sexta-feira, 7 de maio de 2010

Cartas de longe: Um pouco de João de Araújo Correia

Personagem do Douro - Um pouco de João de Araújo Correia

Filho de pais remediados, nasci em Canelas do Douro, concelho de Peso da Régua, na madrugada de 1 de Janeiro de 1899.
Frequentei as primeiras letras e instrução primária na sede do concelho, onde meus pais se fixaram quando completei ou ia completar os meus três anos de idade.
Tinha eu onze anos, fiz exame de instrução primária na Escola Normal de Vila Real.
Estou a ver-me subir e descer uma escadaria de velha casa, que me pareceu muito importante.
Em 1912, fiz exames singulares de Francês e Inglês, quinto ano ou quinta classe, numa airosa sala do liceu de Vila Real.
Com estas habilitações, consegui frequentar e concluir, em três anos, o curso dos liceus.
Frequentei-o na Escola Académica do Porto, donde saí, aos dezasseis anos, para me matricular na Universidade.
Frequentava eu o terceiro ano de Medicina, antes de cumprir os meus vinte anos, quando adoeci gravemente.
Obrigado a interromper o curso, por falta de saúde e mais alguma razão, sobrevinda à convalescença, concluí-o em Outubro de 1927.
Perdi seis anos de frequência escolar. Mas não os perdi de todo...
Passei-os em Canelas sem inacção mental e sem prejuízo do meu tratamento.
Quando me formei, era homem de razoável cultura e muita reflexão, própria de quem foi doente meia dúzia de anos.
Durante a convalescença, publiquei prosa e verso nos jornais da Régua.
Mas, de regresso às aulas e após a formatura, já casado e com dois filhos, interrompi a lide literária para me dedicar ao estudo e prática da Medicina.
Entretanto, sem deixar de querer bem à arte de curar, que nunca abandonei, meteu-se comigo outra vez a vocação literária.
Publiquei, em 1938, o meu primeiro livro, que intitulei Sem Método.
Livro de breves notas, foi elogiado por grandes homens como grande revelação de homem votado à produção literária.
Teve de se cumprir a minha sina - originada em factores ancestrais que mal alcanço.
Apenas sei que meu pai, com estudos oficiais rudimentares, lia e escrevia primorosamente.
De minha mãe, delicado espírito, devo ter herdado uma boa dose de sensibilidade.
Bastarão estes dados para se interpretar a minha alma de artista?
Sei que nasci escritor em casa de lavoura, situada à beira de uma fonte, na antiga vila de Canelas do Douro.
- In "O Mestre de nós todos - Antologia de João de Araújo Correia" organizada por José Braga Amaral.

João Araújo Correia - Centenário de um Grande Escritor Ainda Esquecido - Nascido em Canelas do Douro (Régua), em 1 de Janeiro de 1899, João de Araújo Correia foi desde os Contos Bárbaros (1939) reconhecido pela crítica como um dos maiores contistas portugueses, na esteira de uma declarada herança camiliana, mas ainda hoje, apesar da vastidão da sua obra literária, sobretudo no domínio do conto, o autor de Montes Pintados talvez continue a merecer uma injustificada indiferença dos leitores. E, mesmo no ano em que passa o primeiro centenário do seu nascimento, tal efémeride que deveria ser pretexto para avivar a memória e a importância da obra de João de Araújo Correia não teve o reconhecimento público que se impunha.

No entanto, justifica-se sempre reabilitar perante o público leitor, que se mostra alheado de uma verdadeira perspectiva crítica que o faça entender e ler com outros olhos certos autores que pelos anos fora, sem se saber as razões disso, continuam a ser mal-quistos ou esquecidos, enquanto outros autores, tantas vezes sem a grandeza literária de João de Araújo Correia, recebem os louros e prebendas nem sempre de todo justificadas. E, tendo sido tão vasta a obra literária do autor de Contos Durienses como longa e vivida foi a sua própria vida em mais de oitenta anos bem contados como escritor e médico (e, de passagem, assinale-se que foi sepultado em Canelas do Douro em 1 de Janeiro de 1986, quando completava nesse dia 87 anos de idade), nem por isso a sua criação literária, repartida pela crónica, novela, conto, temas linguísticos, notas camilianas e colaboração regular em jornais e revistas, tem sido alvo de atenção e de estudo, com as excepções que ainda hoje constituem alguns ensaios mais profundos ou biográficos de Amorim de Carvalho, Cruz Malpique, Guedes de Amorim, João Pedro de Andrade, João Bigotte Chorão ou Mário Dias Ramos.

