terça-feira, 4 de maio de 2010

As cartas de João de Araújo Correia

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Hoje ninguém ou quase ninguém escreve cartas, sejam de mera circunstância, afectos, negócios ou cortesia. Já lá vai o tempo em que se revelava sentidos pesares, em papel timbrado com fita preta ou se felicitava pelos sucessos pessoais. Tão pouco se escreve para corresponder a uma declaração de amor. As cartas perderam a sua função. Hoje manda-se uma pequena mensagem e, quando muito, envia-se um email. Começou uma nova era, a do correio electrónico. Pressagia-se que as cartas, como ainda as conhecemos, começam a ser uma coisa de outro mundo. Se não são já de um outro mundo, pelo menos, fazem parte de um mundo que já passou, de pessoas mais humanistas, como foram os nossos pais e avós, que gostavam de se comunicar num correio de trocas de cartas.

A.M. Pires Cabral é o autor de um interessante trabalho sobre as cartas de João de Araújo Correia. Quem o leu, entende-o como um breve estudo de introdução às cartas que o escritor escreveu a muitas das personalidades do seu tempo, amigos, leitores, conhecidos e oficiais do mesmo ofício, como foi o seu caso. Não sendo um suplemento do seu trabalho, surpreende-nos com a revelação de algumas cartas que o escritor fez questão de lhe dirigir, anotando-as com um pequeno comentário, a contextualizar os motivos de cada uma delas.

O seu trabalho e as cartas transcritas podem ser lidos no “In Memoriam de João de Araújo Coreia”, que acumula outros bons estudos e curiosas evocações pessoais, dedicados em homenagem ao escritor reguense, no ano em que se contam 25 anos após a sua morte.

Estas são algumas das cartas de João de Araújo Correia inéditas, mas ao que se sabe, fazem parte de uma vasta correspondência que escritor deixou guardada nos seus baús. Parece que aguardam quem as leia, estude, organize por temas e ideias, ou mesmo outros critérios, para que possam, muito em breve, ser publicadas em forma de livro. Alguém se encontra encarregado de realizar esse trabalho. Se o espólio do escritor guarda as cópias, os seus originais andam espalhados por múltiplos arquivos pessoais. Ninguém ignora que são incontáveis os destinatários das suas missivas e que, em alguns casos, caíram na posse de escrupulosos herdeiros, avessos a que elas percam o foro íntimo e privado.

O escritor duriense era mestre a escrever uma carta. Há quem afirme que o fazia ao “correr das teclas” da máquina de escrever. E, que nunca escrevia por escrever, como que se estivesse a cumprir uma obrigação. Como diz Pires Cabral, tinha uma verdadeira perícia no saber “bolear uma carta de maneira a que não fosse um recado seco, mas algo emocionalmente envolvido.”

Convém lembrar que João de Araújo Correia esteve, desde sempre, ligado aos bombeiros da Régua.

O escritor, como devoto admirador dos bombeiros, foi amigo de muitos directores, comandantes e dos velhos Soldados da Paz. Nunca escondeu a sua carinhosa simpatia e dedicação pelos valores do voluntariado e do associativismo. O seu pai que fora bombeiro, por algum tempo nas primeiras corporações, no tempo dos fundadores, permitiu-lhe conhecer os primórdios da instituição. Em sua casa guardou, até morrer, uma tábua dos sinais de incêndios, que o faziam saber em que rua da vila andava o fogo, quando sino da Capela do Cruzeiro dava os respectivos toques. Conviveu de perto com alguns dos bombeiros da velha guarda, com quem fez tertúlias, como os seus amigos, o artista e Comandante Afonso Soares e o delicado Lourenchinho. A convivência que deles tinha, levou-o a escrever sobre alguns dos seus personagens mais castiços. Recordou-nos do passado, figuras da estatura de Camilo Guedes, José Avelino, o Riço, o Justino Lopes Nogueira e o funeral do capelão Padre Manuel Lacerda, que não chegou a ver passar na rua…! Emocionou-se com a morte trágica do bombeiro João Figueiredo, o João dos Óculos, no incêndio da Casa Viúva Lopes, ao dedicar-lhe um soneto. Teve a sorte de frequentar o primeiro quartel e de admirar a velha estante cheia de livros, que o seu olhar de rapazinho de dez ou onze anos, nunca mais os esqueceu. Mais tarde, aceitou dar a sua colaboração no jornal da associação “Vida por Vida”, órgão oficial dos bombeiros, dirigido pelo talento literário do seu filho Camilo. Nas páginas desse extinto boletim, anos a fio, escreveu ele admiráveis crónicas, mais tarde reunidas nos livros “Pátria Pequena” e “Enfermaria do Idioma”.

