos outros, desta vivência em corpo místico de Cristo, que arrancava a sua extraordinária acção de caridade, quer individual, quer através da Conferência de S. Vicente de Paulo, à frente da qual esteve mais de 30 anos.

Era verdadeira caridade cristã, e não mero altruísmo naturalista.

Vejamos nesta passagem do seu diário como o seu serviço a lavor dos pobres era repassado de espírito sobrenatural: “Quando passava hoje pela avenida do rio abordaram-me duas mulherzinhas para que metêssemos uma velhota (a Monge, lhe chamam) no Asilo, ou lhe valêssemos, visto que estava na maior miséria.

Na volta entrei lá. Realmente a velhinha está na maior miséria. Não vê. Só tem trapos na cama. Não tem ninguém que a possa sustentar, pois a família também é pobre. Quanta miséria há pelo mundo, Senhor!... Meu Deus permiti que possamos metê-la no Asilo. Em tempos falámos-lhe em ir para essa casa de caridade. Não quis. Respondeu que antes queria morrer. Agora já vai, pois chegou à maior miséria, que é estar doente, sem meios, sem ter um carinho, sem poder arrastar-se a mendigar, como costumava. Aceitá-la-ão agora? Virgem Santíssima permita que sim”.

Era assim.

Pois nem por isso, ou talvez por isso, deixou de saborear o travo amargo, que por vezes têm as obras de Deus. Por tanto bem fazer, não lhe faltaram ingratidões, injustiças, calúnias e até insultos.

Mas tudo isso considerava sempre pouco para oferecer ao Senhor. A meditação frequente dos tormentos da Paixão de Cristo, faziam-lhe ver o nada dos seus próprios sofrimentos.

De facto tudo referia a Deus, e tudo interpretava à luz meridiana do Evangelho.

Por exemplo, quando se preparava para deixar a casa de seus pais, a fim de ir viver com o marido em casa própria, alguém lhe observava: “Deixa o seu Pai sozinho? Não está cá a sua Mãe... Ao que ela respondeu: “Realmente assim é e custa-me muito fazê-lo. Mas, reconheço também que meu marido está ansioso por mudar para a casa de baixo, e então, Senhor, puz em prática a tua santa doutrina - Deixarás teu Pai e tua Mãe, e seguirás o teu marido - Assim farei, embora o coração sofra e os outros me julguem mal”.

A sua vida foi na verdade uma cartilha de existencialismo cristão.

Profundamente humana, enraizada no real, mas sabendo colocar todas as pedras, toda a imensa gama dos acontecimentos do dia a dia, no tabuleiro construído por uma razão potente e uma fé esclarecida.

Não desperdiçava nunca boa ocasião que se lhe de parasse, nem lhe escapava o mais insignificante pormenor.

Se toda a mulher, por especialidade da sua psicologia feminina, tem o segredo do pormenor, a Senhora D. Branca, que era mulher de boa madeira, tinha esta qualidade sublimada.

Descrevendo, por exemplo, uma peregrinação a Lourdes, quando a vemos embrenhada na contemplação do ambiente grandioso de religiosidade, na observação dum milagre que tanto a comoveu, na mistura de vozes de várias línguas a rezar, na beleza da paisagem e dos monumentos, salta-lhe da caneta esta frase: “Terminei hoje aqui as 9 primeiras sextas”.

E aquela graça que punha no arranjo dum altar, da sua casa, da sua própria pessoa, que era senão a ciência do pormenor, aliada a um temperamento artístico, como se viu nos seus teatros, nas suas festas infantis e de sociedade, nas suas músicas, nos seus escritos?

Tinha ainda o segredo de fazer com simplicidade as coisas difíceis, e de estar sempre ocupada em coisas de alto merecimento.

Já quase no fim da sua vida, enquanto num hospital convalescia de gravíssima operação, escrevia cartas e falava pessoalmente às numerosas amigas que a visitavam das obras de restauro da querida igreja da sua terra, tendo assim conseguido uma soma, que ultrapassou a centena de milhar de escudos, para as obras.

E sendo verdadeiramente grande, também era, como não podia deixar de ser, profundamente humilde.

Não foi para mais ninguém, mas só para si e para Deus que escreveu um dia estas palavras: “Adoro-Vos, Senhor... sentindo-me imensamente feliz, quando vejo os outros subirem mais alto”.

Outra expressão que gostava de dizer quando via alguém com ânsias de brilhar era esta: “Foge Branca para a valeta!”

Mas ela tinha também a miragem das alturas, dos vastos horizontes espirituais, do céu sem nuvens, mas sem o saber, ou julgando- se sempre a inútil, “no primeiro degrau da escada”

Era, porém, nessa ânsia de subir, que buscava e tinha a convivência dos santos, das almas de Deus, dos Príncipes da Igreja, de todos quantos pudessem transmitir-lhe mais ciência divina e mais virtude. Dialogar com os bons sobre assuntos de espiritualidade era o seu mais delicioso entretimento, e no seu escrínio de correspondência há verdadeiros monumentos de Teologia Ascética e Mística em literatura epistolar.

O seu apreço pela hierarquia era insuperável. Bem o deixou vincado nesta passagem das suas memórias: “Hoje, quando pensava ou meditava durante o tempo do meu repouso, tive pena de não ter um filho sacerdote”.

Enfim, tenho de pôr termo a esta pequena história duma grande alma, história escrita por ela mesma, como no caso de Santa Teresinha.

Efectivamente já deves ter reparado, estimado leitor, que a espinha dorsal deste breve escrito é formada por palavras escritas pela própria biografada.
(Clique nesta e nas imagens acima para ampliar)

Como dissemos inicialmente, estes apontamentos biográficos pretendiam ser homenagem sincera e justa à Senhora D. Branca, que vive e viverá sempre na nossa memória e no nosso coração. Mas agora que chegamos ao fim, verificamos que isto são sobretudo pontos de meditação para todos, particularmente para a mulher, seja ela solteira ou casada, mãe ou simples dona de casa.

Que tão altos exemplos frutifiquem são os nossos ardentes votos.

Notas:
1 - O antetítulo do texto é da responsabilidade do autor deste arquivo.
2 - Este texto foi publicado na revista “Princesa do Douro”, em 1964, edição de J. Alcino Cordeiro - Régua.
3 - A fotografia da D. Branca Martinho encontra-se exposta no Museu dos Bombeiros da Régua, tendo sido “inaugurada” em sua homenagem, em 1923, durante as comemorações do 43º aniversário da Associação.

- Colaboração de J. A. Almeida para "Escritos do Douro" em Julho de 2010. 

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