Enfileirando, pois, nessa galeria de "escritores do silêncio", o autor de Folhas de Xisto foi desde sempre considerado como um dos escritores mais puros e classicistas na arte de escrever e de contar. Narrador de excepcional virtuosismo literário, João de Araújo Correia modela em pequenos pedaços de prosa as pessoas, os lugares e as coisas à sua imagem e semelhança. Homem que sempre se manteve ligado ao seu povo duriense, existem na sua obra páginas e páginas de excelente prosa, barroca por vezes, mas por onde perpassa de modo fulgurante laivos de profundo humanismo, porque as suas histórias, folhas caídas de uma árvore que não envelhecera, mantêm essa inconfundível característica de vida vivida em todos os planos: de ambiência pequeno-burguesa, retratando as gentes de uma região que conheceu palmo a palmo nos alargados anos da sua experiência, dela soube desvendar as raízes mais fundas e os seus contos e crónicas falam irremediavelmente do que se passa nos meios de província, mas sem evidenciar em tudo o que narra uma visão provinciana. Na verdade, poucos escritores existem na nossa actual literatura que, com tão largo fôlego estilístico e excepcional poder de criação, tenham construído com uma fidelidade quase obsessiva a obra que João de Araújo Correia nos deixou em mais de trinta títulos de bibliografia activa.

Longe das especulações sem sentido de que certos autores apenas exploram esse mundo rural e de província numa perspectiva etnográfica ou regionalista, a sua obra fala e impõe-se por si mesma na dimensão e força de ser um "bloco" literário há muito reconhecido, para lá de se querer rotulá-la como neo-realista, regionalista ou documentalista. Mas qualquer título serve para definir a obra de João de Araújo Correia e dever ter-se em conta a importância de livros como Contos Durienses ou Folhas de Xisto, sobretudo este último em que, sem dúvida, se demonstra a capacidade de narrar de um escritor que sabe chegar à cidade sem abandonar a terra de origem. E assim a Régua, como toda a região duriense, lhe ficou a dever ter sabido, com engenho e arte à boa maneira classicizante portuguesa, glorificar numa prosa forte e exemplar toda a vida pacata e monótona de uma região fustigada pelas própria condições naturais, num retrato que nos deu há mais de quarenta anos e por isso poder dizer: «Parece-me que foi sobre folhas de xisto, lâminas de alvenaria da minha região, que escrevi estes contos».

Por isso, ler os livros de João de Araújo Correia é, na verdade, sentir a pulsação vibrátil de um povo que faz do seu dia a dia, dos instantes mais desocupados ou preocupados, a "canção da terra" que a terra ensinou a cantar. Médico de província, homem culto e muito ligado às suas gentes, o autor de Contos Bárbaros soube como poucos escritores erguer em forma de homenagem o que a própria vida lhe consentiu pudesse realizar. E, mais à sombra tutelar de Camilo do que de Aquilino, soube afirmar-se como um escritor capaz de ter captado todas as antigas ressonâncias e transmiti-las de modo profundamente reinventado, sem ter de filiar-se em qualquer escola ou corrente estética, mas na certeza, como em tempos declarou Óscar Lopes, de que até o neo-realismo «tinha muito que aprender com a espontaneidade criadora (individual e socialmente criada) da imaginação de casos, coisas e pessoas».

Prosador exemplar e grande contista, no ano em que passa o primeiro centenário do seu nascimento e praticamente quase não comemorado, João de Araújo Correia bem merece que se evoque a sua memória e se enalteça a grandeza de escritor, e assim dar razão a estas palavras que Aquilino pôde pronunciar em 1960 numa homenagem nacional então prestada ao hoje tão esquecido autor de Terra Ingrata:«Não é o mestre da Régua, como se dizia da pintura, no obscuro século de Quinhentos, o mestre de Ferreirim ou de Linhares. Mas o mestre de nós todos, que andamos há cinquenta anos a lavrar nesta ingrata e improba seara branca do papel almaço, e somos velhos, gloriosos ou ingloriosos, pouco importa; mestre dos que vieram no intermezo da arte literária com três dimensões para a arte literária sem gramática, sem sintaxe, sem bom senso, sem pés nem cabeça; e mestre para aqueles que terão de libertar-se da acrobacia insustentável e queiram construir obra séria e duradoura».

Mas é sempre tempo de se elogiar e reconhecer os nossos grandes escritores, de ontem e de hoje, e por isso repetimos que esta efeméride dos 100 anos de nascimento de João de Araújo Correia (1899-1999) poderá ser de facto um bom pretexto para enaltecer junto do público leitor o valor e a importância da sua admirável obra literária realizada em cinquenta anos de ofício e vocação de escritor e quase toda ela reeditada nas suas "Obras Completas" pela Editorial Estampa.
- Por Serafim Ferreira, crítico literário, in "A Página".