João de Araújo Correia correspondeu-se, amiúde vezes, com os directores dos bombeiros da Régua. Algumas das cartas que lhes dirigiu, fomos encontrar arquivadas em velha caixas de madeira, ao lado de documentos menos valiosos, como facturas, orçamentos com previsões de grandes sonhos e obras e relatórios de contas do muito se recebeu e que se gastou.

Quando as consultamos, sentimos que o escritor nelas nos revela a sua envolvência no meio social. As suas pequenas observações da ambiente quotidiana privilegiam o valor e trabalho dos bombeiros como um exemplo de grandeza humana.

Aos seus olhos, os bombeiros são uma força invicta: “Quando tudo falece, pela palavra tudo, a longa vida dos nossos bombeiros é um sinal de força invencível. Comparo-a à vida de uma árvore, que tenha escapado à fúria dos temporais para se prolongar como símbolo de eternidade” e merecem-lhe este elogio: “A Régua, se não vegeta, é porque vai vivendo no ânimo dos seus Bombeiros.” Com uma apreciação assim, é suficiente para os bombeiros lhe ficarem, para sempre, gratos.

As cartas de João de Araújo Correia para os bombeiros da Régua, para lá do esmero e originalidade da linguagem em que são escritas, testemunham a sensibilidade do escritor, a sua urbanidade, o respeito no trato afectuoso pelos seus concidadãos, e a grande consideração que tributa à associação e ao seu corpo de bombeiros.

Propomos a leitura atenta de seis cartas das suas cartas:

PRIMEIRA CARTA:

"Exmo Senhor
Alfredo Baptista
Dig.mo Secretário da Direcção dos B. Voluntários

Eu e minha irmã solteira, Maria Ana de Araújo Correia, sócios contribuintes dessa Associação, agradecemos reconhecidos os serviços prestado pela sua ambulância no dia 18 do corrente. O que se não agradece, por falta de palavras próprias, é a solicitude com que foi executado. Há dedicações tão perfeitas, que só a gratidão silenciosa, indelevelmente guardada no coração, lhes poderá corresponder. Pertence a essa espécie, inefável por natureza, o modo como os Bombeiros procederam, transportando minha irmã, recentemente operada de fractura óssea, desde a Casa de Saúde de Lamego até o meu domicílio.
Queira V. Ex.ª aceitar os meus respeitosos cumprimentos.

Peso da Régua, 28 de Abril de 1955"

SEGUNDA CARTA:

“Peso da Régua, 4 de Agosto de 1960

Ex.mo Senhor
Dr. Júlio Vilela
Dig.mo Presidente da Direcção dos
Bombeiros Voluntários do Peso da Régua

Ex.mo Senhor e meu prezado Amigo:

Venho renovar a V. Exª o meu bem-haja pela sessão efectuada em minha honra, a 30 de Julho último, no salão nobre da associação a que V. Exª preside.
A sessão, realizada acto contínuo à minha chegada de Lisboa, onde escritores e amigos me festejaram como publicista, desvaneceu-me como reguense amigo da terra. Pude verificar o contrário do que imaginava. A Régua, pouco afecta a espiritualidades, salvou-se no meu conceito do labéu de ingrata com quem a representa, melhor ou pior, fora do limite das suas barreiras. Graças a V. Exº e outros membros da direcção, nomeadamente o Sr. Alfredo Baptista, patenteou-se a meus olhos e à consciência do resto do país a dignidade da nossa vila. Bem o estimo por mim e pelo meio em que vivo. Seria vergonhoso que o meu amor ao Douro, manifesto em cada um dos meus escritos, fosse correspondido com desdém na sua capital.
Respeitosamente me subscrevo,

De V. Exª
Admirador, patrício e amigo reconhecido”

TERCEIRA CARTA:

“Peso da Régua, 27 de Janeiro de 1970

Ex.mo Senhor
Dr. José Lopes Vieira de Castro
Dig.mo Presidente da Associação dos
Bombeiros Voluntários do Peso da Régua

Ex.mo Senhor:

Respondo ao prezado ofício de V. Ex.ª datado de 22 do corrente.
Tanto V. Ex.ª como a Ex.ma Direcção a que preside consideram imprescindível a minha colaboração do boletim VIDA POR VIDA. Não estou de acordo com V. V.Ex.as neste particular, Não falta quem escreva no boletim VIDA POR VIDA para lhe manter a boa tradição de brilho e de valor.
Concordo com V. V. Ex. as em considerar que foram alheios à actual Direcção os motivos que me afastaram do boletim VIDA POR VIDA. Nestas condições, recusar-me a colaborar de novo seria demasiada impertinência e até grosseria. Sou incapaz de praticar esses delitos perante a boa vontade que V. V. Ex. as manifestam no sentido do meu regresso ao VIDA POR VIDA – órgão de uma associação digna do meu zelo e até do meu sacrifício.
De acordo com a minha saúde, que vai sendo pouca, e com o meu vagar, quase sempre reduzido a escassos minutos, colaborarei confiado nas atenções que mereçam as minhas atenções. Assim o espero de V. Exª e de quem superintenda na redacção do jornal.
É-me grato manifestar a V. Exª, nesta oportunidade, a minha consideração e respeitosa estima.

A BEM DA HUMANIDADE”

QUARTA CARTA:

“Peso da Régua, 26 de Novembro de 1971

Exmo Senhor
Joaquim Lopes da Silva Júnior
Dig.mo Vice-Presidente da Direcção dos Bombeiros

Meu Ex.mo Amigo:

Venho agradecer-lhe o honroso convite para me associar às comemorações de novo aniversário dos nossos bombeiros. Muito obrigada por se lembrarem mim para tomar parte numa série de solenidades que inspiram grande simpatia. Sempre me comoveu, desde a minha infância, uma festa tão inefável como festa de família.
Muito gostaria de comparecer, como sócio contribuinte, no grupo dos meus consócios e perante o Corpo Activo para o saudar por mais uma vitória. Não é pequena vitória completar sem declínio 91 anos de idade.
Opõe-se ao meu desejo, neste fim de Novembro, a minha pouca saúde e outros empecilhos. Não me é possível removê-los neste momento para me sentar, como no ano passado, à mesa dos meus amigos, que são os nossos Bombeiros. Mas, para provar que lhe quero bem, não desisto de colaborar com eles no intervalo das festas.
É já um truísmo cansado isto de se dizer, a propósito dos nossos bombeiros, que são a única gente que teima em representar, neste nosso meio, um papel tão nobre, que a distingue da apatia comum. Convém, no entanto, fazer desse truísmo um motivo de orgulho. Convém repeti-lo em cada ano com tanta satisfação como desgosto. A Régua, se não vegeta, é porque vai vivendo no ânimo dos seus Bombeiros.

Cordialmente me subscrevo,

De V. Exª
Amigo certo e reconhecido”

QUINTA CARTA:

“Peso da Régua, 27 de Novembro de 1975

Ex.mo Senhor
Dias Montesinho
Bombeiros Voluntários
Peso da Régua

Ex.mo Senhor:

Na pessoa de V. Excia, digníssimo secretário da Direcção dos Bombeiros desta vila, felicito a nobilíssima corporação por mais um ano de vida. Cumpro este dever como se cumprisse um voto religioso. Quando tudo falece, pela palavra tudo, a longa vida dos nossos bombeiros é um sinal de força invencível. Comparo-a à vida de uma árvore, que tenha escapado à fúria dos temporais para se prolongar como símbolo de eternidade.
Por falta de saúde e outras atribulações, é-me impossível tomar parte nas festas comemorativas do venerável aniversário. Fico-me por casa, sem deixar de agradecer a V. Exª o honroso convite para o acompanhar na execução do programa constante do seu ofício 83/75.

De V. Exª
Cordial e respeitosamente”

SEXTA CARTA:

“13 de Julho de 1980

Ex.mo Senhor
Secretário da Direcção dos
Bombeiros do Peso da Régua

Ex.mo Senhor:

Para corresponder ao amável convite de V. Excia, para colaborar num livro comemorativo do centenário da sua Associação, tive a honra de lhe remeter, pelo Sr. António Luís Pinto, empregado da Imprensa do Douro, três originais.
Trata-se de uma crónica inédita, intitulada História dum Soneto, e de dois artiguinhos que devem ser agora republicados.
Suponho que nenhum dos meus escritos, enviados a V. Excia pelo Sr. António, destoarão da índole do livro. Todos aludem a tempos idos da Associação.
Como tenho tido medo a gralhas tipográficas, não dispensarei a revisão de provas. Podem estas ser enviadas pelo dito Sr. António Luís Pinto – seja qual for a tipografia que imprima o livro.
Com a maior estima e consideração.

At.ª e Obg.ª”

Se os bombeiros da Régua para evocar João de Araújo Correia não sabem expressar mais palavras de admiração, saudade e respeito, não se esquecem de retribuir a gratidão e a luz com os foi distinguindo ao longo de toda uma vida. Os bombeiros conhecem, como mais ninguém, esta verdade: não há no mundo exagero mais belo que a gratidão, ela é a memória do coração…!
- Peso da Régua, Abril de 2010, J. A. Almeida.

2 comentários:

joana disse...

Começa a tornar-se um vício, isto de esperar impaciente pelas tuas crónicas, sabendo de antemão que me vais levar por novos caminhos, por novas experiências literárias!

Deste-me o João de Araújo Correia… pessoa que eu nem sabia que existia até tu me teres mostrado um bocadinho da sua escrita….alguém que ama as árvores, que faz um desvio no seu caminho para admirar uma arvore, tem que ser uma pessoa muito especial, com uma sensibilidade apurada e um profundo sentido de gratidão para com tudo o que o rodeia….
Hoje, já não encontramos pessoas assim….vivemos demasiado mergulhados em nós mesmos para reparar numa árvore ou num gesto nobre…actualmente, é tudo por obrigação ou dever….como tal, não há porque agradecer ou mostrar qualquer tipo de gratidão.

As cartas falam por si, não há nada a acrescentar, são modelos de gratidão e de uma escrita pura, limpa e fácil de ler… um verdadeiro prazer!
Gostava de poder voltar atrás no tempo, de poder passar uma tarde em boa e amena cavaqueira com alguém que mostra uma sensibilidade e delicadeza tão grandes…tenho a certeza de que seriam horas muito bem passadas e inesquecíveis!


Obrigada por mais esta crónica, Zé!

Beijo

Josefina disse...

Parabéns:
As cartas...saudade de as receber. Concordo contigo quando dizes as cartas foram substituidas por correio electrónico.
Gosto da forma como lidas com as palavras. Não se esgotam e consegues fazer com que cada emoção que sinto ao ler os teus textos se tornem únicos.
Excelente trabalho o teu. Adorei ler o teu texto. Mais uma vez parabéns.