O Rei dos Cavadores - O Rei dos Cavadores apareceu-me aqui derrotado - neste consultório.
Diz que não come nem bebe e que passa as noites em claro.
A mulher, que veio com ele, acrescenta que o desinfeliz se levanta da cama em fralda de camisa e se pôe de joelhos a orar diante de um crucifixo.
Pede-me que dê um calmante ao homem, que era um trabalhador de uma cana e agora está um esqueleto.
Reparo na figura da mulher, contraste da figura do marido.
Ela ainda é uma rosa, embora desbotada pelos quarenta anos.
Ele não se pode comparar a nenhuma flor. É um espinho vivo.
Miro-o no fundo ds pupilas e afirmo-lhe à queima roupa:

- Desconfias de tua mulher.

O homem deixa cair os braços com que havia gesticulado as queixas. Abate o magro corpo na palhinha meio espipada de uma cadeira e confirma:

- Desconfio.

O rosto calmo da mulher parece-me inocente. Pouso a mão direita no ombro esquerdo do Rei dos Cavadores e exclamo:

- Não tens razão !

- Que não tenho razão sei eu, senhor doutor. Foi uma cisma que se me meteu na cabeça. Eu nunca me tinha visto ao espelho. Um dia vim à feira e deu-me para fazer a barba numa barbearia a luxo, dessas que por aí há, em que um homem se vê como é nos espelhos da frente e nos espelhos de trás. Cuidei que morria, de feio que me vi. Pensei que os anos me tivessem poupado como à minha Rita. Enganei-me! Tenho uma coroa, no alto da cabeça, maior que a dum bispo. Enquanto que a minha Rita não tem uma branca, as minhas fontes são dois chuveiros delas. E o meu rosto? É um sudário de engrunhas. Fui para casa e entrei em casa muito sossegado. Comemos o caldo em santa paz, eu e a minha. Lembro-me que foi ao alimpar os beiços que eu lhe perguntei:

- Sou feio ou bonito ?

Vai ela dá-me uma risada, coisa que não tem por costume, e responde:

- É feio.

Palavra que tal disseste! Pus-me triste como a noite e nem fui dar a tarde para que estava rogado. Fingi-me doente e botei-me à cama. O que eu quis foi agarrar lá a minha Rita. Dei-lhe mais beijos e mais abraços do que na noite do casamento. A minha mágoa é que recebeu tudo isso, as minhas festas, com a mesmíssima cara que tem agora. Nem o mais pequenino sinal de agradecimento! Punha-se a olhar para mim como se dissesse: estás doido. Fiquei num desespero. Lembrava-me do espelho, e o mais que fazia era chegar-me a ela na esperança de receber da companheira um migalho de refrigério. Era o mesmo que nada. Olhe! Ficava-se com aquele adoairo! Não quis adivinhar que dentro do meu peito havia bicho ruim. Para aumento do meu mal, deu-se lá na terra um acontecimento...porco. A mulher dum compadre meu fugiu para o Brasil com um alfaiate de fora - um rapaz que até parecia maricas. Desde aí é que o meu padecimento se tornou... Aqui o Rei dos Cavadores começou a chorar. Esfregou os olhos à raiz de ambas as mãos e prosseguiu:

- De dia, tenho trabalhado, mas, já não sou o Rei dos Cavadores, como ainda me chamam ricos e pobres. Sou um farrapo. De noite, procuro despertar na mulher, que aí está como uma estátua, alguma piedade, algum consolo, um bocadinho de paz. Vingo-me em na abraçar mais vezes do que as forças e a idade determinam, boto-me de joelhos aos pés de Jesus Crucificado, e esta cabeça, esta desgraça, não tem relego!

A mulher, cujo semblante ficou impassível a esta exclamação, confessou que o seu homem a cometia como doido e era impossível que não estivesse tísico. Auscultei o Rei dos Cavadores e dei-lhe uma receita incapaz de lhe calmar os nervos e de lhe restaurar o peito consumido.
- In O Mestre de nós todos - Contos Durienses, 1941 - Antologia de João de Araújo Correia organizada por José Braga Amaral.

Durius Dulcis

Depois que me senti envelhecer,
Passo horas e horas no meu lar,
De janela em janela, a espreitar
O breve mundo que me viu nascer.

Tem montes que não deixam de crescer,
Videiras que ninguém pode contar,
Oliveiras que vivem a rezar
E um rio que não para de correr.

Este pedaço de viril beleza,
Este painel de rica natureza
Irá comigo para o Além.

Sempre lhe quis e sempre o defendi,
Fui eu até que um dia o descobri...
Não o posso deixar a mais ninguém.

João de Araújo Correia 
ALGUMAS OBRAS PUBLICADAS - Sem Método (1938), Contos Bárbaros (1939), Terra Ingrata (1946), Enfermaria do Idioma (1971), Contos Durienses (1941), Cinza do Lar (1951), Folhas de Xisto (1959), Caminho de consortes (1954), Três Meses de Inferno (1947), Rio Morto (1973), Tempo Revolvido (1974), Outro Mundo (1980), Dispensário Linguístico (póstumo-1999) e outros. Possui mais de quarenta obras publicadas.

(Transferência de arquivos do sitio "Régua" que será desativado em breve)

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